Quinze anos ao seu lado. Para você, cento e cinco.
A essa altura, seu pelo já fazia parte da minha pele e de mim e seu latido já era um som que eu podia reconhecer de longe. Te chamar pela casa era tão natural e automático.... Agora percebo o quão reconfortante era ouvir o barulho das suas unhas raspando no chão quando andava pelos cômodos, porque sinto falta disso como se tivesse deixado de ouvir a música que mais me acalma no mundo.
Esse luto dói. É um gelo permanente na barriga que machuca ainda mais quando, por um milésimo de segundo, me distraio e recordo, sem acreditar, que você não existe mais. Dói, não apenas pelo que você foi, mas muito pelo que representava também. Te ver partir era o fim definitivo de uma parte da minha vida que não vai voltar mais. Sentimentos, pensamentos, rotinas e tudo aquilo que talvez um dia me acostume a chamar de “infância”.
Lembro de estar ao seu lado nas mais diversas ocasiões sob múltiplas emoções. Chorava, ria, ficava brava, preocupada e feliz, e você ali do meu lado também, com seus variados humores caninos. Quando era tristeza, sua presença me fazia chorar ainda mais, porque, de alguma forma, você entendia e era nítido que estava comigo. Quando era alegria, naturalmente, acabava ainda mais feliz depois de uns minutinhos sentada na grama com você.
Você chegou numa caixa que dizia “cuidado ovo”. Um presente, uma surpresa, uma vida, um novo membro da família. Era meu aniversário de cinco anos em 2006 e você foi, já tão cedo na minha vida, uma das melhores coisas que me aconteceu. Como se fosse hoje, lembro de toda a animação e dos ataques de fofura de todos que te receberam em casa. Você já era completamente parte de um todo no momento em que recebeu seu nome: Big.
Minha inspiração inicial foi que, dias antes de você chegar, tinha assistido, pela primeira vez, ao filme com o Tom Hanks, “Big: Quero Ser Grande”, e adorei. Posteriormente, toda vez que me perguntavam seu nome, explicava que era uma ironia. Big, grande, em inglês, porque você era muito pequeno. E, por mais aleatória que a minha escolha possa ter sido, não havia nome melhor para você.
A partir desse dia, os anos que vieram foram reflexos dessa animação inicial, que diariamente se repetia quando chegávamos em casa de carro e você corria para pular na porta. Com uma felicidade incontida, você dava voltas correndo pela casa inteira, latia e até uivava. O que mudou com a nossa convivência ao longo das diversas chegadas na garagem foi que, com o tempo, percebi que não se tratava apenas de entusiasmo e carinho, mas de um amor cotidiano, tão natural e simples que podia passar despercebido e, ao mesmo tempo, tão complexo que me marca até hoje.
Gosto de pensar em como você foi livre e feliz no ápice da sua juventude e, realmente, nos treze anos que moramos naquela chácara, o rei de toda aquela vizinhança. No seu “mirante”, havia uma marca de grama amassada certinha delineando um caminho e, no fim, uma bolinha, que era onde você passava para se sentar no lugar que tinha a melhor vista possível da rua, onde você observava tudo e corria atrás de “possíveis ameaças” (como o caminhão do gás).
Coleira? Nunca chegou perto, não sabia nem o que era. As poucas tentativas de te amarrar para ir passear pelo bairro (como todos os outros cachorros) foram fracassadas. Nem cordas, nem portões, nada te prendia. Você era totalmente livre, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Dormia onde queria e podia ir para qualquer lugar, pois nem muro a nossa chácara tinha.
Todo mundo que caminhava ou passava de carro por nossa casa te conhecia: “o salsichinha invocadinho daquela rua sem saída”. Evidentemente que lembrariam da sua existência depois de você sair correndo atrás de todo mundo, envergonhando seus donos. Sabíamos que você só fazia o percurso do seu mirante até a rua com cara de bravo e latindo, mas que, quando alguém chegava perto, começava a balançar o rabo e pedia carinho. Só que as pessoas geralmente não tinham esse conhecimento sobre seu estilo de guarda e ficavam assustadas ou até bravas com você e com a gente por essa astúcia sua.
Você era tão livre que quando fechávamos a porta e te privávamos de fazer o percurso da cozinha à lavanderia (que ligava nada a lugar nenhum), chorava como se o mundo fosse acabar. Era só abrir a porta e deixar que você passasse de um lado para o outro umas trinta vezes por dia que ficava feliz.
Sua juventude teve altos e baixos. Domingos de churrasco definitivamente eram altos, em que você roubava um espetinho da mão da criançada e sempre saia no lucro. Mas quando os dois gatos e depois a pastora gigante chegaram, por exemplo, foram certamente baixos, tiraram toda a sua paz de cinco anos como um monarca absoluto.
Mais recentemente, você passou pela transição da juventude para a velhice, de rei para uma espécie de mestre Yoda canino. Você ficou, sim, rabugento, mas era uma “rabugentice” de gente sabida, com muita experiência, que só quer descansar mesmo. Na casa nova, continuou defendendo veementemente sua liberdade de transitar entre a cozinha e a lavanderia, mas já não tinha mais força para roubar carne de ninguém ou para pular e nos empurrar com as duas patas da frente para pedir comida. Em compensação, seu paladar passou por um processo de refinamento e já não era qualquer coisa que caísse no chão que você estava disposto a comer.
Você foi um cachorro velho muito amado e mimado na verdade, né? Com seus toques de mestre Yoda e suas meticulosidades de idoso, devo confessar que essa foi uma de suas fases mais fofinhas. Tudo na hora certa e do jeito certo. Sempre de um jeito engraçado que dava uma vontade de te apertar incondicionalmente.
Sendo rei, mestre Yoda, ou só Big, você lutou até o fim. Nos seus últimos dias, mesmo não conseguindo andar, você ainda abanava o rabo e provocava ataques de fofura em todos nós com suas fraldas “Tico Pads”.
O dia em que partiu foi um dos mais difíceis da minha vida. Uma parte de mim foi embora com você nos dez minutos de massagem cardíaca que fiz tentando trazê-lo de volta. Mesmo incansavelmente longos, como os seus cento e cinco anos, esses minutos não foram suficientes para me conformar que você tinha ido para sempre. Que nunca mais iria ouvir seu latido, choro ou o barulho de suas unhas no chão.
Você chegou numa caixa de ovo e se foi numa caixa de morangos orgânicos com seu tapetinho verde e uma flor de plástico laranja, da cor da casa que viveu a maior parte da sua vida. Agora, você está aqui no quintal, para sempre com a gente. Não é na chácara dos seus tempos de rei, mas sabemos que, no fim, isso nunca foi o que de fato importava.
Autoria: Beatriz Bernardi
Revisão: João Vítor Vedrano e Letícia Fagundes
Imagem de Capa: Beatriz Bernardi
Comments