"Que saudades do carnaval". Presumivelmente o festival mais popular do Brasil, o Carnaval é um feriado centenario que faz parte da identidade de nossa nação. É certo compactuarmos com preceitos ofensivos que há anos são proliferados em sua celebração? Chegou a hora de não só postar fotos relembrando os dias passados com seus amigos, mas também problematizar alguns dos eixos do carnaval brasileiro
O problema
E agora que chegou a época de postar aquela fotinho bebendo na rua com seus amigos, com muita cor e brilho, e colocar “Já bateu saudades do carnaval” na legenda, devemos nos perguntar: Saudades para quem? E nossos pais que dizem que o carnaval já não é mais o mesmo, devem se entristecer?
Um dos eixos principais do carnaval brasileiro é a música. Entre as várias funções (desejadas ou não) da música, está a de ensinar ou relembrar o passado. A História está escrita, sob alguma perspectiva específica, nos versos e nas estrofes de uma canção. Como objeto artístico, pode ter também caráter de entretenimento e/ou crítica. No entanto, se analisada como ato moral, a música é também uma maneira de reforçar valores.
Em uma canção, a língua é mãe e inimiga: expandem-se os horizontes por meio de figuras de linguagem como a sinestesia, cacofonia ou metáfora. O combo de palavras diferentes ou iguais, com sentidos diferentes ou iguais e tom diferente ou igual, multiplicam as possibilidades. Há palavras que mudaram de significado ou conotação no decorrer do tempo. Portanto as palavras também amaldiçoam o autor com suas ambiguidades: onde houver espaço para mais de uma interpretação, há também espaço para a ofensa. E questiona-se cada vez mais: devem as letras das músicas adequar-se ao contexto?
Há nas marchinhas de carnaval um grande acervo de palavras e motivos preconceituosos e ofensivos. Versos como "mas como a cor não pega, mulata / mulata eu quero o teu amor"(Teu cabelo não nega), "Parece que é transviado /Mas isso eu não sei se ele é/Corta o cabelo dele!" (Cabelereira do Zézé), “E a Maria Escandalosa/ é muito prosa, é mentirosa/mas é gostosa” (Maria Escandalosa) são um retrato de um momento e um lugar na história, uma circunstância na qual não se questionavam certos preconceitos e objetificações.
A solução
Não há consenso de como se deve lidar com essas marchinhas na atualidade. Se o racismo, a lgbt-fobia e outras discriminações são crimes, deve a reprodução de tais músicas ser proibida?
Na Bahia existe uma lei estadual, sancionada em 2012, conhecida como Lei Antibaixaria. O texto prevê fiscalização, com circulação pelos blocos a desfilarem no Carnaval e multa de R$ 10 mil para gestores públicos estaduais que contratarem artistas com letras ofensivas às mulheres.
Outra abordagem possível é a de mudar as letras de marchinhas tradicionais. Músicas famosas como Cabeleira do Zezé (…) foram parodiadas para atenderem a critérios mais respeitosos. A letra original ("será que ele é?") virou "ele pode ser o que ele quiser". Há blocos que, em vez de cantar “corta o cabelo dele”, em Cabeleira do Zezé, canta “deixa o cabelo dele”. Enquanto isso, novas músicas que respeitem os valores da sociedade atual são mais que bem-vindas.
A repercussão
"Sempre detestei A Cabeleira do Zezé por causa do refrão “corta o cabelo dele”, que é repetido como incitação a um quase linchamento. Mas não tenho vontade de proibir nada.”, diz Caetano Veloso ao se posicionar contrário à proibição de marchinhas ofensivas.
Já Pedro Ernesto Marinho, presidente do Cordão da Bola Preta, um dos mais tradicionais blocos do Rio de Janeiro, se posicionou também a respeito: “Não consideramos essas marchinhas ofensivas. Quem as compôs, certamente, não tinha essa intenção. Carnaval é uma grande brincadeira. Essa polêmica não vai levar ninguém a lugar algum e até desmerece o carnaval”.
João Roberto, compositor de marchinhas, destaca o sentido, mais que a linguagem, na composição: “as músicas são sátiras ou até mesmo homenagens, como no caso de “Mulata Bossa Nova”, cuja inspiração foi Vera Lúcia Couto, primeira negra a concorrer — e ganhar — o concurso de Miss Brasil.”
O pesquisador musical Renato Phaelante, traz uma abordagem diferente: "A música é uma forma de opinar sobre a política e o social e o Carnaval é época das sátiras, de despertar o humor. Se a música faz parte da história da MPB, por que omitir? Disseram que Rui Barbosa mandou rasgar documentos da escravatura e isso foi prejudicial para a história. Acho que a música, em si, é um documento, e pode vir a interferir na sociedade em seu tempo. Era uma coisa natural do começo ou de meados do século 20. O que não faz sentido é compor, nos dias de hoje, uma música naqueles mesmos moldes, porque estamos em um tempo no qual os preconceitos estão sendo derrubados".
E para não esquecer...
Mas não é só de música que se faz o carnaval. Entende-se que existe nesse feriado um espaço para a diversidade cultural, exemplificado pela grande gama de gêneros musicais e fantasias identificados nos blocos de rua. Considerando-se o tripé da cultura – abstração, produção e comunicação – encontra-se um dilema entre a expressão cultural e o consumismo.
A confecção de fantasias, referente ao segundo termo mencionado (produção) tornou-se massificada na indústria carnavalesca. A criatividade e personalidade são desestimuladas com o crescente consumismo (comprar fantasias). Pode-se relacionar isso com o duplo vínculo da cultura (permite nos expressarmos livremente, mas estabelece limites para o que é bem visto), pois a indústria da moda possibilita que até mesmo quem não tem habilidades têxteis use fantasias complexas, mas apenas dentro do escopo de possibilidades que a própria moda cria. Pode-se traçar um paralelo entre a liberdade e o consumismo também na questão de fantasias ofensivas por meio da apropriação cultural (a exemplo da fantasia de índio) ou na situação da privatização da folia.
Que saudades do carnaval.
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