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AMARELO - É TUDO PRA ONTEM: EMOÇÃO, POTÊNCIA E RESGATE




No último dia 08, estreou na Netflix o documentário “AmarElo - É Tudo Pra Ontem”, no qual o rapper Emicida dialoga com o passado para contar o presente e traçar o futuro. A partir da combinação de elementos históricos, de referências às personalidades que engendraram o movimento negro no Brasil, das vivências pessoais do artista, do processo de criação das músicas e de recortes do seu show no Theatro Municipal de São Paulo, a obra se materializou como uma aula de história da cultura afro-brasileira.


Nesse sentido, Emicida reuniu ancestralidade, espiritualidade, coletividade e resistência para construir um enredo que resgatasse e ressignificasse a nossa cultura. A começar pelo Theatro Municipal de São Paulo, onde aconteceram os dois shows de estreia do álbum AmarElo em 27 de novembro de 2019, o local se encaixa quase como uma personagem a ser destrinchada. O espaço é simbólico, uma vez que já foi palco de momentos históricos como a Semana de Arte Moderna de 1922 - responsável por transformar a noção de arte e de brasilidade no país - e os protestos nas escadarias em 1978, que corajosamente denunciavam o racismo em plena Ditadura Militar. As articulações de 78 se consolidaram como o Movimento Negro Unificado (MNU) e, 41 anos depois, representantes do MNU estiveram na plateia do Municipal prestigiando AmarElo em mais um marco histórico.


Como o próprio rapper afirma em trechos do documentário, ainda que cada viga daquele lugar tenha sido erguida por mãos negras, muitas dessas pessoas sequer pisaram lá para tirar fotos. Por isso, ocupar fisicamente - e de forma coletiva - um espaço tão excludente é simbólico. Fora do Municipal, um telão possibilitou que as pessoas acompanhassem o show. Com o lançamento do curta, nota-se que a arte de Emicida continua tocando vidas e dando novas perspectivas, contando a história “da ponte pra cá” e devolvendo ao seu público o direito de sonhar.



Unidade prisional de Balsas. Cidade de Balsas - MA (2020)



Referências


Diversos nomes, frequentemente invisibilizados na história, são lembrados ao longo das cenas. Entre eles estão: Joaquim Pinto de Oliveira, arquiteto conhecido como Tebas; Lélia Gonzalez, antropóloga e uma das pioneiras sobre estudos de interseccionalidade; Abdias Nascimento, ator e ativista; Ruth de Souza, primeira atriz negra a protagonizar uma novela; Wilson Simonal, cantor e compositor. Entre muitos, muitos outros. O documentário traz também a forte ligação entre o rapper e o baterista e compositor Wilson das Neves, entrando na dimensão do luto com o seu falecimento - e também com o de Ruth de Souza e de Marielle Franco.


Não obstante, são recordadas as raízes do samba, bem como seu caráter político, seu papel na formação da identidade brasileira e suas contribuições para o rap. Ganham espaço na narrativa figuras como Cartola, Ivone Lara e Adoniran Barbosa, além da importância nacional e internacional que o grupo Oito Batutos desempenhou.



Imagem retirada do documentário (2020).



Ancestralidade

“Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje” (Ditado iorubá)


O ditado iorubá com que o rapper introduz o filme antecipa o fio condutor do curta (as relações entre o ontem, o hoje e o amanhã) e explica seu propósito enquanto artista: nossos passos são a continuidade de um caminho ancestral e nossas chances de consertar o passado estão no presente. Assim, essa conexão entre passado e presente é fundamental para entender que AmarElo é produto do tempo e só se logrou porque pessoas que vieram antes da gente deram significado ao que somos hoje. Por isso, Emicida deixa claro que é tudo para ontem.



Tempo

“Escrever, para mim, é ter a benção de passear pelo tempo. Estar aqui e agora, mas poder visitar, sentir, e também compartilhar os sentimentos tanto do ontem quanto os de amanhã” (Emicida, 2020)


O documentário é dividido em três atos: Plantar, Regar e Colher. A exploração da analogia com uma horta funciona para mostrar que tudo tem seu tempo e que é necessário respeitá-lo. AmarElo foi colhido agora, mas é como se tivesse sido regado a cada geração. E que sorte a nossa colher essa obra de raízes tão profundas.



Coletividade

“Tudo, tudo, tudo tudo que nóis tem é nóis” (Emicida - Principia)


Durante os quase 90 minutos do filme, somos lembrados da importância do “nós” e da falsa ideia de que estar sozinho é ser empoderado, quando na verdade tudo o que temos é uns aos outros. A ideia de coletividade está presente nas letras e através das parcerias das músicas, criando um álbum potente e que convida todo mundo a se sentir um só de novo.



Ressignificação

“Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência

É roubar o pouco de bom que vivi

Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes

Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes

É dar o troféu pro nosso algoz e fazer ‘nóis’ sumir” (Emicida – Amarelo)


Emicida é um artista que não só conta, mas ressignifica a história. Enquanto assistia ao documentário, lembrei da famosa palestra da autora nigeriana Chimamanda Adichie em que ela fala do perigo de uma história única. Segundo ela, “é impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. [...] Como é contada, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só contar a história de outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa.”


Pensei sobre o que significa contar histórias através da música e que as narrativas que estamos acostumados a ouvir são aquelas que colocam o povo preto como “apêndice” da história oficial, e não como alicerce da construção do Brasil. A história única retrata nossa cultura como sendo branca, ela apaga personalidades negras brilhantes, precursoras e vanguardistas e nos reduz a um povo sem nome e sobrenome. A história hegemônica cria estereótipos.


Então é possível abrir outras janelas de possibilidades, que não seja a dor, para as narrativas do povo preto? É possível que a violência sobre nossos corpos não seja a protagonista de nossa história? Sim, é possível. Leandro Roque de Oliveira - o verdadeiro nome de quem deu forma a essa obra - mostra que nossas cicatrizes não podem ser nossa única história e que pessoas negras têm nome, sobrenome, rostos e feitos históricos. “AmarElo - É Tudo Pra Ontem” dá aula de Brasil, é emoção, potência, resgate do passado e deixa como marca os punhos negros cerrados no Theatro Municipal.



“A minha missão cada vez que eu pegar uma caneta e um microfone é devolver a alma de cada um dos meus irmãos e das minhas irmãs que sentiu que um dia não teve uma” (Emicida)


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