A partir do dia 20 de julho, os shoppings foram tomados por pontinhos cor-de-rosa, graças à estreia de um dos maiores sucessos de bilheteria do ano: Barbie (2023), de Greta Gerwig. Curiosamente, nas filas, não se via mulheres questionando seus parceiros do quanto eles sabiam sobre aquele universo rosa. Perguntas como “quantos filmes da Barbie você assistiu?”, “quem é Bibble?” ou “como assim você não conhece os originais? Nem A Princesa da Ilha?” não pairavam no ar em tom acusatório — aliás, elas simplesmente não pairavam e ponto. Aquele ambiente — mesmo que considerado tipicamente feminino — me pareceu bem democrático. Sinto o oposto vindo do mundo geek, de super-heróis e cientistas famosos (sim, estou falando de vocês homens que agora se denominam especialistas em Oppenheimer — sei que 98% de vocês não sabem nada de física e odiavam a matéria na época da escola).
Mesmo assim, um ambiente tão convidativo não foi bem aceito por muitos homens. Dessa vez, quem ocupava as salas de cinema não vestia trajes de Jedi ou camisetas da Liga da Justiça, e sim rosa. Quem dominava o repertório e captava as referências eram, em sua maioria, mulheres. E, aparentemente, existe muito incômodo na ideia de que esse grupo e seus estereótipos tenham algum protagonismo. Não demorou para que mulheres de todas as idades usando os mais diversos tons de rosa para assistir o filme fossem consideradas imaturas, infantis. Aparentemente, nós não temos o direito à infantilidade, à nostalgia — seja por meio das capas Jedis ou do pink. Aliás, temos direito a poucos prazeres na vida, quem dirá propriedade. Por isso, neste texto, peço a liberdade poética de falar para com mulheres e usar pronomes femininos, apesar de convidar todos os homens para a leitura — quero que, pelo menos uma vez, elas sintam que algo é feito para elas, ou melhor, é delas. Aqui é um espaço feito e pensado em vocês, bem-vindas.
Primeiramente, preciso ser honesta sobre meus vieses: minha sina é aclamar Greta Gerwig. Não à toa, foi assim que consegui esse espaço de expressão escrita. No entanto, Barbie teria chamado minha atenção de qualquer forma, e eu provavelmente nem repararia em quem o dirigisse, como não reparo com quase todos os outros filmes. Para muitas de nós, a ideia de se reconectar com um elemento tão marcante de nossas infâncias é única e quase inédita. Confesso que quando descobri que a extrema direita e os extremistas religiosos estava chamando o lançamento de Greta Gerwig de “lacração” e “doutrina feminista”, me animei ainda mais, mesmo sabendo que se tratava de uma análise exagerada. Ainda que com expectativas altas, o filme foi uma boa surpresa, deixando a desejar por ter apenas duas horas de duração, que passam em um piscar de olhos.
Para contextualizá-las, Barbie se passa em dois cenários principais: o mundo real — patriarcal — e a Barbieland — uma espécie de matriarcado, onde as Barbies exercem todos os cargos e os Kens são… apenas Kens. Desde o início, é impressionante a sensibilidade da diretora e da equipe criativa ao retratar como seria esse mundo imaginário com base nas brincadeiras de faz de conta. As Barbies têm pés naturalmente curvados em forma de salto, flutuam para mudar de andar, se recuperam em segundos, dirigem sem mãos no volante e executam coreografias elaboradas sem esforço. As mais gastas têm marcas de canetinha no rosto e cortes de cabelo inusitados. A parte mais interessante é que, assim como nas nossas brincadeiras, elas são o foco, e os Kens são secundários.
Existe uma ironia amarga nessa dinâmica: quando pequenas, nos deparamos com uma imagem dessa boneca empoderada, protagonista, capaz de exercer todos os trabalhos do mundo sem nem se cansar. A maturidade nos mostra um mundo bem diferente, onde somos secundárias e, com muito esforço e cansaço, algumas de nós ocupam espaços de destaque como os homens — ou quase isso, já que ainda temos de lidar com expectativas maiores e margens de erro menores. Esse cansaço não passa despercebido no filme: a humana principal, Gloria (America Ferrera), só tem um desejo em relação às Barbies: que a figura modelo seja uma mulher comum, sem o peso de ser extraordinária e imbatível em suas costas. Ela quer poder se sentir minimamente bem sendo imperfeita, medíocre e perfeitamente ordinária — ou seja, humana. Talvez as mesmas Barbies que a inspiraram quando criança possam fazer ela se contentar com sua humanidade e se perdoar por ser uma mulher exausta em uma sociedade patriarcal.
Em contraste com a realidade, a posição de inferioridade dos Kens é muito bem explorada por Gerwig, que, ao colocar figuras masculinas em um contexto de apagamento, mexe com a empatia inconsciente e coletiva dessa sociedade. Essa troca de papéis é uma grande alfinetada ao público, testando sua comoção quando a opressão é direcionada a homens (fictícios), ao invés de mulheres (reais). Ponto para Greta: ao sair do cinema, ouvi “coitados dos Kens”, como se, naquele universo, eles não representassem uma pequena parte da nossa condição como mulheres do mundo real. Por pequena parte, quero dizer o apagamento e falta de protagonismo — afinal, os Kens não são proíbidos de trabalhar, não sofrem assédio sexual, violência doméstica ou algo remotamente parecido com feminicídio. Ainda assim, apesar do filme abordar explicitamente a prejudicialidade do patriarcado sobre as mulheres, são os Kens que são dignos de pena e compaixão, mesmo que essa seja a primeira vez e o único contexto no qual os homens — ainda que bonecos — são colocados em segundo plano e mesmo que essa violência seja a menos preocupante no nosso contexto de desigualdade de gênero. Mais implicitamente, o filme apresenta as consequências negativas do patriarcado na vida dos homens, quando Ken (Ryan Gosling) admite não gostar de estar no comando e de ser um macho man, como exigido pela estrutura patriarcal.
Por mais que os Kens sejam utilizados para escancarar essa dualidade, é quase reconfortante termos algum espaço de protagonismo, já que ficamos para trás em todos os outros. Aqui, é importante ressaltar a ausência de recorte de raça e classe do filme. Existe sim uma perspectiva branca do feminismo, muito influenciada pela diretora, que é uma mulher branca e se baseia em suas próprias experiências como tal. Assim, é impossível descrever Barbie como um filme que aborda profundamente os aspectos e realidades sociais do feminismo, ainda que conte com muitas camadas. Esse elemento foi super-explorado pela coluna “Divirta-se com o filme da Barbie, mas não se engane: ele não tem nada de empoderador”, de Fabiana Moraes no Intercept Brasil. Nele, a autora questiona onde estariam a Barbie Diarista, a Barbie entregadora de Ifood ou a Barbie moradora da periferia de Recife, e critica o filme por sua ‘superficialidade’, típica da vertente liberal do feminismo. Apesar de concordar em parte com Moraes, não deixo de divergir bastante.
Da minha perspectiva, Barbie nunca se propôs a ser uma obra complexa, digna de ensaios sociológicos ou filosóficos. Desde o início, ficou bem claro — ao menos a mim — a intenção de despertar nostalgia e risadas, ainda que por meio de um humor ácido e que tange a dinâmica patriarcal, que é indispensável no contexto da boneca. Me incomoda um pouco que seja exigida tamanha complexidade, principalmente quando nunca é discutido o papel social dos filmes de super-heróis. Por que um filme que representa um estereótipo de tudo que agrada o feminino não pode ser apenas divertido? Por que nós mulheres não podemos aproveitar algo não revolucionário? Será que também temos de carregar a cruz da visão e da produção crítica nas costas o tempo todo? Só assim o entretenimento feito para nós é válido?
Por fim, Barbie também é uma crítica à imagem de “empoderamento” vendida pela Mattel, apontando a incoerência da empresa, que só teve duas CEOs mulheres em sua história, e a incompatibilidade das bonecas com o mundo real. As Barbies acreditavam que sua existência, por si só, era capaz de erradicar a desigualdade de gênero, e se surpreendem com a realidade — demonstrando, implicitamente, que os ideais do feminismo liberal não contemplam uma série de fatores. Ainda, Greta ironiza a militância performática na cena em que as meninas (que, ao meu ver, simbolizam a geração Z) definem a Barbie como fascista, reproduzindo um discurso radical completamente inadequado para o contexto.
Assim, Barbie engloba uma série de discussões não muito desenvolvidas, mas que abrem espaço para reflexões fora da sala de cinema. Não há nada de radical em sua forma de apresentar o feminismo, sendo ideal para a faixa de classificação indicativa do filme (12 anos) e para a introdução desse tópico na vida de jovens meninas de forma leve e descontraída. Não espere uma análise profunda, mas abra seu coração e aproveite a viagem nostálgica à Barbieland. Se possível, faça isso com outras mulheres. Definitivamente é uma pequena e merecida dose de escapismo, principalmente para nós que vivemos um embate exaustivo de como ser suficiente sendo mulher. Faça as pazes com sua menina interior e aproveite a imersão nesse mundo ideal. O mundo real aguenta duas horas da sua ausência, só não esqueça de vestir uma peça cor-de-rosa.
Autoria: Fernanda Abdo
Revisão: Laura Freitas e Gabriela Veit
Imagem de capa: Reprodução Barbie (2023).
Texto muito bem escrito, e com reflexões que aguçam a vontade de saber. Parabéns, Fernanda!