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CONFISSÕES NO ESCURO E AMORES NUNCA GUARDADOS

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O tema da superação se tornou pauta no meu grupo de amigas há alguns meses, quando achávamos que tudo poderia ser facilmente resolvido se colocássemos na nossa cabeça que éramos capazes de esquecer aquilo que nos propúnhamos a não lembrar mais. Acreditávamos que, se nos dedicássemos o suficiente, seríamos capazes de seguir em frente e ignorar as coisas que, um dia, fizeram parte do nosso cotidiano e significaram o mundo para nós. Porém, entre idas ao barzinho da esquina e caminhadas até o ponto de ônibus, percebemos que a superação plena está longe de ser uma realidade. Ou melhor, longe de uma realidade facilmente atingível. Na verdade, conversando sobre isso com as minhas amigas mais próximas, eu sinto que a superação sempre fez uma parte mínima em nossas vidas. Ela nunca amorteceu as quedas. Achamos que superamos algo para depois o suposto esquecido assunto surgir novamente e nos fazer perceber que não: Ainda queremos a pessoa custosamente detestada e ainda desejamos estar em lugares que nos foram negados. A reflexão sobre a superação, que não se limita a relacionamentos, nos envolve num limbo de viver sem saber esquecer e ir levando como dá, o que desafia a nossa resiliência adquirida ao longo da vida.


A conclusão a qual chegamos foi: A superação total é impossível, sendo até uma abstração da realidade. Nunca superamos o que de fato foi marcante para nós e não é a toa que nos esforçamos para seguir em frente de algo que sabemos que precisamos deixar ir. Acho que o que acontece é que, com o tempo, amadurecemos e esquecemos. O nosso senso de urgência é direcionado para outras coisas, os nossos instintos virão outros. Mas, apesar de partilhar desta premissa que mudará daqui a alguns meses facilmente, não consigo deixar de pensar: seria o indivíduo um ser tão teimoso a ponto de não se desprender facilmente daquilo que não mais lhe pertence?


Isto, assumir a presença de uma dificuldade na atividade de superar algo, não é tópico estritamente atual ou até mesmo um trabalho revolucionário meu. Não mesmo. E, ironicamente, amo a arte oriunda da frustração de não se obter aquilo que os livros de autoajuda buscam nos convencer a todo custo: A superação total. No filme “O Segredo de Brokeback Mountain”, numa fatídica cena entre os vaqueiros, Jack diz a Ennis: “I wish I knew how to quit you” que, em tradução livre, significa “Eu queria saber como te deixar”. E eu acho essa a declaração mais honesta que eu já vi. Ele, numa espécie de luta contra o próprio ego, assume: Sei que você não é para mim, mas não quero viver sem a sua presença. Ele sabe que isso é uma escolha pessoal, traindo a si mesmo, que sabe que não merece tal tratamento. Isso só me faz pensar como nós, seres humanos, não sabemos dar as costas àquilo que nos machuca, porque nos apegamos ao fato de como aquilo um dia foi muito importante para nós. Não queremos abrir mão. Só aprendemos a superar ao longo da vida e, meu Deus, que processo sofrido. Jeff Buckley, na música “Lover, You Should’ve Come Over”, fala sobre um amor que ele “precisa”. Esse amor, que quando vai embora, leva consigo a nossa conformação e nos deixa inquietos, transformando-nos em corredores de nós mesmos; fugitivos da realidade. Só paramos quando os joelhos fraquejam e as panturrilhas começam a formirgar. A parada se segue do choro e, com as lágrimas, passo a me despedir daquilo que só na minha cabeça aconteceu.


Acho engraçado como o cérebro não acompanha o coração cem por cento do tempo. Esse descompasso já me rendeu muitas coisas: histórias, vexames, choro e conversas que me permitiram conectar com pessoas que talvez sejam as próximas que precisarei deixar ir, mas isso só o tempo dirá. E, talvez, viverei com essa dicotomia eternamente. Gal Costa, interpretando a composição de Caetano “Meu Bem, Meu Mal”, fala sobre como a mesma pessoa para ela, é o significado de tudo: Ruína e glória, amor e ódio, paz e tremor e, mesmo com a parte negativa, ela não consegue dar tchau àquela pessoa que custa a sua saúde mental. Por que não conseguimos nos desapegar daquilo que nos faz mal? Quais as raízes que nos fazem sempre voltar para aquela pessoa que não nos faz bem? Às vezes, sinto que não queremos nos desapegar porque nos identificamos com aquela pessoa. Ela possui alguma característica intrínseca que não reconhecemos de primeira, mas que nos remete a nossa própria essência e nos permite transcender das percepções físicas. E nós, traumatizados por um abandono e rejeição já socialmente banalizados, não nos afastamos porque queremos compensar: queremos amar no outro aquilo que nunca foi visto na gente. Queremos nos consolar e nos dar o prazer de nos sentirmos bem com alguém que nos gera reconhecimento. 

Não há um manual para a superação. Sentir o  que precisamos para supostamente nos vermos livres daquilo que nos incomoda faz sentido, mas é apenas acalentador na teoria. Sentir a dor do abandono e da falta é, muitas vezes, quase insuportável. O sofrimento é desorientador porque a suposta resiliência e sabedoria que iremos adquirir não está clara no horizonte. Vamos dormir cansados de sentir e ainda acordamos com a adaga enfiada no peito. E, quando se é jovem, momento no qual a nossa criança interior é deixada de lado e a nossa versão adulta é desafiada em sua fase embrionária, a dor é ainda mais brutal. A verdade é que não há soro para dor. Ela tem o seu tempo, a sua lógica e o caminho que traça em nós servirá como uma bússola para outros sentimentos.


A superação é um aprendizado que nos faz quase revirar por dentro para compreender como agir. Somos teimosos, na maior parte do tempo. Queremos que o sentimento de fracasso ou de vergonha vá embora, mas não queremos dar as costas a tudo que vivemos. Somos criaturas saudosas e, enquanto nada novo e edificante acontece em nossas vidas, nos apegamos àquilo que um dia nos fez sentir livres. Sinto que nunca irei superar algumas coisas porque parte de mim sempre será daquela pessoa. Afinal, parte do meu coração por muito tempo foi dela. E eu não serei a mesma depois de você ter passado pela minha vida. Nunca irei superar porque a minha pele já não é mais a mesma. Agora, ela apresenta a marca da cicatriz. O meu coração ainda é o mesmo. E, é claro que quem disse isso não fui eu, mas Carlos Drummond de Andrade, com mais destreza, obviamente. O poeta fala sobre a vinda e passagem do primeiro amor, segundo e terceiro. “Algumas palavras duras, em voz mansa, te golpearam, nunca, nunca cicatrizam”. A superação, em si, vem de partes de si que você nem sabia que existiam e as partes adormecidas de você mesmo que você nem sabia que podiam ser afetadas.


Nunca irei superar o que você me fez sentir, mas não acho que isso me mude tanto assim. Vivi outras coisas, conheci novos rostos. E isso, depois de muito trabalho, basta. Acredito que a real superação vem quando conseguimos sentir outras coisas além do desconforto daquilo que precisa ser esquecido. Afinal, a superação não é algo homogêneo ou perfeito. Ela é fluída. E, da mesma maneira que parece que ela é a mais pura realidade, também há momentos que ela te faz questionar se você realmente quer seguir em frente naquele determinado assunto.

Acho que, no final do dia, a superação é uma coisa difícil porque o cérebro e coração são duas entidades com ritmos diferentes. Enquanto o cérebro, naturalmente racional, sabe que a pessoa não é para nós, que aquela oportunidade talvez virá em um outro momento e que  é melhor que deixemos de lado tal tópico, o coração não entende. Lá é onde mora a esperança, o afeto. O ser humano é péssimo em superar, mas ótimo em fingir. O choro denuncia as intempéries que passamos, as que nos fazem deixar de ser o rascunho de nós mesmos. Ter coisas para superar denuncia a nossa natureza humana, a nossa capacidade de absorver tudo aquilo por que passamos. A necessidade de superação elucida as nossas vivências, as nossas camadas que passaram a ser outras com o tempo. As quais, eu espero, nos permitam fazer com que nos apaixonemos por nós mesmos. 


Meu conselho para aqueles que tem algo latente a superar? Superar é evidência. Você viveu aquilo, você esteve presente. Assim como há uma beleza no luto, há uma espécie de consolo na cura. Não se luta contra fatos e não há como negar o que aconteceu, o que você teve que passar por. Agora, é abraçar aquela versão de si que não sabia de tudo aquilo que você conhece hoje e seguir em frente, se distrair. Afinal, o processo de superação é sinuoso. Ele te engana, te faz achar que acabou e, quando você pensa que chegou perto da saída, outra porta se coloca entre você e outra camada estritamente sua. É digno de riso: você só percebe que está curada quando o vento que bate suavemente em seu rosto não te lembra mais alguém, ou não provoca mais um sentimento de afogamento em seu peito. Você percebe, ali, que está vivendo sem a presença dele. Assim, os sentimentos, um dia eternos, se dissipam. Vão embora, como as folhas de uma árvore no outono, como fazemos ao nos desprender dos braços dos nossos pais para entrar no ônibus e voltar para São Paulo. E, neste momento, neste micro-instante em que entendo que eu consigo seguir em frente, é que eu percebo que a vida é linda. Nós devemos a superação para nós mesmos. Não merecemos ficar reféns de ninguém. A caminhada é árdua, mas a vista promete ser linda.


Autora: Carolina Setten

Revisora: Ana Carolina Clauss

Imagem: Pinterest

 
 
 

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