O texto de hoje é da Gabriela Pinheiro, nossa redatora e membra da área de projetos! Para descontrair, a história de dona Mariana e o Sr. José quanto ao desconfortante assobio que o trabalho da colheita de algodão originava.
Sentada em sua varanda, cabelos castanhos semi-encaracolados e vestida de azul claro. Marianna apoiava-se contra a coluna. No seu rosto, uma cara de reprovação enquanto as primeiras gotas de suor desciam por trás de sua nuca. Não entendia porque seu irmão resolvera viajar justo no dia em que o novo empregado chegaria.De relance, conseguia perceber o campo branco que designava a fazenda como a de sua família. A quantidade de algodão era tanta que quem olhasse de longe, protegido do calor, talvez até achasse que fosse neve. Quem dera a ordem natural optasse por manter a fazenda num estado constante de congelamento, aí Marianna não teria de passar por tanto estresse desnecessário.Fechou seus olhos e suspirou. Quanto tempo fazia que estava ali fora? Trinta minutos? Uma hora? Quanto importava se o rapaz ainda não chegara? Sua impaciência aumentava na mesma medida em que suava. Como odiava o calor, o excesso de temperatura que prendia as roupas ao seu corpo, os dias terrivelmente longos que tiravam seu sono já de madrugada….
– Com licença...senhora Morás?
Marianna piscou. Na sua frente estava um rapaz. Vestia uma camisa branca um pouco larga demais, junto com uma calça marrom que estava começando a se desfazer e um chapéu de palha. Sua pele era bronzeada, porém coberta de cicatrizes e seus olhos de um castanho cor mel que combinavam com seu cabelo, chegando quase em seus ombros.Demorou alguns segundos para se recompor.
– Sim.
Ele tirou o chapéu. – Sou José. Falei com o Sr. Fernando sobre o trabalho.
Marianna mordeu a parte inferior de sua bochecha. Se Fernando havia falado com ele por que raios teve que ficar esperando o ser chegar? Seu irmão conseguia passar dos limites todos os dias.
– Sim, sim. Bom, o campo tá ali, tudo que você deve precisar também deve estar ali jogado em algum lugar. Não me incomode. Com licença.
Ela voltou para dentro da casa, o bafo de calor ainda mais intenso do que estava lá fora e não olhou para trás. José permaneceu em pé, no mesmo lugar por mais alguns instantes. Era isso mesmo? Arranhava seus dedos, parecia que sim.
Suspirou, colocou seu chapéu e caminhou até o campo. Realmente, havia muito algodão. Tirou suas luvas do bolso e começou a analisar a planta, até que percebeu que não tinha um balde onde colocar a colheita. Lambeu seus lábios e olhou para a casa. Ela com certeza não ia gostar de ser incomodada com isso. Madame do jeito que era, provavelmente nem saberia onde ficaria o balde.
De repente ouviu o barulho da abertura de uma porta. O sol poderia não interferir nas temperaturas de ambientes internos, né? Se Marianna achasse que estava quente fora de casa, ela nem imaginava o forno que estava lá dentro. Sentou-se numa cadeira na varanda e voltou a fazer seu bordado.José a observava de longe. Não seria a melhor estratégia abordá-la agora. Ela tinha acabado de se sentar e parecia ainda mais irritada do que quando conversaram pela primeira vez. Virou-se de volta para o campo e começou a assobiar. Melhor esperar uma musiquinha, ou até duas, antes de chamar a patroa.E o dia não poderia mesmo melhorar. Primeiro, a hora perdida esperando esse cara que claramente não precisava da menor orientação, depois esse calor infernal que obrigou que ela se retirasse pra varanda e agora, o rapaz assobia.Colocou seu bordado pro lado e levantou-se.
– Ei!
José continuava assobiando.Bateu seu pé esquerdo e deu três passos para frente. – Ei!José continuava assobiando.Marianna soltou o ar e desceu até a beira do campo.
– EEI!
José piscou e voltou-se a ela. – Senhora Morás…?
– Por favor. Pare. De. Assobiar. Estou fazendo um bordado e esse barulho...me distrai.
– Certo.
– Obrigada. – Marianna fez que sim com a cabeça e começou a voltar para a varanda.– Espere.Franziu as sobrancelhas e mexeu sua cabeça para o lado.
– O que foi?
– Eu precisava de um balde...
Os próximos dias foram melhores que o primeiro. Com José completamente equipado para a colheita, aos poucos o campo ia ficando menos branco. Mas, apesar do aviso, continuava com os assobios.Era natural, começava a trabalhar e logo menos, a assobiar. Acompanhava seu ritmo, dava um pouco mais de alegria ao que fazia. Mas era só avistar a patroa de relance que José parava e tentava substituir o assobio por outro hábito: cantarolar, brincar com os pés, fazer sons com a língua… mas tudo que tentava parecia poder irritá-la mais ainda, então parava e continuava a trabalhar. Colhia e guardava, colhia e guardava – quando esquecia do incomodo, voltava a assobiar e a sequência inteira se repetia.
Na primeira vez em que o som estridente voltou aos seus ouvidos, Marianna se furou com a agulha. O sangue manchou seu bordado, dando ao seu girassol uma folha vermelha. Porém, optou por evitar o escândalo e continuar trabalhando. Os assobio de José não eram constantes. Paravam, eram substituídos por ruídos esquisitos e depois voltavam na mesma melodia.
O calor foi diminuindo e de repente dava para ela ficar bordando dentro de casa. Mas, Marianna permaneceu na varanda, seus cabelos presos e lábios levemente puxados. Terminou seu bordado, o girassol semi-vermelho e começou outro. José continuava colhendo, mas ainda não achara uma maneira de substituir seu assobio. Repetia as técnicas, tentava inventar novas, mas cada vez que a via, sentia os nós formarem no seu estômago e as gotas de suor se multiplicarem. Por favor, não me despeça.A melodia interrompida continuava incomodando, mas não pelos mesmos motivos. Agora, o que irritava de fato, era os zumbidos que se ocupavam das pausas. Marianna não fingia entender o que José queria fazer, mais começou a torcer para que deixasse dessas estranhezas e ficasse apenas com o assobio.
Na terceira semana, não aguentou mais. Chegou na fazenda e, ao invés de dirigir-se diretamente ao campo, foi à varanda.
– Minha Senhora, obrigada pela oportunidade, mas creio que vou buscar um emprego em outro lugar.
Marianna arregalou os olhos. – Como assim?
– Desculpe-me. Fico com medo de irritá-la com meus assobios e isso acaba prejudicando meu trabalho e a sua colheita. A senhora merece melhor. – Pausou e coçou sua cabeça, olhando para baixo. –Pode deixar que depois me acerto com o senhor Fernando e vejo se consigo um outro rapaz para me substituir amanhã. Boa tarde. – E começou a andar em direção à rua.
A princípio, Marianna não sabia o que fazer. Não havia reclamado da porcaria do assobio por duas semanas. Da onde veio todo esse desconforto? Ficou um tempo observando-o partir, sem saber que reação deveria ter. Estava incomodada, mas não sabia de certo o porquê. Correria atrás dele? Mas por que, se ele já garantiu um substituto e falou que acertaria com seu irmão? Entraria em casa?
Na dúvida, ficou lá, observando-o, até desaparecer.No dia seguinte, veio Flávio. Marianna continuou sentada na varanda, fazendo seus bordados, mas quando ele começou a trabalhar, percebeu que suas mãos não se mexiam. Do nada, esqueceu o desenho que tentava fazer. Olhou para frente, Flávio estava colhendo. Trabalhava mais rápido que José, era maior, parecia mais confiante nas suas habilidades e com certeza renderia um maior lucro. Mesmo assim, Marianna não gostou. Algo faltava.Levantou-se e entrou na casa. O calor, que há tanto tempo havia acalmado, voltara. Suspirou e saiu. Sentiu as gotas de suor descerem por sua nuca e o tecido do vestido mais pesado contra sua pele. Olhou para seu bordado, depois para a cadeira, mas não queria voltar a fazê-lo. Frustrada, apoiou-se na coluna. Ficou um tempo assim, parada, sem fazer nada.
De repente, começou a assobiar.
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