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ANTES DA MEIA-NOITE



Terça-Feira [23:42]


Às 23 horas e 42 minutos de uma terça-feira, fui surpreendido com inusitados disparos contra meu peito. O desenrolar da cena foi catastrófico!


[23:44] Alvejado, vi-me estatelado na calçada com buracos pelo corpo. Enquanto isso, o sujeito saía de cena, portando consigo a arma do crime, juntamente a tudo que tirara de mim. Qual seria meu próximo passo? Definitivamente, não tenho essa resposta.


[23:45] A única coisa que me veio à mente foi que a dor aguda que se alastrara pelo meu tronco agora era semelhante à dor sentida na vez que levei um tombo no meio-fio, provavelmente em março do ano passado, quando as ruas estavam sempre escorregadias. Quero dizer, março definitivamente não foi um mês ruim.


[23:46] Muito pelo contrário, foi por conta dessa queda que pude me aproximar dos meus vizinhos, que rapidamente me socorreram e hoje são as pessoas mais próximas a mim. Espero que eles me vejam dessa forma também, já que ando meio deprimido e uma das minhas poucas alegrias é a companhia deles.


[23:47] Mas não estou tão deprimido assim. Confesso que a partida repentina da minha companheira não melhorou muito meu humor, e que a intensa movimentação de carros na rua da frente em momentos questionáveis da madrugada também não o torna mais radiante. Porém, tento sempre cultivar pensamentos positivos, como a gratidão por ainda não ter sido despejado devido a meses de aluguel atrasado.


[23:48] Pensando bem, talvez tenha demorado para ela me largar. Era algo previsível, até mesmo para meus olhos vendados. Devo ter acreditado demais naqueles sentimentos de que tanto falam por aí, que duram para sempre, ou algo desse tipo. Ainda assim, não é isso que vem me incomodando nos últimos tempos.


[23:49] Ontem, cheguei chateado em casa. Estava totalmente aborrecido com esses eventos pequenos e bestas que vão se acumulando ao longo dos dias, das semanas, e eventualmente dos meses. Eventos que me lembram do real motivo pelo qual faço o que faço, tirando do holofote as fantasias e os seres místicos aos quais dou vida para ter a disposição necessária para levantar da cama pela manhã.


[23:50] Ao passar pela porta da entrada, meus olhos foram sugados para uma fotografia antiga, que fica pendurada levemente inclinada devido a uma falha na moldura. Ela foi tirada no aniversário de um amigo muito querido e retrata o exato momento em que decidimos passar uma máquina de raspar cabelo em sua nuca ao fim do “parabéns”. Minha única reação foi pensar: “como queria que as coisas fossem boas como antes”. Nisso, não me contive e fui atrás de outras retratações da minha coleção de memórias.


[23:51] Parti para uma fotografia de um almoço em família, organizado bem na época que meus avós viviam o momento mais feliz do seu casamento e na época que os primos e irmãos estavam todos unidos.


[23:52] Novamente, aquela voz surgiu: “se pelo menos as coisas pudessem ter continuado do jeito que eram”.


[23:53] “Do jeito que eram”. E qual seria esse jeito mesmo? Tenho plena noção de que nosso amigo deixou de falar conosco por um tempo exatamente pelo que fizemos com ele naquela data especial. Também tenho noção de que as broncas que eu e meus primos tomamos a cada 10 minutos durante aquele almoço não são o melhor exemplo de uma lembrança perfeita. Então, devo me perguntar: “por que romantizo tanto os dias que ficaram para trás?”


[23:54] Por que olho recorrentemente para esses eventos imperfeitos e fantasio vivê-los novamente? Às vezes, sinto-me como se fosse um arqueólogo do meu próprio passado. Descobrindo infelicidade atrás de infelicidade, sorrindo e dizendo: “por onde vocês estiveram durante todo esse tempo?” Talvez essa seja uma das minhas imperfeições, esse hábito (ou mal hábito) de ficar desejando aquilo que está fora de alcance, de querer retomar o caminho já trilhado, apenas para valorizar um pouquinho mais o que passou batido à época. O que foi mal aproveitado.


[23:55] Talvez essa seja uma das minhas manias. A mania de ficar com a cabeça ocupada para evitar os problemas do agora. Problemas que hoje tenho medo de não saber como corrigir. Problemas que me assustam não por sua magnitude, mas pela possibilidade de serem grandes demais para minha capacidade atual, que não conseguirá achar a melhor resposta possível.


[23:56] A melhor resposta? Se ao menos houvesse solução. Acho que não posso dar esse nome às medidas que adotei até agora para tapar todos os buracos que se abriram ao longo da minha trajetória de vida.


[23:57] Alguns deles possuem remendos que não tenho nem coragem de dizer que fui eu que fiz.


[23:58] Será que posso dizer mesmo que fui eu que fiz, ou estava muito ocupado com a cabeça no ontem e alguém teve que tomar essas decisões por mim da maneira que conseguiu? Será que estava com a mente em qualquer outro lugar, menos no aqui e no agora? Menos no lugar que precisava de maior atenção, onde o incêndio está se alastrando, o sangue escorrendo, as balas penetrando, as pessoas se distanciando, a vida passando. A vida acabando.


[23:59] Será que ela acaba desse modo? Ou ainda posso retornar aos momentos em que tanto penso, colocando um fim a essa perturbação?


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Autoria: Rafael Diz Motooka

Revisora: Gabriela Veit

Imagem de capa: Close-up of clock


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