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Afinal, somos produtos do meio?


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Conversando com um amigo estrangeiro, me pergunto o quão somos produtos do meio. Ele, criado na Europa, teve outra vida. Trabalho e performance não são seu foco, ele só quer viver bem. Não tem tanta pressa para fazer as coisas, não usa sacolas de plástico. Faculdade, achar um trabalho, formar uma família… para ele é um passo de cada vez. Quer fazer memórias, viajar e, no fim do dia, beber um bom vinho. Tem apenas uma mochila da Northface, uma garrafinha térmica, uma única jaqueta de couro que esquenta e serve para tudo. Basta. Não sente necessidade de comprar coisas demasiadas, de acumular muita grana. Ele quer ser feliz e ponto, fazer coisas que possuem sentido. 


Meu amigo não fuma, mas não faz cara feia quando soltam a fumaça em seu rosto. É cultural fumar um por dia, depois da refeição ou enquanto conversa no telefone. Não, não é estranho. Aliás, ele costumava enrolar o próprio cigarro e seu pai fumou charuto durante a sua infância inteira. Uma tábua de frios é sempre servida depois do almoço.  Nós é que somos disfuncionais: comemos em dez minutos, fumamos cigarros eletrônicos, compramos na SHEIN. É um contraste tão grande que me pergunto como viramos amigos, e uma parte de mim deseja ter a sua calma, essa tranquilidade de viver oriunda da certeza de que tudo vai dar certo. De onde ele tira tanta convicção?


Não consigo deixar de compará-lo comigo e com os meus amigos, nascidos no estado de São Paulo, localizado no maior país da América Latina, dentro do Sul Global. Nós tentamos de tudo: Queremos comprar tudo que vemos pela frente, aproveitar todas as oportunidades, beber até a última gota, tudo isso com o intuito furar a bolha da mediocridade. E essa corrida intensa sempre foi natural para nós. A partir disso, me pergunto o quão somos moldados pelos valores locais vigentes, pelos interesses das classes dominantes, pelas relações de poder longevas e nunca questionadas. Como fatores culturais agem sobre nós? Como internalizamos o que é correto e errado tão incisivamente, sem olhar para trás? 


Me pergunto se eu seria tão feliz quanto eu sou se tivesse nascido na Europa. Me pergunto se eu ficaria obcecada pela ideia de sucesso profissional se eu tivesse nascido num país que já tivesse serviços de qualidade como garantia, acompanhada da certeza de que os meus pais receberiam uma aposentadoria digna. Será que os detalhes seriam o mesmo?  Será que eu os perceberia da mesma forma, com a mesma desenvoltura?  O quão não sou apenas o produto do cenário que eu acredito controlar, do contexto socioeconômico cíclico vigente. 


Acredito que ser brasileira é de uma riqueza tremenda. Nós, latinos, demoramos para entender a nossa força. Aliás, são as nossas músicas que tocam nas festas quando os jovens do mundo querem se divertir e todos os gringos que eu conheço já dançaram ou vão à loucura quando escutam Camaro Amarelo. Somos uma potência em elaboração e, se compramos mais do que devíamos, se somos extravagantes ou falamos com a boca cheia, é porque temos medo de que nos falte. Fomos condicionados a sentir esta sensação de complexo de vira-lata, uma ausência tão forte dentro do peito que adotamos uma cultura secundária, delimitada pela influência norte-americana. 


Acho que o ambiente em que vivemos desempenha um papel implícito em nossas vidas, mas não determinante. A troca de valores nos transforma, nos relativiza e nos prepara para o novo, e gosto do que isso me proporciona: gosto da sensação de me perder no outro, de entender que um caminho alternativo também é possível. Nunca serei igual ao meu amigo. O cheiro do cigarro sempre me será desagradável. A minha vida, pelo menos em parte, sempre será uma corrida para alcançar um emprego capaz de me garantir mais do que a estabilidade financeira; uma fração da minha autoestima sempre estará ligada à performance. Não consigo me dissociar desta parte, que me fez mudar tantas coisas, me fez tomar tantas escolhas, caminhos que talvez me afastaram daquilo que de fato deveria acontecer. As minhas escolhas detém um peso a mais, um gosto amargo de perda. O meu caminho segue um trilho que ele nunca compreenderá, fato que se assemelha à minha falta de tato sobre as suas prioridades, que eu ainda não entendo como foram estabelecidas. 


Ele lê e se questiona sobre o conteúdo contemplado, toca mais de três instrumentos e  nunca tinha ouvido falar de festas open bar antes de vir para cá. Vai em bares, fala um tanto de cada língua, sabe um pouquinho de tudo. Ele me fascina e me provoca inveja, me faz sentir emoções sofisticadas de surpresa e delírio em relação à vastidão do mundo. Me fascino e me pergunto como aprender piano, que na minha casa era o auge da erudição, para ele não passa de mais uma das coisas que sua mãe lho obrigou a fazer durante a infância. Me questiono como ele se atém ao presente. O meio para nos tornarmos quem somos é determinante, mas até que ponto? Como o óbvio para mim pode ser tão distante do que tangencia o comum para outra pessoa? Como vivemos nessas zonas cinzentas sem temor ou problema? Estudo para ir à Europa, mas meu amigo estuda para quê? 


Quando ele me falou que ficou um ano viajando depois que terminou o Ensino Médio, eu quase caí para trás. Poderiam as realidades ser assim tão diferentes? Em um dos dias que passamos juntos, ele me contou sobre o mês que passou no Japão. Eu nunca tinha pensado em conhecer o Oriente. Fui pesquisar sobre e encontrei com uma foto da Sophia Coppola em Tóquio, no set de Encontros e Desencontros. Decidi ler um pouco mais sobre uma das filosofias japonesas, e me deparei com a ideia de Ikigai. Hoje, presto mais atenção à minha respiração, busco aulas de alongamento e tenho o sonho de ir para um dos lugares paradisíacos da Ásia. A sua facilidade em falar sobre aquilo que eu dificilmente consigo tirar do meu peito me fez compreender que era uma questão de tempo até eu me acostumar com as minhas mazelas, até eu me afeiçoar com a pessoa que eu de fato me tornei. Sou grata por conhecê-lo porque ele me permitiu existir em locais que eu nunca pensei que a minha presença se manifestaria. A nossa amizade é uma tal coreografia que me faz provar de momentos que eu jurei serem apenas de filmes, um eterno script de Before the Sunrise.


Percebi que os nossos horizontes eram diferentes, e sempre estaríamos em um certo descompasso. Mas desenvolvi um amor por essa distância, essa lacuna que nos tornou ainda mais próximos, uma vez que ela demanda uma espécie tímida de devoção despretensiosa. Ele não brincou na rua até de madrugada na infância e quis saber como era. Nunca conheceu as praias da Bahia e me perguntou  se o Nordeste era tão bonito assim. Por tanto tempo me senti inadequada por tentar lhe explicar coisas, até o dia em que ele me confidenciou que sonha em voltar a morar no Brasil, o meu lar. Ali, entendi que a minha realidade também podia ser o sonho de outra pessoa. Ele me disse que aqui é o seu lugar e, dessa forma, percebo que, com ele, adentrei uma porta na qual as cores do mundo não se restringem às vistas pela minha janela. Percebi que a minha vida era bem maior do que eu pensava ser. 


Me pergunto se um dia conheceria tudo isso se não tivesse parado para conversar com ele antes daquela festa em junho. Hoje, trocamos e-mails e lhe mandarei um postal na semana que vem. Me pergunto tantas coisas, mas nada supera o sentimento de gratidão que inunda o meu peito por conta da oportunidade de desbravar o implícito. Que delícia navegar pelas asas do desconhecido, de sentir a expansão do existir dentro do meu próprio ventre. 


Autora: Carolina Setten 

Revisão: Pedro Anelli

Imagem:  Pinterest

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