A produtividade das Ciências Sociais está, mais do que nunca, na mira dos cortes do governo. O conteúdo artístico e filosófico produzido são realmente importantes para a sociedade? De nosso redator, Felipe Takehara
Estava discutindo outro dia com alguém que se dizia liberal e contestava a existência de intelectuais/“filósofos” como Leandro Karnal e Olavo de Carvalho, e em alguns momentos, até da própria filosofia. Na sua argumentação estava implícito que pessoas como eles não deveriam existir. Seu principal argumento era a inutilidade dos filósofos: eles não produzem nada que ajude objetivamente a sociedade, logo, são inúteis. Até certo ponto, admitiu que “os filósofos mais antigos tiveram alguma importância”, mas hoje não, diz que hoje são todos doutrinadores de esquerda que fumam maconha e que vão ao governo a procura de emprego. Fiz algumas alterações, mas o respondi basicamente assim:
“Eu entendi o que você quis dizer. Quando você afirma que do ponto de vista do tangível, aparentemente a filosofia não produz resultados satisfatórios, eu concordo em partes contigo. Realmente, as sociedades não chamam filósofos para construir edifícios e usinas hidrelétricas. Não chamam filósofos para fazer diagnósticos de doenças ou pesquisar o bioma amazônico. Até aí tudo bem, porque a filosofia, do meu ponto de vista, não serve para realizar esse tipo de tarefa.
Filosofia como eu entendo é principalmente a análise e (eventual) questionamento de suposições, afirmações e teses. É a articulação que o pensamento faz a respeito de ideias pouco palpáveis. A partir da reflexão, faz-se algum complemento, julgamento, conclusão, e assim por diante. Isso quase que continua como um ciclo, com cada geração examinando os modos de pensar da geração anterior, e formulando a sua própria. Evidentemente, há muito de não tangível e não empírico nisto, o que pode ser frustrante.
Sinceramente, não tenho nenhuma objeção quanto à existência de pessoas como o Karnal, Olavo de Carvalho, ou qualquer intelectual “inútil” ou “improdutivo” como você diz. Depreendi do pensamento liberal que a humanidade é principalmente isto: uma amálgama de matizes, de pessoas que pensam diferente, que possuem valores diferentes, que têm ideias diferentes de como a vida deve ser vivida. Acho temerário a imposição de uma forma concreta à humanidade, qualquer que seja. Não obstante, isso não significa a relativização de tudo, e que então qualquer visão de mundo ou modo de viver tem o mesmo valor. Eu tenho uma visão de mundo particular, muito construída pelo pensamento liberal, e é a partir dos valores que depreendi dele (alguns dos quais são a tolerância, a liberdade, a prudência, o respeito aos direitos humanos, o respeito à propriedade) é que eu julgo o que é bom ou mal para mim, e para a sociedade.
Quem pensa que as sociedades devem ser rigidamente estruturadas, com pouco espaço para a liberdade individual, seguindo rigorosamente critérios fixos, por exemplo, o da igualdade, como afirmam alguns, ou o da “utilidade/produtividade”, segundo você, é pouco ou nada liberal. Acho isso inconsistente vindo de alguém que se afirma como tal. O que deduzi do que você escreveu, é que pessoas que praticam a filosofia, seja com um “viés de esquerda” ou até mesmo o oposto, como o de Carvalho, são descartáveis para a sociedade. Parece que para você seria melhor se elas fossem eliminadas, ou que ao menos fossem obrigadas a viver de um outro modo e pensassem diferente, pensassem como você, por exemplo.
Ora, essas pessoas que se dizem esclarecidas, que sabem verdadeiramente como os outros devem viver, que sabem quem é “útil” e “produtivo”, e consequentemente inútil em uma sociedade, que entendem o que é realmente bom para uma pessoa, até melhor do que ela mesma, são incompatíveis com o liberalismo. Esse tipo de pensamento intolerante, rígido, é incompatível com a ideia de liberalismo como pluralidade, liberdade individual, pluralismo de valores, liberdade de escolher viver um modo de vida autonomamente, sem precisar de tutores esclarecidos.
O seu critério “utilidade/produtividade” aplicado em outras áreas da atividade humana é muito questionável. Na arte por exemplo. O que as escolas de arte, professores de arte, artistas em geral produzem? Uma quantidade enorme de material, eu suponho. Usando o seu critério “utilidade/produtividade”, deduziria que para você todo esse material é igualmente inútil. “Não consigo curar doenças com uma pintura, não consigo extrair minério da montanha com peças de teatro, não consigo alimentar um reator nuclear com uma colagem, portanto tudo isso é inútil”. Na verdade, acho até que você diria algo meio saudosista como “a arte no passado era melhor, mas agora o que a arte produz é inútil ou esquerdista.” Corrija-me se estiver enganado.
Penso que o uso rigoroso do critério “utilidade/produtividade” é problemático na hora de analisar ou propor a organização da sociedade, e os modos de viver de cada indivíduo. E para essas categorias da atividade humana, como o ensino de filosofia, a arte e a literatura, o critério de produtividade é quase alheio. O que mediria, por exemplo, a qualidade ou a quantidade? Como resolveríamos essa questão? Fazendo alguma observação, algum experimento empírico, analisar quão “útil” são os filósofos, os estudiosos de filosofia, que você critica para a sociedade? Quais seriam os critérios? Somente a utilidade? Acho que não daria muito certo.”
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