APENAS MAIS UM
- Vicky Auricchio Saes
- 18 de jul.
- 6 min de leitura

A luz matinal fraquejada e resiliente luta por um espaço no quarto escuro. Cada dia ela permanece, ingênua, na esperança vã de preencher o cômodo que igualmente permanece, teimoso, irreverente a seus serviços. Poderia até ser porque o fecho da cortina tinha quebrado há uns três meses, ou porque o tempo em casa, sempre tão tardio, fazia com que nunca precisasse de uma luz de verdade. Não quando o artificial é essencialmente cômodo. As luzes se acendem, sufocando de vez o tímido raiar.
Poucos minutos se passaram até que fosse colocada frouxamente em seu posto. Um dia de trabalho, como quase todos os outros. Os mesmos passos seguem a mesma rota da mesma rotina, do quarto, à cozinha, ao banheiro, à porta. O tilintar das chaves no bolso do paletó ditava um compasso irregular e contrastante com a seriedade do visual, que por fim se completa quando é ajeitada em algum ponto entre o desleixo e o sufoco.
Ela balançava pêndula com o ritmo apressado – que seria exaustivo, se não fosse tão usual. E não era assim tão ruim. A essa hora a luz já está mais confiante consigo, impondo-se imperativamente contra as estrelas do céu e da terra. Antes de submergir no subsolo, gostava de acompanhar o apagar dos últimos postes, como se a breve falência deles exigisse alguns segundos de solenidade. Já o aperto lhe incomodava. O tranco da carruagem metálica regia uma manada de apertos selvagens, disputando entre si o próprio corpo. Ombros e cotovelos amassam seu tecido já não-bem-passado causando-lhe um desconforto preocupado que a guiava para um devaneio de uma situação menos ultrajante. Talvez fosse mais fácil se não fosse igualmente uma fera agarrada à haste de metal acima.
O calor claustrofóbico desse espaço ínfimo tecia uma contradição com o ar gélido e solitário do mundo afora. Mas tudo bem, esse clima ainda era seu favorito. Sem dúvida deve ser muito menos agradável estar assim tão trajado sob os 38° do meio-dia. Também não é como se isso não fosse uma antecipação de daqui a algumas horas. Pelo menos ela está sendo útil, o que é indubitavelmente preferível do que ser largada em um canto qualquer. Qualquer função é melhor que função alguma e ainda assim, tudo bem, porque não era tão ruim. Sentia-se importante e isso compensava, ou devia compensar, afinal não era lá um tecido fino de boa marca e tudo o que poderia ser se resumia a sua forma. Simples, mas eficaz. Não precisava ser mais que um acessório de formalidade barata. Barata como ela própria.
O grande prédio estendia-se à sua frente, ostentando uma ousadia imperativa que só aqueles que tentam alcançar o sol possuem. Daqui de baixo, realmente parecia que ele tinha conseguido consumir o rei dos céus e agora exibia arrogantemente o brilho preso em seu contorno. Teria ficado alguns momentos a mais para admirar a cena, porém sua locomoção é impotente e a condiciona a seguir sempre um caminho que não é seu. E novamente, é forçada a ultrapassar as portas do prédio, como faz todos os dias, e seguir para o seu posto usual e monótono. Se bem que monótono não seria a palavra certa, seria até injusto dizer que ela está presa a uma função chata e sem sentido, não. É um trabalho repetitivo e lento, mas tem seus benefícios. Nem todos podem ter uma vista tão bela em seu local de trabalho. Pensando assim, ela tinha mesmo é sorte.
Alguns cumprimentos rápidos pelos corredores demarcam o caminho do Hall da entrada principal ao elevador central, onde permaneceu, e permanecerá o resto do dia. É pequeno mas é aconchegante e tem uma vista esplêndida… A grande tela de vidro a sua frente marca a divisória entre um mundo e outro, separando o ínfimo do imenso, o real do utópico, e o calor, da brisa.
O primeiro hóspede chega, rosna um número e não lhe dirige o olhar, que se fixa nas portas metálicas fechando, de costas para a luz. O tremor no chão indicava o 1° serviço do turno. As pequenas luzes nos botões da parede acendiam uma a uma junto a ascensão do cômodo, que oferecia agora a primeira visão de superioridade do dia. Mas é vaga, e em poucos minutos já está de volta ao chão. E novamente. E mais uma vez. Cada minuto guiava a estrela a sua frente alguns milímetros acima, até que em seu auge as horas passadas parecessem prole de um limbo nauseante, no qual o caminhar do sol renuncia ao horizonte e assume um percurso vertical, quase como uma cortesia a ela e a seu dia linear.
Uma cortesia como essa deve compensar a quentura abafada e o brilho ofuscante que infestava cada canto ao seu redor como um lençol terno e cruel que gentilmente cobre sua superfície. Não bastasse o desconforto da situação, alguns hóspedes acabam sendo piores que outros. O último que passou gritava tão alto ao telefone que resquícios de saliva infestaram seu tecido, sequer importando-se com as consequências de seu rastro úmido e mal educado. Mesmo se pudesse falar, ainda não poderia falar nada.
O calor a aperta e é afrouxada um pouco, apenas o suficiente para atender o limiar entre não sufocar e não perder a compostura. Se pudesse desejar algo, desejaria poder refletir a luz ao invés de absorvê-la, mas acaba por carregar o fardo da cor que se impõe irreverentemente a sua escolha. Talvez não sofreria tanto se tivesse sido feita de um outro jeito, mas não cabe mais a ela entristecer-se pelo que não pode mudar. Até porque, o declínio da estrela arrasta consigo o próprio calor, e pouco a pouco seu sobe e desce ganha um tom alaranjado e morno, até mesmo agradável. Através de um olhar embaçado, os tons poentes parecem mesclar-se em um quadro abstrato, empoderando uma vanguarda própria, igualmente triste e bela em seu padecer. Mais um hóspede deixa o recinto. Talvez o último do dia.
Mas não. Hoje algo havia mudado. Um homem aparece à porta, mas não entra. Diz algumas poucas palavras e retira-se pouco antes de o acesso ser bloqueado pela conversão das paredes de metal. Ninguém entrou, mas estavam subindo. A essa altura, mal podia ver as estrelas da terra em sua batalha contra a luz, exibindo orgulhosamente toda a sua artificialidade necessária. O piso para, as portas abrem, e é conduzida a um caminho que nunca percorreu antes. Um caminho na superfície.
Vibrava com o bater de um peito que não era seu. Não que tecido tivesse coração. Por mais que o próprio coração seja, em seu cerne, um conjunto de tecidos. Não sabe bem o que aconteceu. Tampouco recebeu explicações. E não muito tempo após ter estado no topo, vê-se de volta ao térreo, como se isso tivesse sido apenas mais uma parte de sua rotina diária. Mas não dessa vez. O turno acaba, junto a naturalidade da luz, mas diferentemente dela, não mais voltará com o amanhecer.
A volta para casa era a mesma. Os mesmos passos, na mesma direção, no mesmo caminho de todos os outros dias, mas agora, pela última vez. Foi tirada do colarinho e era segurada com uma leveza frouxa, arrastando-se quase próxima o suficiente para tocar o chão, como se pudesse ser solta a qualquer momento.
Mas não foi. Chegou em casa na mesma hora usual, mas não foi colocada confortavelmente em sua gaveta. Foi deixada sobre a mesa, desprovida de qualquer cuidado. Sabia que não era um tecido fino de boa marca, sabia que era simples e barata. Não tinha grafias ou detalhes, nem bolinhas coloridas ou listras angulares. Mas era útil. Tinha que ser útil. Se não fosse, não seria nada.
A luz matinal volta aos poucos. Ainda resiliente e ainda fraca, lutando entre as imponentes frestas e alcançando pequenos e limitados pontos no quarto. Muitos ascenderes e padeceres já haviam passado. E ela ainda permanecia ali.
Foi então que abruptamente foi pega, assim desprevenida, e de súbito foi se aproximando da janela. Uma rajada quente ilumina o ambiente e realça o ar pesado e empoeirado, apresentando cordialmente o debilitado azul de um céu recém acordado da noite. Em um movimento rápido, é amarrada a cortina, juntando seus tecidos em um nó bem menos elegante do que estava acostumada. Agora sentia-se mais como corda do que como gravata. Mas agora, a luz resplandecia as fibras de sua composição, banhando-a em um calor terno.
No fim, não mudou muito. Ainda podia ver o sol, dessa vez, estático. Ainda poderia ser útil.
Autoria: Vicky Auricchio
Revisão: Ana Clara Jabur
Imagem da capa: Pinterest
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