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AINDA É CEDO PARA O FUTURO?

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Estamos na época do ano preferida da minha mãe, quando os ipês florescem e dormimos de meias nos pés. O despertador toca e você está se sentindo tão seguro dentro do seu casulo que decide dormir só mais uns cinco minutinhos. Acorda meia hora depois e tem que escolher entre fazer seu café ou tomar um banho. Faz o café, passa perfume, faz um meio preso no cabelo sujo. Você se pergunta se, algum dia, não vai mais precisar pegar o ônibus ou o metrô; se algum dia vai conseguir andar de salto alto sem torcer o tornozelo no meio fio; se aquele cara vai se tornar seu marido; se o seu diploma vai te garantir um emprego… Você se pergunta se, algum dia, vai se tornar alguma coisa. E, principalmente, se o seu francês vai destravar depois de dois anos de aula com uma francesa que não escovava os dentes (e cultivava café no Vale do Paraíba). 


Alguns otimistas dizem que o que nós queremos muito dá um jeito de encontrar a gente, como se já estivéssemos predestinados a passar por uma sucessão de acontecimentos que, inevitavelmente, nos levariam à nossa ambição ou amor. Desse modo, não haveria efeito borboleta capaz de suspender o ritmo romântico da nossa existência imperfeitamente perfeita. “Tudo acontece por um motivo”. É como na religião, basta acreditar e viver relativamente tranquilo, como se estivesse protegido por um anjo da guarda. 


O anjo da guarda de Rita Lee, por exemplo, era extremamente competente — parafraseio aqui a própria artista no programa Saia Justa de 2003 — depois de todas as overdoses, quedas e “porradarias noite afora”, definitivamente, o anjo da guarda dela está de parabéns. A própria Rita conta que, quando era criança, virava subitamente para trás para ver se pegava seu anjo no pulo. Eu, por outro lado, tenho como única representação do que seria o meu anjo da guarda uma estatueta de resina que ganhei da minha avó na infância, uma figura feminina com asas e vestido rosa esvoaçante. A imagem ficava em uma prateleira próxima à minha cama para garantir sonhos bons, como uma versão católica daquela mandala que penduram na cabeceira ou no batente da porta para capturar as “boas energias”. Estranhamente, eu não lembro dos sonhos bons que tinha quando era criança, só me lembro de acordar achando que tinha algo imerso na escuridão do quarto me observando. 


O meu problema é acreditar. Eu olho no espelho e não vejo um anjo da guarda atrás de mim. Eu vejo o meu perfil, o frizz no cabelo e as mais variadas vidas que eu posso ter até morrer — logo fico agoniada com as infinitas possibilidades de fracasso, um passo em falso, uma palavra errada. E mais angustiante ainda é ter que escolher qual caminho seguir, porque não tem ninguém para me dar a mão e me guiar na direção correta. Não há nada nem ninguém responsável pelo meu futuro além de mim mesma. O meu anjo da guarda se encontra guardado em uma caixa lilás, junto das presilhas de borboleta que a minha mãe colocava no meu cabelo e da arte abstrata que eu fazia com os dedos mergulhados na tinta guache.


Eu me pergunto se a mera crença no destino, seja este personificado em um deus onipresente, seja em um anjo protetor — ou até no “universo” — tem um efeito placebo. Se você acreditar que “tudo vai dar certo no final”, dado a proteção de uma força maior ou, simplesmente, o seu pathos existencial, é inevitável que tudo dê certo no final (como uma profecia autorrealizável)? Se você acredita que a estatueta de resina ou a mandala colorida vai afastar pesadelos, você não tem tantos pesadelos? Ou talvez você só se acostume a apreciar mais os sonhos bons, assim como um religioso exalta as bênçãos e todo o resto, as mortes e os fracassos, deixa para a vontade de Deus.  


Eu não leio a Bíblia, isso já deve estar óbvio. Alguns preferem apóstolos ou coaches, outros, como eu, escolhem quase que intuitivamente nas prateleiras de uma livraria autoras mulheres com complexo de Deus. Em “A Redoma de Vidro”, Sylvia Plath descreve mil vezes melhor o meu dilema existencial da manhã: 


“[…] Eu via minha vida se ramificando à minha frente como a figueira verde daquele conto. Da ponta de cada galho, como um enorme figo púrpura, um futuro maravilhoso acenava e cintilava. Um desses figos era um lar feliz com marido e filhos, outro era uma poeta famosa, outro, uma professora brilhante, outro era Ê Gê, a fantástica editora, outro era feito de viagens à Europa, África e América do Sul, outro era Constantino e Sócrates e Átila e um monte de amantes com nomes estranhos e profissões excêntricas, outro era uma campeã olímpica de remo, e acima desses figos havia muitos outros que eu não conseguia enxergar. 

Me vi sentada embaixo da árvore, morrendo de fome, simplesmente porque não conseguia decidir com qual figo eu ficaria. Eu queria todos eles, mas escolher um significava perder todo o resto, e enquanto eu ficava ali sentada, incapaz de tomar uma decisão, os figos começaram a encolher e ficar pretos e, um por um, desabaram no chão aos meus pés. […]”


Você pode e deve discordar de muito do que Sylvia Plath já escreveu, separando a arte do artista ou não, mas não tem como não se identificar com a analogia dos figos da escritora — diferente do seu racismo. O sentimento de indecisão quanto a qual rumo tomar é universal. No fundo, não queremos decidir — porque uma escolha implica no abandono de infinitas possibilidades, e é nessa imensidão do desconhecido que se encontra a vontade de acordar no dia seguinte para descobrir. Descobrir o quê? Tudo. 


O medo paralisa. O tempo passa. De repente você já está na faculdade, em um curso que foi decidido de última hora, em uma cidade onde nunca morou, mas que é estranhamente familiar, em um apartamento que você ama e odeia, em que sua cama ocupa dois terços do espaço e as melhores fotos estão coladas na parede com durex. E as marmitas congeladas. E os textos acadêmicos. E a vodka barata com energético verde radioativo. Como disse Clarice Lispector: “Depois do medo, vem o mundo”. Eu acho que o melhor seria “apesar do medo”. 


Na calçada, piso nas florzinhas meio mortas que caíram dos ipês. Molhadas pela chuva da madrugada, elas parecem derreter junto com a água. O meu agora e o meu futuro, profundamente entranhados como as veias azuis e vermelhas do meu pulso, fluem cegamente junto com a água encardida que cai no esgoto, enquanto o vira-lata atravessa a rua sem olhar para os dois lados e dois amigos de infância se trombam aleatoriamente numa esquina qualquer. Por um segundo, confio no destino. Talvez aquilo que eu deseje, seja lá o que for, dê um jeito de me encontrar por aí. Mas não fico parada esperando. Atravesso a rua na faixa, olhando para os dois lados. Baixo podcasts em francês. Agora vai?


Autoria: Julia Santos

Revisão: Pedro Anelli e Giovana Rodrigues 

Imagem da capa: Pinterest


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