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BEBIDAS QUENTES



Nasci e cresci em uma família de hábitos curiosos. 


Claro, eu não percebia as coisas desse jeito enquanto estava sendo criado e, como aprenderia depois, é preciso sair do ninho para realmente notar o quão diferente é a vida nele. Repare que eu disse diferente e não errado, já que esses pequenos vícios que se aprendem no seio familiar são dificilmente descritos com o segundo termo. Pelo menos é o que eu, do topo das minhas pequenas práticas familiares, penso.


Fato é que, hoje em dia, sei que algumas das coisas que me foram ensinadas desde pequeno não eram um lugar-comum para todos os lares brasileiros. Muitos desses costumes curiosos vinham de anedotas familiares que acabaram por criar uma tradição, como sempre usar meias grossas nos pés quando sentado à mesa para uma refeição, porque algum tataravó havia tido seu dedão do pé direito completamente roído por um rato durante um jantar no começo do século passado. Sempre achei que ele devia estar muito do bêbado para não perceber que estava sendo devorado até acontecer, mas eu não faço as regras, então o álcool é liberado e os pés são confinados.


No entanto, por mais esdrúxulo que esse exemplo soe, ele não é o foco da minha história. Na verdade, importante mesmo aqui é a nossa tradição de tomar apenas bebidas geladas. Pois é. 


Veja só, a mãe da minha mãe – minha avó – sempre contou que, em um verão muito quente, um irmão dela – meu tio-avô – foi desafiado por uns amigos a tomar um galão de água quentíssimo que havia passado a tarde inteira diretamente sob um sol que, naquela época, parecia pairar há apenas alguns metros da superfície da terra, tamanho o calor. Dizia ela que, depois do irmão virar toda a água, imediatamente caiu duro e morreu. Foi um grande baque na família, é claro, e todo mundo – especialmente minha avó – pegou um trauma generalizado de beber qualquer coisa em uma temperatura acima da gelada. Inclusive, foi por isso que minha família foi uma das primeiras da nossa cidadezinha a ter uma geladeira.


Já ouvi de algumas pessoas que essa é uma história absurda. Quer dizer, é claro que é, e acho que a introdução da internet algumas décadas mais cedo poderia ter salvado a vida de várias crianças que, como meu tio-avô, brincavam de qualquer coisa aleatória que as tirasse um pouco da realidade chata em que viviam. Há quem diga que a morte do seu irmão nada teria a ver com a temperatura daquela água esturricada pelo sol do verão e que a minha família teria algum problema patológico-compulsivo. Não tenho uma boa resposta, só sei que sou filho da minha mãe, que é filha da minha avó, e que foi assim que me foi ensinado, e que foi assim que fiz – pelo menos até certo ponto.


Afinal, enquanto morava em um lugar quente, nunca questionei essa regra internalizada no fundo do meu ser, e simplesmente aproveitava a vida regada da variedade que o mundo das bebidas geladas pode oferecer: sucos, refrigerantes, milkshakes e, depois de um tempo, cervejas, vinhos e tudo que fizesse uma garrafa transpirar. Eu vivia bem, e se você se perguntar como eu não podia sentir vontade nenhuma de tomar algo cálido, eu não acho que saberia responder. Só sei que ficava de fora dos papos sobre bebidas quentes, como também dos rolês que as envolviam.

 

Porém, chegou um dia que, após finalizar meus estudos – sempre regados a garrafas de água muito gelada –, fui procurar emprego fora do país, já que, por mais que mantivesse hábitos “estranhos”, ainda possuía um dos que entendo serem mais normais: querer ganhar algum dinheiro. Logo após o fim da faculdade, arrumei um emprego em uma firma na Alemanha, e minha família organizou um grande jantar de despedida, e comemos usando nossas meias grossas para o caso de ratos comedores de carne humana, é claro. No fim da ceia, minha mãe reforçou conselhos que ela sempre dizia: alimente-se bem, agasalhe-se, use as meias grossas e só beba aquilo que é gelado etc. E, assim, fui. 


Nos primeiros meses, as coisas correram até que bem. Tive alguns problemas para me adaptar à rotina em um país novo – os alemães são draconianos com horários de reunião, você já deve ter ouvido –, mas meus colegas de trabalho eram muito solícitos e gentis. Mas, mesmo com novas amizades que me ajudassem com trâmites da vida laboral, ainda era um pouco melancólico voltar para uma casa vazia, onde não havia ninguém para, na hora do jantar, colocar uma meia unicamente grossa e tomar uma cerveja gelada comigo – cerveja, porque era a Alemanha, gelada porque era eu. Também confesso que, por mais que meu salário fosse bem alto e me proporcionasse uma boa qualidade de vida, a rotina de escritório de cubículo era extremamente monótona, e meu único divertimento era discretamente auscultar conversas na frente do bebedouro naquela língua engraçada e cheia de pontas que é o alemão. 


Contudo, os problemas de verdade começaram com a chegada do inverno alemão, muito mais rigoroso que o brasileiro. Conforme o frio avançava, ficava cada vez mais difícil seguir o familiar costume de tomar bebidas geladas. Só que eu também não queria morrer em circunstâncias similares ao meu pobre tio-avô, vítima de um líquido aquecido. Por mais gélido que estivesse o ar, e por mais agasalhado que eu estivesse, eu bebia tudo em temperatura glacial, de águas a milkshakes. Ainda que aqueles líquidos descessem cortando toda a minha garganta como vidro, eu me assegurava que, pelo menos, eu não morreria. Ou quase não morreria, dado que isso culminou em uma gripe e tosse persistentes que se revelaram uma pneumonia severa e que me levou a ser internado em um hospital.


Lembro de ficar deitado naquela maca desconfortável e, atordoado pelos remédios, pensar em toda a situação. Talvez o termo “pensar” não seja exatamente o correto; sozinho naquele quarto cinzento, eu sentia como se meu cérebro se estilhaçasse e se reconstruísse repetidas vezes, de novo e de novo. Eu quase havia me tornado o segundo parente morto por líquidos, mas dessa vez os gelados. Será que seria iniciada uma nova tradição de apenas tomar bebidas em temperatura ambiente caso eu tivesse realmente morrido? É um dos questionamentos que tive durante minhas intermináveis horas olhando para o teto difusamente iluminado do quarto. 


Depois de muito refletir e reconstruir minha mente nas ruínas da minha saúde, cheguei às conclusões de que, ou minha linhagem tinha alguma inimizade muito grande com líquidos no geral, ou seria necessário rever aquele costume. E, mesmo que desafiar um dos alicerces de si soasse como uma tarefa árdua, a outra opção não me daria muitas chances de hidratação além de água morna, então me decidi pela primeira opção.


Duas semanas depois, saí do hospital, logo após um médico alemão careca e velho ralhar comigo pelo que ele chamou de “motivo burro” para ser internado, o que fez em um inglês meio capenga, e resmungar algo sobre “imigrantes”, o que fez em um alemão fluente. O importante é ter saúde, eu acho. 


Enfim, assim que tive a oportunidade, me direcionei para uma cafeteria famosa perto do meu emprego. Eu ganhara um mês de férias pagas por ter ficado doente, e o aproveitaria para ir visitar meus parentes no Brasil, já que era bem na época do Natal. Entretanto, quis provar uma bebida quente antes e, se eu não morresse, eu poderia trazer a novidade para todos e começar um novo momento na família. 


Como estou aqui contando essa história, é óbvio dizer que não morri. Porém, confesso que o primeiro gole de café quente que tomei me fez pensar que eu de fato estava morrendo, mas, depois de um pequeno surto na cafeteria, entendi que só precisava ter esperado um pouco para o líquido esfriar. Ao sobreviver à primeira bebida, um mundo se abriu sob meus pés. Tomei todo o cardápio de bebidas quentes daquela loja, e descobri que gosto de café, não gosto muito de chá, e que chocolate-quente nem fede nem cheira, a meu ver – ou melhor, a meu gosto. 


Senti-me muito feliz e mal podia esperar para compartilhar aquilo com meus pais. No avião para casa, paguei a mais para que o serviço de bordo me oferecesse café quentinho, que dessa vez eu esperei esfriar um pouco.


Uma vez no Brasil, decidi comprar um café quente em uma cafeteria perto da minha casa, na qual nunca tinha pisado os pés, já que sempre que passávamos na frente minha mãe murmurava que café era uma bebida que “gelada era ruim e quente era assassina”, o que havia matado meu interesse pelo líquido até o então momento, como é de se imaginar. De qualquer jeito, minha ideia era chegar em casa, onde um jantar farto – de comida, de família, e de pés enfiados em meias grossas – já me esperava, e lá eu faria uma surpresa, demonstrando para todos que também podíamos tomar coisas quentes. 


E assim fiz. Com o copo térmico da cafeteria em um compartimento da minha mochila, bati à porta da casa onde passei a infância, e foi minha mãe que abriu a porta, toda sorrisos, abraços e beijos calorosos. Fiz o circuito de cumprimentar todo o resto da família, respondendo rapidamente perguntas sobre o clima, a culinária e a ética de trabalho alemãs, até que finalmente parei diante da mesa e de todos. 


“Família, antes de começarmos a comer, tenho uma coisa para fazer, que acho que vocês vão gostar”, recitei, em tom de brinde. 


“Vai distribuir uns euros aí pra gente?!” Meu pai soltou, fazendo gargalhadas forçadas soarem pela mesa. 


“Não, gente, é outra coisa”, comentei, com um sorriso misterioso no rosto. “Vejam só.”


Sob aqueles olhares ansiosos infantis, juvenis, adultos e idosos tão caros a mim, busquei o zíper da mochila, puxei-o com calma. O som retumbou no silêncio de expectativa que preenchia a sala de jantar. Lentamente, retirei o copo térmico – que tinha um selo vermelho bem grande escrito HOT desenhado – e retirei a tampa, deixando o vapor fumegar no ar diante de todo mundo. 


Nunca antes na vida vi tantos sorrisos se transformarem tão rapidamente em caretas de dor e máscaras de horror. Imediatamente, um dos sobrinhos pequenos começou a chorar, bem como minha mãe.


“Meu deus!” Ela gritou.


“Ele quer matar a gente! Seu filho enlouqueceu, Cida!” Uma tia gemeu, antes de desmaiar nos braços de um primo.


“Não, ele quer se matar, ele vai se matar, meu deus!” Meu avô paterno levou as mãos à cabeça.


“Criminoso!” Esse eu nem sei quem falou, sinceramente.


Só sei que, rapidamente, aquele jantar se transformou em um velório. Um tio veio me dar uns pontapés, me esculachando e dizendo que havia feito sua filha chorar. Até aí, até que tudo “certo”, já que ele estava com meias grossas e não doeu tanto, mas foi duro quando meu próprio pai me expulsou do jantar, jogou o copo térmico com o café na rua e bateu a porta na minha cara. Ainda fiquei um tempinho ali na rua, incrédulo em como tudo havia dado errado. 


Agora estou aqui, sentado na cafeteria do “gelada é ruim, quente é assassina”, simultaneamente concordando com a frase da minha mãe e esperando um café bem quente esfriar. 


Se essa história tem moral, é que talvez tivesse sido melhor eu ficar na água morna. 



Autoria: Pedro Augusto Castellani Rolim

Revisão: Artur Santilli e Luiza Parisi

Imagem de Capa: Watercolor of a coffee mug (Yong Chen)/ Reprodução Youtube, Canal: Yong Chen, vídeo: Watercolor of a hot coffee mug [member painting together]

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