No texto de hoje, nosso redator Felipe Takehara traz uma crônica em que o olhar da protagonista foi comprometido pela maldição da "coisificação". O quanto de nós ainda é humano, se enxergamos os outros como coisas? Venha encantar-se com "As coisas".
[...] E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.
Álvaro de Campos
Ao porteiro que antes lhe disse "Bom dia", não disse nada. Seu olhar se dirigiu a ele, mas sem a intenção de vê-lo, tampouco de lhe responder. Parecia querer enxergar aquilo que estava por trás do homem, da parede, da cidade, da esfera que é o mundo - sem cordialidade nem empatia - dessas não se lembrava.
Seus passos rápidos pareciam não reduzir a distância que a separava do ponto de ônibus. O caminho era relativamente breve, mas a depender do humor que se sente - breve, longe, curto, distante - tornam-se tudo a mesma coisa, sabemos disso. A cabeça baixa deixava claro que não esperava encontrar algum conhecido (e se o avistasse, fingiria não saber quem é); as pálpebras, escuras e cansadas, expressavam os humores que a madrugada e os insones conhecem bem: estava cansada, não se sentia muito bem - estava sozinha.
Nada havia de estimulante em seu caminho. Também isso não era culpa sua. Não há nada extraordinário no escritório em que trabalhava, na porta giratória que dá acesso à rua, nos degraus, na pequena e rápida curva à direita que a coloca no rumo certo e, é claro, nas pessoas com quem cruza ao caminhar. Não é que estava triste, não. Era apenas melancolia, mais frequente em uns do que em outros, mais duradoura em uns do que em outros, inevitável, mas necessária.
Contudo, esse dia lhe surpreendeu. Ela andava com o olhar desinteressado quando uma espécie de transparência ubíqua e vertiginosa desacelerou o seu andar. Reparou que alguma coisa estava errada. Reparou que as pessoas com quem cruzava não pareciam pessoas - não as sentia como pessoas. Espantou-se! Como assim?
Estava a ver a rua, o espaço da rua, com uma nitidez absoluta. Identificava tudo o que havia. Identificava a forma retangular dos paralelepípedos na calçada, o círculo nas rodas dos veículos, as cores, as curvas, os conteúdos. Não estava, pois, cega, nem alucinando. Mas percebeu que algo não estava conforme.
Viu um casal jovem caminhando com seus filhos, crianças sorridentes e bem vestidas. Quer dizer, viu apenas isto e mais nada - viu o que estava antes disso e mais nada. Ela identificou que ali ao seu lado haviam presenças, sombras, corpos semelhantes ao seu, viu olhos, bocas, narizes, troncos, pernas, dedos e braços - viu apenas a forma de tudo isso. Agora, o significado desse conjunto ela não viu, pois não a ocorreu, como de hábito, a conclusão (ainda que efêmera) de que em primeiro lugar eram pessoas, depois imaginar quem são, e o que é que faziam ali.
Não imaginou se estavam voltando da escola, indo ao supermercado, ao médico, ao restaurante, ou passeando. Não conseguiu imaginar o que eles poderiam estar pensando, se tinham preocupações, sonhos, medos, vontades ou se até mesmo sentiam dor. Na verdade, palavras como "casal", "filhos" e "crianças" são sofisticadas e gentis demais para descrever o que ela realmente percebia. A partir dessas palavras, que até pouco tempo em sua mente se desdobrariam, naturalmente, em proposições mais complexas (como é comum a todos), "essa criança se parece mais com o pai", ou "o rosto da mulher é bonito", não conseguia pensar em nada.
Em nada! Como se sua reflexão, a própria atividade de pensar, houvesse paralisado diante da imagem de pessoas, como se tivesse se tornado muda. Agitada, ela não entendia o que estava acontecendo. Compreensível, pois perceber uma pessoa é um fenômeno rigorosamente singular, muito distinto daquele de perceber um ente como uma rocha, um livro, ou uma orquídea.
Por mais que se esforçasse não conseguia atribuir àquelas pessoas nada além do aspecto de coisa. Tentou entender como havia chegado àquela situação. Sua memória mais recente era de que estava a desviar das outras pessoas do mesmo modo como se fossem obstáculos, de fato coisas na calçada: postes, crianças, lixeiras, idosos, árvores, homens, bueiros - dirigia-se a eles do mesmo modo - tudo era coisa.
Não, isso não pode ser! ela pensava. E começou a procurar pelo critério, o indescritível critério que distingue o homem de tudo. De início sobrevieram premissas mais simples: um homem não é uma coisa. Não, é a partir do homem que as coisas são. Ora, a partir do que, então, o homem é? Um homem também não é um animal. Os animais são melhores do que nós, disse para si mesma. Dostoiévski escreveu: "às vezes, comparam a crueldade dos homens com a das feras; isso é um insulto às feras". É razoável assumir a nossa crueldade como o que nos distingue de tudo?
Talvez seja a crueldade e tudo o que ela inspira. Não deve haver algo mais humano do que a indiferença que ela gera, pensou. Um torturador é indiferente à dor que ele causa a seu "objeto", independentemente do sofrimento que lhe causa. Os animais, ainda que entre si se tratem frequentemente com violência, não são conscientes de suas ações - o instinto é o que lhes move, não a razão. Ora, talvez seja razoável aceitar a indiferença como o que distingue os homens na Natureza, pois não há mais nada nesse mundo que ao mesmo tempo se afirma consciente de si, que se diz ter um instrumento tão poderoso quanto a razão, e está por aí a testemunhar a barbárie cotidiana que lhe tritura, que lhe corrói, sem se incomodar. A quantos mendigos pessoas eu permiti a fome, insensível, negando-lhes minhas moedas...
O conteúdo humano que nos define se encontra em dois estados: num primeiro, em que a indiferença nos domina, e num segundo, em que ela resta parcialmente inerte. Paradoxalmente (tragicamente) o que identifica os homens como eles são, isto é, a indiferença, permite que esses mesmos homens não se identifiquem a si mesmos, ou seja, que eles se tratem entre si como coisas. Surgiria, assim, tudo o que nós somos, principalmente a barbárie: pois a uma coisa não se atribui direitos, dignidade, nem compaixão - uma coisa se trata como coisa…
Ela havia parado de caminhar. Não suportava sua própria reflexão. Depois de pensar tudo aquilo, constatou que havia perdido o juízo. Quer dizer, como acreditar que a sua indiferença é o que tornava os outros coisas? Estava ela tão distante assim da realidade? - dos seus semelhantes? Deveria haver outra causa. Talvez sua solidão havia transformado o mundo em coisa, para quem ela, como sujeito, isolada de tudo, restou apenas observar - suspirar diante de seu objeto - e não vivê-lo. Ou ao contrário: quem sabe a solidão transformara ela mesma em coisa - desnecessária… descartável! - a quem o mundo, num gesto de misericórdia, apenas permitia existir.
Esse último pensamento a dominou. Desnecessária? Descartável? Tentou se lembrar, inutilmente, o que a tornava única, qual era a diferença que fazia no mundo. Talvez ela seria realmente coisa - coisa - aquilo cuja ausente importância nos conforta em não precisar atribuir-lhe um nome - aquilo que nem merece nome!
Imóvel, fechou os olhos esperando que a vertigem e o medo passassem. Um ronco alto de motores a desperta: o ponto estava logo adiante. Viu seu reflexo nas janelas de um ônibus que passara - ela estava ali! Sim! Ao menos conseguiu reconhecer-se, mas ainda não os outros. Naquela imagem urbana de prédios, movimentos e calçadas, ela estava ali - ela era alguém. Olhou para seus pés, sentiu suas mãos suando, mas viu que estavam ali, concretas e reais. Aliviada, sentiu uma leve mão sobre seu ombro.
A sensação do calor que ela transmitia de súbito a fez se recordar de memórias, refúgios, horizontes e lugares queridos - de tudo que era familiar e confortável. Olhando para a dona daquela mão, se assustou: num primeiro momento, teve dificuldade de identificar se ali havia um ou uma miríade de rostos (pensava enxergar a Humanidade); mas lentamente, a transparência que lhe entorpecia começou a se dissolver. Lentamente percebeu, aliviada e sem desespero, que o rosto que lhe salvara, o rosto que lhe havia retornado à paz e seus semelhantes, pertencia a uma pessoa, a uma pequena senhora que estava ali, esperando o ônibus e perguntando: "Olá, está tudo bem?"
Foto da capa: Yves Tanguy - Day of slowness
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