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AS MOSCAS

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(Música para a leitura: 

“Mosca Na Sopa” – Raul Seixas)


Nos viras e mexes da vida, me lembrei de uma história de quando passei um tempo no Canadá, muito antes da FGV. Apesar das aparências, 6 meses de tundra e neve não foram tão horríveis quanto parecem ser e me renderam alguns causos. Mais especificamente, lembro de uma aula de biologia na qual estávamos estudando nomenclatura científica, tudo em latim. A professora, Sra. Goodman, ia colocando nomes na lousa e pedia para chutarmos o que talvez seria aquele animal.


O primeiro nome que ela colocou foi justamente Musca domestica. Na hora eu levantei a mão e, em meio a (pasmem) gigantesca confusão do resto da sala sobre o que diabos era uma “musca”, eu disse que essa eram as moscas. O que se seguiu foi um olhar de “ihh, lá vem o nerdola...” do resto da turma e um sorriso de aprovação da Sra. Goodman. Está certo que, para aqueles que falam essa língua mais restrita, que é o inglês, a vida toda, o latim parece uma coisa muito distante. Mas para nós, velhos de guerra da gramática da crase, dos porquês e da saudade, estava na cara de que animal estávamos falando naquela aula. Mas também pode ser por outro motivo: por aqui, já estamos muito acostumados às moscas, afinal, estão por todos os lados.


É o tipo do animal em que a gente nem pensa muito, mas sempre percebe quando ela chega, zumbindo. Irritando. Atiçando por aí. Desde a carne podre ao cocô do cavalo do bandido, ela sempre aparece. Recentemente, por sinal, não sei se você percebeu, mas elas têm aumentado. E não, não me refiro ao fato de que daqui a pouco o inverno acaba e o calor tropical toma conta. Estou falando, afinal, das moscas.


Durante os próximos dias, teremos um dos eventos mais aguardados dos últimos anos: o julgamento do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro e de mais sete réus por tentativa de golpe de Estado após as eleições gerais de 2022. Um julgamento que, para um país como o Brasil, não é fácil de se engolir. Um país que já comeu tanta coisa, e tanta mosca. A Procuradoria-Geral da República acusa os réus de cometerem os crimes de organização criminosa armada, golpe de Estado, tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado(1) e, também acredito, de serem responsáveis pela maior ameaça à democracia brasileira desde o golpe de 1964. Mas para além de conversar sobre isso, precisamos falar de uma coisa maior e ainda mais perigosa: as moscas.


A mosca é o tipo do bicho pequeno, inofensivo, mas que irrita, coça, zumbe na sua orelha no meio da noite, te levando a loucura. Mas, no fim, é só uma mosca. Pelo menos, é o que muita gente pensa. Apesar de um passado que nos condena como nação, a memória do coletivo tende a ser falha. Existem aqueles que se esforçam para lembrar, mas também há aqueles que fingem que tudo aquilo faz muito tempo, para que se preocupar? Afinal, ele é tão inofensivo…


Reconhecer o problema é apenas metade da solução. Se nem nisso podemos concordar, não tem nem por onde começar a curar as feridas profundas de nossa identidade como povo. Democracia não é uma simples tomada de decisão, é uma cultura, é uma moral, algo que é constituído através de anos e anos. A promulgação da Constituição de 1988 não faz nem 40 anos, mas já se pode dizer que a nossa democracia passa por uma crise de meia idade profundamente perigosa. E nós somos parte do problema.


Outro fator que nos assombra: temos uma péssima tendência de superestimar algumas moscas e subestimar outras. Temos travado uma grandiosa batalha entre conterrâneos sobre qual o real tamanho da mosca. Ela pode ser ou uma ameaça existencial ou uma simples mosca.

A ideia de distrair do problema central por meio de uma “cortina de fumaça” já é velha, mas uma daquelas ideias batidas que sempre funciona. E o fato do Ministro Alexandre de Moraes estar no lugar “errado” na hora “errada” foi perfeito para que, por A + B, ele seja o grande culpado de tudo isso. Afinal de contas, não é ele o ministro que manda prender e desprender ao seu bel prazer? Aquele que foi juiz e investigador no inquérito das Fake News? Como pode um homem desses fazer tudo isso? Só tem uma explicação: ele é o grande ditador do Brasil. Acabou a democracia, e é tudo culpa do “Xandão”. Patriotas, só mais 72 horas e a Lei Magnitsky, o “03”, o super-homem e o megazord fantasmagórico do Olavo de Carvalho com o Enéas irão livrar o Brasil desse mal.


Para início de conversa, você, cidadão particular com seu CPF e vida mundana, ter medo do “Xandão”, é, com todo respeito, inflar perigosamente seu senso de importância. Falar o que pensa (ainda mais criticar) não é o problema. O problema é deixar as moscas entrarem, porque elas bagunçam tudo. As instituições têm falhas, ninguém nega isso. Eu mesmo digo com tranquilidade: por mim, a gente refazia toda a estrutura do STF, por que acho que do jeito que está é horrível. 


Porém, aqueles países que são mais bem resolvidos com seus monstros (ou moscas) têm uma forma muito mais tranquila de lidar com os ataques descabidos. Mas esse não é o nosso caso. Quando se ataca uma instituição, se ataca o sistema que ela participa e, com ele, mina a confiança em nossa estrutura democrática que, por quase 40 anos, temos tentado erguer. E quando ela é corroída por completo, as moscas tomam conta. Daí não vai ter mais ataques, nem críticas, nem sugestões e nem comentários. Vai ser só chumbo mesmo.


Mas, quem liga? As moscas vão continuar sendo só moscas. Os problemas vão continuar sem solução. E esse suposto “chumbo” é invenção dos comunistas, que (cá entre nós), mesmo que tivesse existido, provavelmente foi porque fizeram coisa errada e estavam merecendo. E é aí que as moscas tomam conta.


Já eu sou um cara pragmático, ligo direto para um dedetizador. Mas isso não é o suficiente, pois já dizia Raul Seixas: “E não adianta vir me dedetizar/ Pois nem o DDT pode assim me exterminar/ Porque cê mata uma e vem outra em meu lugar”.


Elas vão sempre estar por aí. Esse julgamento é apenas um começo, é um aviso para todos aqueles que pensem que estamos com a guarda abaixada e que vamos deixar a democracia ruir mais uma vez: nós não estamos. Independente do resultado (apesar de que tenho meu preferido), isso prova que somos capazes de remediar pelo menos um pouco a ferida, mas o caminho é longo.


E as moscas, ahh… Elas estão por todos os lados.



Fonte:




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Autoria: Enrico Romariz Recco

Revisão: Artur Santilli e Ana Clara Jabur

Imagem da capa: Nicolas Floriano


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