Teclados, sintetizadores, o auge do disco, new wave e synth pop, essas eram as principais características da música da década de 1980. A similaridade sonora dos artistas do momento ficou cada vez mais acentuada gerando o que os críticos musicais chamaram de “pasteurização da música”. Acusando os artistas de usarem “ganchos” das produções norte-americanas, a crítica especializada nacional já havia deixado claro seu descontentamento com a suposta perda de autenticidade na nova era da música brasileira.
Isso aplicado a um país que recém acabara de atravessar uma ditadura militar gerou uma crise de identidade nos grandes nomes da MPB, seguida de uma redefinição do movimento. O recado era claro: era preciso se reinventar, ou os moldes oitentistas os engoliriam, como engoliram tantos outros. Mas como seria possível assimilar elementos contemporâneos sem se perder na homogeneidade sonora que parecia consumir o mainstream do momento?
Entre anúncios equivocados que previam a “morte da MPB” e fórmulas sonoras invadindo o mercado brasileiro, quem sorriu por último sorriu melhor, e o sorriso era o do gato de Alice. Em 30 de setembro de 1993, Gal Costa lançou seu vigésimo quarto álbum de estúdio, elegante como tudo que a cantora vinha fazendo até o momento, mas menos interessado em promover a coerência típica que agradava quem até então acompanhava suas manias tropicálias. O Sorriso do Gato de Alice era o momento de metamorfose que Gal tanto ansiava durante toda a última década, e resultou em um previsível número medíocre de vendas.
Apesar disso, quanto mais as opiniões pública e especializada acreditavam estar assistindo ao declínio em tempo real de uma das maiores vozes da música brasileira, mais a cantora parecia estar certa de ter achado o seu lugar em meio à voracidade dos modelos musicais dos anos oitenta. O álbum adotou uma abordagem mais eclética e se distanciou dos sintetizadores do momento, mas abriu os braços para elementos eletrônicos incorporados nas linhas tortas do blues. Às vezes com uma base crua, às vezes apoiado na melodia do agogô, O Sorriso do Gato de Alice não se importava em seguir nenhuma coerência além daquela do fluxo interno de sentimentos da cantora. Era tão excêntrico quanto era verdadeiro.
Mas mudar a sonoridade não era suficiente, a mudança deveria ser completa, deveria ser ousada, e de alguma forma, precisaria ser desconfortável. No ano seguinte ao lançamento do álbum, em março de 1994, Gal estreava, inspirada no álbum, aquele que se tornaria um dos espetáculos mais controversos de sua carreira. A menina que há vinte e dois anos subiu no palco de “Fa-Tal — Gal a Todo Vapor” vestindo saia dourada e coroa de flores e registrou sua identidade com movimentos provocativos que preenchiam a casa no mesmo vigor em que o tambor conversava com os propositais desafinos de guitarra, agora, estava quieta, centrada no palco, sustentada apenas pela potência vocal que parecia mais interessada em atrair todo o foco para a perfeição técnica que acompanhava a densidade sentimentalista que a cantora carregava.
A apresentação, no teatro Imperator no Rio de Janeiro, havia sido idealizada pelo diretor teatral Gerald Thomas, conhecido por sua abordagem vanguardista e experimental, e já com algumas polêmicas acumuladas pela sua ousadia artística. Apesar disso, o show aconteceu sem grandes motivos para causar alarde entre o público e a mídia brasileira. Por mais que a diferença de projeção da cantora comparada a projetos passados fosse notável, nada era suficiente para estampar as manchetes nas semanas que se seguiram. Até que chegou a vez da música “Brasil” de Cazuza ganhar uma nova roupagem na voz de Gal. Tão potente quanto quando cantada pelo cantor original, a canção era o gancho que a cantora precisava para realizar o que foi tido como o ato mais polêmico do show.
“Brasil, mostra a tua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim”. A cara do Brasil foi de espanto ao ver a cantora sem pudor levantar o braço e mostrar os seios para toda a plateia que acompanhava a estreia do espetáculo. Não era a primeira vez que a voz de Vaca Profana usava do seu corpo e repertório para afrontar a massa careta que, ao menos dessa vez, foi pega desprevenida. O que antes era geralmente feito em ensaios fotográficos desavergonhados, agora estava ali, sem aviso prévio para que cobrissem o rosto. E então, a mesma mídia que imprimia manchetes de repúdio ao que tinha visto, também tentou dar o benefício da dúvida e justificar a atitude falando que, na verdade, Gal estava sendo coagida e forçada pelo diretor Gerald Thomas a “apelar para promiscuidade”.
— Estou adorando ser atriz. Mostrar meus seios foi uma postura política. Como uma arma! — foi a resposta da cantora.
Agora não tinha jeito, era aceitar que essa era a nova fase de Gal, e que ela certamente não se importava com quem se agradaria com ela. O Sorriso do Gato de Alice já demonstrava isso muito antes de chocar a audiência com a abertura de uma camiseta. Quem conta a desesperança da nuvem negra e já cai no samba, não tem medo que não entrem na sua dança. Gal estava confiante para fazer uso dos elementos que caracterizavam a cena musical contemporânea e incorporá-los à sua forma experimental, criando uma coerência distinta que tornou o disco tão atual quanto imortal.
Com mais de trinta anos de carreira e convicta de que a música popular brasileira só morreria no dia em que o último grande artista traísse sua verdade, Gal vestiu sua roupagem mais inusitada e seguiu, em seus diferentes estilos e formatos, apaixonando o país com o canto da sereia baiana. Ainda que tivesse sido escrita por Macalé, Lanny, Rogerio Sganzerla e o “pessoal da pesada”, só se tornaria Gal por ser Gal. Por ser Maria da Graça, Gracinha, Gaúcha, Gal. Com defeitos, crenças e tradições, não precisa de nome e sobrenome, pois “o amor que faz o homem”. Mas seu nome é Gal.
Autoria: Ana Lívia Lima
Revisão: Luiza Parisi e Laura Freitas
Imagem de capa: Pinterest
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