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AGORA EU ERA O HERÓI





I.


Fazia frio naquela manhã. Enquanto as crianças corriam na areia do pátio, úmida pela chuva da noite, a professora as observava. Elas faziam barulho, gritando e brincando; era a hora do recreio. Naquela multidão de pequenos e pequenas, a professora fixava seus olhos em Tiago e Matias. Eram inseparáveis: suas mães se conheceram ainda grávidas, e eles nasceram quase que simultaneamente. Àquela altura, no ápice dos 8 anos, era evidente para todos os laços existentes entre aqueles meninos. Não eram exclusivos um do outro e tinham outros amigos, mas era palpável a sincronia entre os dois. Naquela manhã fria, brincavam no balanço, muitas vezes se direcionando um ao outro, outras, imersos em um solene silêncio.

Tinham interesses compartilhados por futebol de botão, pelos mesmos desenhos e por gibis. Adoravam passar suas tardes no mar, em uníssono com a celeuma que vem do oceano. Tiago possuía em si um vigor incontestável. Os professores, internamente, o chamavam de um "capeta em forma de guri". Não era pra tanto, mas sim, vivia em constante agito e fazendo piadas com todos; quase que um holofote que não cessa, mas talhado como um garoto. Todos tinham certeza que era destinado a coisas grandes, dessas que vemos em filmes e passamos nossas noites sonhando. Já Matias era bem mais quieto. Não chegava a ser tímido, mas não compartilhava o amor por atenção tal qual seu amigo. Era generoso e engraçado, mesmo se sentindo sempre inadequado. Em si mesmos, eram pessoas normais, ou melhor, crianças normais. A presença do outro, porém, formava um mundo à imagem e à semelhança das melhores qualidades de ambos. Um se permitia o silêncio, o outro se tornava mais leve e vivo. A recíproca era visível nas expressões faciais dos dois, quando voando no balanço.


No aniversário de Matias, cortaram o bolo juntos. Era um bolo de chocolate, com três camadas de recheio, daqueles que não duram 10 minutos intactos. As mães haviam organizado a festinha no quintal da casa do aniversariante, com pula-pula e refrigerante liberado.

Filho — apontava a mãe. — Mostra pro Tiago o presente que você ganhou do seu tio.

Tá certo, mamãe.

Os garotos, desviando dos convidados, adentram o quarto. Era colorido, com o azul da parede recém-pintada e o vermelho do beliche contrastando. O calor de fora abafava o quarto, fazendo com que o anfitrião abrisse a janela.

Posso ver? — pedia Tiago.

Claro — respondeu Matias.

Era um walkie-talkie, um clássico. Tiago se sentiu meio idiota de não ter pensado nisso antes; era o tipo de presente que se adequava exatamente às singularidades do amigo. Pensou no presente do ano passado — alguns carrinhos de brinquedo — e conteve sua culpa católica embrionária. Olhou para o canto do quarto, onde os pequenos automóveis residiam junto aos álbuns de figurinha do amigo, e sorriu.





II.


Naquela noite, Matias tinha um encontro. Não via muito sentido naquilo, mas foi convencido por amigos de que era necessário. Logo após o jantar, saíram para andar de bicicleta sob a lua cheia. Os eternos postes iluminavam os dois, que desciam livremente pelas ladeiras. Seu coração palpitava, em coro com sua pele, povoada por arrepios. Sorriu, mas omitiu o êxtase de seu par. Em casa, se deitou na cama em posição fetal — o peso no peito havia voltado, mais agudo, e chorou as lágrimas da felicidade, da culpa e do medo.

Sua cabeça constantemente doía. Pensar em si mesmo causava uma enxaqueca que fazia parecer mais fácil só seguir com a vida do que levá-la à análise. Não fazia ideia do que iria cursar: a simples imagem de fazer faculdade o deixava meio tonto, tendo certeza de que aquele ambiente de palavras grandes, e prédios maiores ainda, não era para ele. Toda vez que abria sua boca em qualquer situação social se sentia um completo idiota. Encontrava conforto em dormir, na sua bicicleta e na praia.


Em comparação às outras praias da região, ali era realmente bonito; realmente parecia uma praia de verdade, e não a ideia que um paulista teria de uma praia, sendo então o local perfeito para água de coco, queijo coalho, castelos de areia e cangas estendidas. Em meio ao ambiente ocupado por famílias, corpos se destacavam. Corpos fortes, esculpidos, violentos, quase que feitos para a guerra. Máquinas moldadas para aguentar o sol tropical, máquinas feitas para serem exibidas — Tiago e Matias não tinham vergonha de tirar a camisa. O beira-mar era o espaço ideal para a exibição do primitivo comportamento de meninos adolescentes. Sempre jogavam futevôlei como dupla e, quase sempre, ganhavam. Jogavam com a competitividade de atletas olímpicos, estourando com o outro quando este cometia um erro. Naquele dia, jogavam com outros dois amigos, também descamisados. Mesmo estando mais desconcentrados do que nas outras vezes, venceram seus oponentes sem problemas.

A adolescência decerto foi o motivo de algumas tensões e uma certa distância entre os dois. A passagem dos anos indicava a mudança de cursos dos rios. Mas frente à incerteza da inevitável chegada da vida adulta, ali foi construído um castelo. Sabiam que seu laço datava da maternidade e, mesmo com suas diferenças, só tinham um ao outro. Os outros amigos existiam, mas no fundo, eram apenas pessoas que estavam no mesmo lugar, na mesma hora. A família, idem. E em suas vidas, suas namoradas eram secundárias. Claro, estavam ali, faziam parte de suas rotinas, mas eram secundárias. Não eram objetos de afeição constante, e sim algo a ser conquistado e celebrado, um meio para um fim. Aquilo codificado socialmente como amor — carinho, idolatria, respeito — excluía o sexo feminino, e era reservado aos homens.

O futuro não cabia em lugar nenhum. Eles sabiam disso e viviam suas melhores vidas. Andar de bicicleta, escutar música a noite toda enquanto faziam suas piores imitações de famosos, organizar festas em suas casas, matar aula... Eram os mesmos de sempre, mas aqueles olhos guardavam melancolia, relegada aos confins daqueles corpos, presa ali. Não choravam na frente de ninguém, nem entre eles próprios. Era na caminhada da noite fria voltando para casa, ou no banho quente, que aceitavam a emoção.


Mas a vida sempre tinha de recomeçar. O ensino médio acabou, e aquelas horas ansiosas e terríveis passadas estudando foram embora, mesmo que brevemente. Entre discursos comoventes, longos aplausos, estranhos passos de dança e um anacrônico eurodance tocando no salão, a festa de formatura fez com que sentissem uma estranha sensação de alívio. Hora de dançar.

Nenhuma boa ação fica impune? O alívio durou pouco e deu espaço à incerteza. Sempre gostaram de festa, mas aquilo, com o passar das horas, pareceu vazio demais. Qual o ponto? — pensaram. Todos os rituais de festa e celebração se tornaram vagos e banais, e a música que sempre os fazia felizes dessa vez os havia deixado jovens solitários. Não tinham laço emocional suficiente com aquelas pessoas e com aquele lugar para ficarem culpados de saírem à francesa. Como fora combinado antes, iriam dormir na casa de Matias.

Aterrisando noite adentro, na rua, recontavam um ao outro histórias de outros tempos, onde a saudade se fundia com uma auto vergonha alheia — como a gente era imbecil, cara! Era divertido lembrar das viagens, dos jogos e das festas, mas também sabiam que a nostalgia era uma faca de dois gumes, flagelando por trás das risadas. Compreendiam que o futuro poderia guardar boas surpresas, mas simultaneamente se aterrorizavam com a fase adulta. Todas as noites que seus pais os ninaram com carinho, todas as grandes risadas na escola iriam se transformar em algo novo, mas o que? As divertidas narrações das suaves noites escondiam um profundo medo de nunca mais serem felizes como já foram.


Em casa, tudo parecia nebuloso. Ficaram um tempo vendo TV de madrugada, zapeando entre reprises e desenhos. Conversando nos colchões, os dois performavam normalidade, mas compartilhavam essa impressão, mesmo sem saberem que o outro se sentia assim também, de que a noite fora ficando mais enigmática com as horas, e estavam adentrando territórios inexplorados daquela amizade. Talvez fosse a iluminação do quarto, onde uma luminária à meia-luz disputava espaço com o clarão da Lua cheia no céu, criando uma atmosfera sombria, ou até mesmo a disposição das camas no chão, quase coladas. Em todo o caso, a dimensão sensorial daquele espaço evocava um repentino ímpeto de serem brutalmente honestos um com o outro. Uma sensação de intimidade avassaladora, só possível pela proximidade física do par, mas incapacitada pela insegurança, pelo temor. Nesse ambiente envelopado pelo mistério, os olhos de Matias por fim acusaram o cansaço e então decidiram que era hora de dormir. Olharam pro outro e, sem combinar, sussurraram ao mesmo tempo: "Boa noite". Deitaram em suas camas e dormiram até o sol nascer.





III.


O restaurante estava cheio. No verão, muitos turistas vinham à cidade, onde, naquelas ruas apertadas, misturavam-se com os locais. Matias havia saído de sua cidade natal para fazer faculdade na capital, na qual, pouco após terminar seu curso, também trabalhava. Tiago, por outro lado, fez faculdade por ali mesmo. Trabalhava e estudava; depois, foi morar com alguns amigos. Pediram algumas cervejas e bolinhos. Estavam felizes.

Desde os dias finais do ensino médio se viram pouco. Ocasionalmente, até trocavam algumas mensagens padrões, perguntando como estava a vida, a faculdade e essas casualidades, mas a conversa sempre acabava cedo; outrora tão próximos, a presença alheia lhes causava alienação.

Matias acreditava viver sua melhor vida. Fez grandes amigos, saía toda semana para aproveitar a cidade, morava em um bom apartamento. Aprendeu a cozinhar direito e começou a se vestir melhor, indo além das escolhas preguiçosas que marcaram seu guarda-roupas nos anos de colégio. Secretamente, guardava um desprezo por sua cidade natal — não à toa, saiu assim que pôde. Para ele, ali era o reino dos medíocres e conformados, que aceitavam que o seu destino era viver no veraneio dos outros. Além da praia, não via nada demais que o prendesse ali e só voltava no final do ano para passar o Natal com seus pais. Aliás, do que adianta ter uma praia daquelas e permitirem construir aqueles prédios horríveis, que invadiam a areia e tiravam todo o seu sol? Cafona demais, ele pensou.

Quem diria que subir a serra fez com que ganhasse tanta confiança? Havia perdido o privilégio de andar tranquilamente de bicicleta pelas ruas, mas fora isso, sentia-se muito melhor. Ao mesmo tempo, porém, essa fachada não era 100% verdadeira. A busca incessante por conhecer novas pessoas e fazer contatos não se refletia em amizades que realmente significassem alguma coisa. Quando as colocava em um pedestal, Matias acabava descobrindo que aquelas pessoas eram bem menos esclarecidas do que pensava. Em determinado momento, começou a duvidar do sentido de todas as suas escolhas e começou a fazer terapia, onde se achou, mesmo com a agonia envolvida no processo. Ainda assim, continuou em crise, descobrindo, segundo ele, "o fardo de ser inteligente o suficiente para saber que nunca será realmente feliz".

Essa psicóloga realmente causou um impacto, pensou Tiago. Ao contrário de seu amigo, que se tornou mais intrincado do que era antes, ele não pensava a vida de uma maneira tão literária assim. Encontrou na parcimônia a felicidade. Não que fosse uma pessoa simplória, longe disso; seu salto intelectual desde os anos do ensino médio fora notável. Mas depois de viver muito tempo em uma voltagem mais alta, uma hora se cansou, e se relegou a uma vida mais austera: menos pessoas, menos lugares, menos instrumentos. Se sentia melhor e, ao contrário do que pensava na adolescência, ainda seria feliz, agora sendo uma pessoa melhor do que quando jovem.

Depois da refeição, continuaram juntos, andando em direção a um parque. Trilhando pelas ruas, revelava-se uma cidade que se destrói e se renova, onde prédios altos e inúmeros andaimes predavam sobre os antigos arquétipos — as casas saudosas dos avós, as calçadas marcadas pelas amoras que caíam das árvores, o nostálgico frescor da maresia. No meio da batalha entre o bucólico e o urbano, eram os dois, conversando amenidades enquanto todo um mundo se inventava de novo. Matias teria que partir naquela noite ainda, então não tinham tanto tempo sobrando. Mesmo assim, entre olhares mudos e risos agudos, estavam realmente se divertindo com a companhia alheia. No parque, finalmente sentaram-se pelo lago, junto à sombra de algumas árvores, desejável visto o calor irredutível.

Memórias do que não conseguimos salvar. Talvez fosse apenas o suor e o calor, mas assim como oito anos antes, aquela pressa de se anunciar ao outro efervescia novamente. Dessa vez, ao invés do quarto de atmosfera gótica pós-formatura, temos o verde, o sol, a grama, encostados em um tronco sob a sombra. Mas tão potentes quanto a vontade e a necessidade de serem sinceros como nunca foram são os nós dentro da gente. Novamente confinados, buscavam o ordinário:

Como é morar com mais gente?, perguntou Matias.

Um pouco cansativo. Mas eu acho que vale a pena, pelo menos pra mim. Eles são parecidos comigo e nosso convívio é fácil.

Imagino. Eu não conseguiria, eu sou chato demais para viver com outras pessoas.

Eu era do mesmo jeito. Mas fui melhorando.

Lembro que teve uma época que eu ficava fantasiando da gente fazendo faculdade juntos, e a gente dividia um apartamento. Acho que nunca tinha te contado isso.

Não, não mesmo. Seria engraçado de ver.

Sim, sim, de fato. Era engraçado, eu passava muito tempo pensando o que seria da gente no futuro. E aí eu tinha essas ideias, porque eu realmente gostava da sua presença, mesmo, e sei que não conseguia comunicar isso muito bem, o que deixava às vezes as coisas meio estranhas. Mas eu realmente senti sua falta durante esses anos — a conversa lentamente desaguava para a tão temida intimidade.

Foi uma época curiosa aquela. Eu era mais jovem e mais estúpido também. Mas gosto como estão as coisas hoje; me sinto melhor comigo mesmo e com as pessoas. Não tenho certeza do futuro, mas não estou preocupado. Me descobri finalmente pronto para viver e amar — admite Tiago, com um olhar macio.

Fico feliz por você, mesmo. E o tempo nos fez bem, como indivíduos. Mas também sinto falta da gente, sabe? Éramos nós dois, e ninguém mais. Eu queria que fossemos amigos de novo. Não sei, sempre senti que tínhamos uma mesma frequência, que a gente tinha essa bolha nossa, onde a entrávamos e ninguém mais podia entrar. E hoje, as coisas são estranhas. Estou aqui com você, mas ao mesmo tempo pareço removido de algo, distante de nós. Sinto saudades de você — confessa Matias, levemente mexido.

Tiago encara Matias. Novamente, o silêncio revelava a alma. Olha um pouco para os cantos e prontamente enuncia: Também sinto sua falta. Venho passando bem os últimos anos, mas gostava da sua presença na minha vida. Não sei, você me fazia sentir corajoso, como eu tivesse um coração seguro e potente pulsando dentro de mim, que me tornava imbatível. Eu realmente sinto falta da sua amizade. A gente podia se ver mais, que tal? Eu vou mais para onde você mora, você vem mais pra cá. Não é tão longe, podemos marcar nos finais de semana. Ou se ligar também, sei lá. Você topa?

Matias assente com a cabeça, e sorri.






Autoria: João Pedro Fernandes

Revisão: Bruna Ballestero

Imagem de capa: Rough weather at Étretat, Claude Monet (1883) / Reprodução: Google Arts & Culture

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Imagem 1: Beau Travail, dir. Claire Denis (1999) / Reprodução: [FILMGRAB]

Imagem 2: Northeaster, Winslow Homer (1895) / Reprodução: Google Arts & Culture

Imagem 3: Moonlight, dir. Barry Jenkins (2016) / Reprodução: [FILMGRAB]


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