top of page

ANISTIA, A LEI ARMADA


Em 2016, um deputado proferiu seu voto favorável ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff com menções honrosas “em memória ao coronel Carlos Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. Ustra foi torturador de Dilma quando presa pela ditadura militar. Dois anos depois, esse mesmo deputado foi eleito, com mais de 57 milhões de votos, Presidente do Brasil.

A nação elegeu como líder da República alguém que acredita que o golpe militar de 1964 foi, na verdade, uma revolução e que tem como ídolo um torturador. Mas já imaginou qual poderia ter sido o destino deste país se nós realmente tivéssemos passado a limpo o nosso passado ditatorial? Se tivéssemos feito justiça contra os torturadores e os ditadores? Se tivéssemos a memória dos horrores que foram as censuras políticas, os choques elétricos e os paus-de-arara? Infelizmente, os militares se articularam bem para que o nosso destino fosse o esquecimento.


Ampla, geral e irrestrita?

A Lei da Anistia assegurou a impunidade dos agentes do Estado, a volta dos exilados ao Brasil e a transição pacífica para um regime democrático. A Lei determinava que fossem perdoados os crimes políticos ocorridos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, além de resgatar os direitos políticos daqueles cidadãos acometidos por atos institucionais. Se posta desta maneira, passa em branco sua torpe história. Pois, ao observarmos diligentemente os efeitos dessa lei, explicita-se o grande desacordo da anistia brasileira e seu caráter coercitivo por parte da ditadura militar.


Existe, ainda, no imaginário de muitos brasileiros a ideia de uma Lei da Anistia “ampla, geral e irrestrita” fruto de um grande acordo. Este era o lema e a vontade da oposição à ditadura, mas não foi o que ocorreu. Na Lei da Anistia, em seu Art. 2º, §1º consta: “excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Ou seja, a anistia excluía os militantes que se envolveram na luta armada pelo fim da ditadura, mas perdoava os torturadores do Estado, que assassinavam e estupravam.


Os próprios efeitos da lei foram profundamente assimétricos, privilegiando os torturadores. Dado o atraso da anistia e a sua falta de abrangência, os presos políticos beneficiados pelo perdão foram apenas pouco mais de 100 (a fim de comparações, a Comissão Nacional da Verdade reconhece 434 mortos e desaparecidos vítimas do Estado no período da ditadura militar). Isso porque a maioria dos opositores já havia sido julgada, punida ou absolvida pelos devidos processos legais e pela progressão do regime, enquanto que todos os agentes do Estado nunca pagaram pelos seus crimes e seguem impunes até hoje.


O (Des)acordo do autoperdão

Em 2010, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADPF 153, que reivindicava a revisão da Lei da Anistia. A tese maior dos contrários à ação era a de que não se pode, mais de 30 anos depois da promulgação da anistia, revisar um acordo feito naquele contexto entre sociedade civil e militares, fruto de “amplo debate e participação social”. Sete dos nove ministros presentes naquele julgamento votaram pela improcedência do pedido. A maioria defendia a tese do “acordo”.


Como dizer que houve “acordo”, “amplo debate” e “participação social”? Vivia-se sob uma ditadura: não havia direito de manifestação, expressão e organização, e os instrumentos repressivos vigoravam plenamente.


Para um acordo legítimo, é necessário o equilíbrio das forças. Caso não haja, o lado mais forte sempre terá vantagem sobre o outro e, assim, morre o diálogo e o conceito de acordo. Em 1977, no início do trâmite da lei no Congresso, grande parte da oposição já havia sido censurada, exilada, presa, torturada e/ou executada pela ditadura. Estes não puderam “dialogar”. A anistia, para muitos, chegou tarde.


O Congresso estava tomado pelo regime militar: as lideranças foram cassadas, os deputados ameaçados e 1/3 dos senadores eram indicados pelo presidente-ditador. Durante as votações de emendas para o projeto de lei da anistia, proposta pelo governo, as sessões eram boicotadas pelo ARENA, partido governista. Em minoria e desarticulado, o MDB, partido de oposição, operou milagres no Congresso, resistindo e fazendo o que podia. De 210 propostas de emenda, conseguiram aprovar 43. Porém, o ditador Figueiredo vetou mais da metade das propostas aprovadas no Congresso. Ao fim do trâmite, não havia alteração nos efeitos do projeto de lei: apenas datas e pontuações foram alteradas. Passou praticamente intocada a proposta de autoperdão do ditador.


O MDB promoveu uma sessão em plenário para que entidades civis fossem trazidas para comentar e discutir sobre o projeto de lei de anistia. No entanto, a sessão foi boicotada: os parlamentares do ARENA simplesmente não compareceram. Nenhuma entidade da sociedade civil pôde participar do debate sobre a lei. Essa é a radiografia de uma anistia fruto de “participação social e amplo acordo”. A tramitação da Lei da Anistia foi um jogo com cartas marcadas.


O quadro da votação definitiva da lei foi apertado, nem os parlamentares do partido governista tinham confiança na anistia proposta pelo general. Era necessária a maioria simples dos votos. Foram 206 votos favoráveis e 201 votos contrários à proposta de anistia. Bem, cinco votos de diferença definitivamente não parecem uma conciliação convincente, como deve ser uma anistia. No dia da aprovação, aliás, um deputado do MDB denunciou: “a farsa dos poderosos foi acolhida”.


Hannah Arendt¹ defende que a anistia envolve o perdão entre as partes, e que perdoar é um ato político. No entanto, a filósofa também diz que “não é possível perdoar aquilo que não se pode punir”. Ora, a oposição estava em condições para punir os torturadores e ditadores? A oposição a essa altura já estava aniquilada ou controlada. Não havia correlação de forças. A Anistia é um autoperdão imposto pelos próprios ditadores e para proteger a si mesmos.


Em nome da paz da família brasileira

Ao lançar para o Congresso Nacional o projeto de lei que conceberia a anistia, o ditador João Figueiredo disse em discurso: “certos eventos, melhor silenciá-los, em nome da paz da família brasileira”. A lei do general-presidente mais tarde daria brechas para que um legalismo deturpador classificasse como “crime político” práticas como tortura e violência sexual². Não existe tal coisa como “estupro político”, “pau de arara político”, “inserção política de ratos em vaginas”.


E, apesar de tudo, Comissão da Verdade, denúncias em cortes internacionais e avanço dos direitos humanos, os males da ditadura parecem intocáveis. Nem mesmo a ex-presidenta Dilma, torturada, ousou tocar na Lei da Anistia. O que vemos é a farsa denunciada pelo MDB em 1979. Como precisamente classificou um repórter da Carta Capital³: "um acordo tácito, pelo qual em nome da governabilidade, silenciamos ‘certos eventos’, como pediu Figueiredo. É uma pena que o resultado disso não seja ‘a paz da família brasileira’, como desejava o ditador, mas a perpetuação de graves violações aos direitos humanos.”


A impunidade dos militares que cometeram crimes contra a humanidade deixou marcas profundas na nossa tão jovem e já tão mal resolvida democracia. A autoindulgência imposta pela ditadura causou um mal-estar intragável cujas consequências são identificáveis até os dias de hoje. O orgulhoso discurso autoritário do ex-presidente Bolsonaro tornou-se valorizado como parte da propaganda política da extrema direita. Seus apoiadores pedem por uma intervenção militar. A memória de tempos sombrios foi ao esquecimento. Resta-nos a barbárie de uma nação que não consegue se conciliar com seu passado violento.


Autoria: Lucas Tacara.

Revisão: Luiza Parisi e Laura Freitas.

Imagem de capa: Monumento Tortura Nunca Mais.

__________________________________________________________________


Bibliografia:


1 - Os limites do perdão: Hannah Arendt e Jacques D errida. Cláudia Perrone-Moisés, 2014. Revista Brasileira de Psicanálise. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2014000400013.


2 - O alcance da Lei da Anistia: o último passo. Paulo Abrão, 2010. Portal OAB/RJ. Disponível em: https://www.oabrj.org.br/artigo/artigo-alcance-lei-anistia-ultimo-passo-paulo-abrao


3 - Comissão da Verdade pede a revisão da Lei da Anistia. Carta Capital, 2014. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/comissao-da-verdade-pede-a-revisao-da-lei-da-anistia-3171/.


A auto-anistia e a farsa de um acordo nacional. Marcelo Zelic, 2010. Comissão Pastoral da Terra. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/artigos/50-a-auto-anistia-e-a-farsa-de-um-acordo-nacional.


Lei da Anistia, herança da ditadura militar. Roberto Elias Salomão, 2014. Fórum Paranaense de Resgate da Verdade, Memória e Justiça, UFPR. Disponível em: https://forumverdade.ufpr.br/blog/2014/08/28/lei-da-anistia-heranca-da-ditadura-militar/.

STF é contra a revisão da Lei da Anistia por sete votos a dois. Portal do STF, 2010. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=125515.


bottom of page