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Como Fantasmas em Loch Lomond




(Música para Leitura:

Loch Lomond - Alastair McDonald and Leo Maguire)



Eu adoro fantasmas, de verdade. Fantasmas, espectros, espíritos, aparições, chame do que você quiser, o ponto de uma pessoa que morre continuar presente e consciente no mundo dos vivos, mas é incapaz de interagir, é um conceito interessantíssimo. Claro que os fantasmas não são os únicos monstros desses clássicos de Halloween que são conceitualmente interessantes, mas eles são meus preferidos. Vamos fazer um ranking rápido: Múmias são apenas o fascínio de ingleses vitorianos sobre o Egito Antigo manifestado com aquela pitada de orientalismo que só o século XIX sabia como fazer; Lobisomens, originalmente um estudo sobre a dualidade do lado animal e racional dos homens, foram brutalmente sequestrados pelo movimento furry; (O Monstro de) Frankenstein, apesar de ser fruto da obra prima de Mary Shelley que aborda debates filosóficos fascinantes e promove comparações incríveis com clássicos da literatura, como Paraíso Perdido, foi reduzido a um vago monstro zumbi-esco. Na minha opinião, o único desses monstros famosos que pode competir com o fantasma é o vampiro, que perdura por séculos e séculos, em cada era com uma interpretação diferente, simbolizando desde a relação literalmente sanguessuga da aristocracia europeia com seus súditos, até seja lá qual for a interpretação dos vampiros do icônico Crepúsculo.


Sim, fantasmas são incríveis, tanto em seu potencial para o terror quanto para o drama. Confesso que sou menos fã dessa primeira vertente, que frequentemente recai sobre o clichê do “espírito vingativo”. Não me entenda mal, espíritos são ferramentas muito eficientes de terror, digo isso tendo sido uma criança medrosa que cresceu na era de ouro dos filmes da série Atividade Paranormal e ficava frequentemente sem dormir à noite por causa deles. No entanto, é o potencial dramático e melancólico em que os espectros se destacam. Humanos de todas as culturas e em todas as eras sonharam com algum tipo de vida após a morte, e a ideia de ser abandonado neste mundo terreno, forçado a ver a repercussão de sua morte em seus amados, sem poder interagir com eles e aos poucos se tornando apenas uma memória é, sem dúvida, extremamente dolorosa. Memória. Talvez essa seja a melhor interpretação de um fantasma. Assim como o Monstro de Frankenstein simbolizava a húbris de um cientista louco e perturbado, o fantasma simboliza aquelas partes das nossas vidas que já passaram, mas que se recusam a ser esquecidas e voltam para nos assombrar. Pessoas que decepcionamos, vergonhas que passamos, erros que cometemos, tudo isso são os fantasmas do nosso dia a dia que temos que enfrentar ou fazer as pazes.


Uma das minhas histórias favoritas sobre fantasmas é a relatada na música tradicional escocesa The Bonnie Banks of Loch Lomond. Nela ouvimos a história de dois soldados escoceses que foram capturados na Inglaterra, um foi sentenciado à morte e o outro foi libertado. Vendo a tristeza de seu companheiro que seria deixado para a morte, aquele que seria executado lhe conforta, dizendo que ambos voltariam para sua terra natal, um pela estrada dos vivos e o outro pela estrada dos mortos. Porém, seria o fantasma que chegaria primeiro, e se lamenta de que nunca mais poderia se encontrar com sua amada nas belas margens de Loch Lomond. É uma bela, dramática e melancólica canção – assim como as montanhas e lochs escoceses que a inspiraram. A música não é clara sobre isso, o que me faz indagar: quando o fantasma chega a sua terra natal, ele pode ir para outro plano ou é obrigado a vagar pelo país que ama sem poder interagir? Veja, ser assombrado por uma memória é de certo modo ruim tanto para o assombrado quanto para a assombração. Claro que é ruim ser lembrado de seus erros, humilhações e decepções constantemente, mas memórias não são só ruins, assim como nem todo espírito é vingativo, e ter suas lembranças corrompidas por mágoas do que pode ter sido um relacionamento agradável ou um passado sincero, como é o caso da amada, é extremamente doloroso. Ser assombrado gera ressentimento em relação a um passado que pode ter tido suas alegrias e méritos; de certa forma, no lugar de um “espírito vingativo” é mais provável existir um “humano rancoroso”.


Olha, sinto em informar mas até onde a ciência pode afirmar, espectros não existem. Sim, eu sei, dói em mim também. Agora, vale lembrar que mitos e monstros são explicações para o que é difícil explicar: racionalizações do irracional, interpretações daquilo que é turvo a nossas sensibilidades humanas e devaneios sobre aquilo que cativa a nossa imaginação. Não existiam vampiros na Romênia, mas existia um príncipe brutal que empalava seus inimigos, aterrorizando seus súditos e disso para “meu Pai do Céu, aquele maluco bebe sangue humano igual a um morcego” são dois palitos. Nosso amigo soldado nunca voltou para a Escócia, mas traz um conforto acreditar que sim. Transformar algo que você viveu em um fantasma, que te assombra toda vez que é lembrado, é mitologizar algo que você não entendeu perfeitamente ou algo que ao longo do tempo foi ficando cada vez mais difícil de entender. E é perfeitamente humano.


Agora, como lidar com essas assombrações? Vai ligar para os Caça Fantasmas? Passar farinha no chão para ver suas pegadas? Primeiro precisamos lembrar que as memórias não aparecem na sua cabeça porque querem, seu maluco, a cabeça é sua, qualquer reclamação é em outro tribunal. Segundo, se fantasmas não existem, mágica também não é real. Tudo é um processo. Lento, doloroso e chato para um [CENSURADO PELA GAZETA VARGAS]. Fantasmas em seus contos ficam naquela fronteira entre o morto e o vivo, o real e o surreal, criaturas frágeis – este não é um problema que se resolve com força ou pressa. É preciso ter calma, misericórdia e perdoar a si mesmo, afinal, quem passou vergonha ou errou foi você. É ver a beleza de Loch Lomond sozinho, e abrir mão da dor.




Autor: Eduardo Loeser

Revisão: Isabelle Moreira e André Rhinow

Imagem de Capa: Abubakr Hussain, Mohammed-Hayat Ashrafi, Maaz Farooq, Farmaan Akhtar, Mohammed Shah - Digital Camera


 
 
 

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