Querido diário,
Sinceramente, acho estranho te chamar assim, mas faz tanto tempo que não escrevo aqui... não achei um jeito menos clichê de começar. Engraçado já na primeira linha eu comentar o tema do que vim hoje colocar em palavras: o tempo. Não me leve a mal, eu adoro todas as noções físicas e filosóficas que circundam o conceito do tempo, mas a verdade é que eu não entendo direito nenhum deles. Lembro muito bem da primeira vez que tentei ler “O universo numa casca de noz”, do Stephen Hawking, e travei por meia hora na página 4 falando das noções de “espaço-tempo” quase que de uma forma materializada. Adoraria te contar que finalmente entendi essa ideia, mas não é isso que vim fazer.
Sabe, diário, eu venho pensando muito no tempo e, por isso, comecei a refletir sobre minha relação com ele. Mais pessoal do que “o que é o tempo? ”, venho me perguntando “o que é o tempo pra mim? “. Não sei se é por causa da quarentena, que torna a relação de todo mundo com os dias, horas e minutos tão estranha, mas estou percebendo cada vez mais como o tempo é, simultaneamente, o que a vida tem de mais constante e mais incompreensível, extremamente cotidiano e bizarramente desconhecido. Eu penso no tempo o tempo todo. Ou por memórias, ou por previsões. Meu presente é cheio de passado e futuro. No banho, traço todos os caminhos da minha vida, imagino meu primeiro apartamento e todos os quadros que vou colocar nele. No meio da aula, naqueles momentos que eu só paro de prestar atenção, fico lembrando das viagens legais que fiz com meus amigos. Andando na rua, faço as contas de quantos minutos faltam para chegar no meu destino. Estou atrasada? Dá pra pegar um café no meio? Vish, mas aí vai atrapalhar o almoço... Quanto tempo eu gasto pensando no tempo? Minha única conclusão é que essa conta é impossível, mas eu tive uma certa revelação: eu perco o presente.
É muito fácil pensar no amanhã e no ontem. O ontem já passou, tem uma fórmula pronta. O amanhã eu invento, o limite é o racional, e, às vezes, nem isso. Pensar no agora é outra história. O agora é insano, tem constância, mas espera... não tem não. Esse agora aqui não é o mesmo agora de 11 palavras atrás, nem é esse agora, 14 palavras pra frente. Mas todos são agora. É confuso demais, diário. O presente é um conceito concreto, mas móvel. A verdade é que é um pouco amedrontador. Às vezes eu paro o que eu estou fazendo e penso “caramba, eu nunca mais vou ter esse segundo de volta” e só de acabar essa frase o “esse segundo” já virou “aquele”.
Outro dia ouvi uma reflexão num trailer da Netflix que me deu uma meia resposta pra essa confusão, era mais ou menos assim: estamos acostumados a pensar que somos seres que andam pelo tempo de forma linear, mas a verdade é que nós somos completamente imóveis, o tempo anda sobre nós. Achei arrepiante, mas fez muito sentido. Na realidade, eu é que sou linear, o tempo passa por mim por muitos outros caminhos que eu simplesmente não consigo compreender, eu só tento. Sou um pontinho minúsculo, um pequenino espectador no espetáculo do tempo. Ele é quem manda.
Que controle eu tenho sobre os ponteiros do relógio, diário? Nenhum. Eu finjo que tenho, eu “organizo meus horários”, “planejo a semana”, até conto quantas horas eu vou dormir já deitada no escuro… Mas são só formas de evitar pensar que não tenho domínio algum. Parece-me, mais que isso, que eu uso o passado e o futuro pra tentar me convencer de que tenho. Lembrar de algo traz uma sensação de conhecimento - “eu passei por isso”, “lembra daquilo?” - são minhas certezas. Imaginar o que vai acontecer transborda o controle, imaginação - “quando eu...”, “vai ficar tudo bem”. No meio de todos esses pretéritos e futuros perfeitos e imperfeitos, cadê o presente? Aliás, por que não tem presente perfeito e presente imperfeito também? Ah é, porque só tem um. Evitado, quase sempre.
Eu vivo muito menos no presente que nos outros tempos. Parece que só me permito existir plenamente no agora quando isso me traz algum conforto, algum sentimento de “estar onde eu quero estar”. Adoro meus agoras em festas, lendo um livro legal, assistindo uma série ou filme, conversando com meus amigos sem compromissos... Parece que é só quando não tem responsabilidade envolvida, mas não é isso. A sensação de saber estar fazendo uma prova, ou de apresentar um trabalho em que me esforcei muito, isso também me traz para o agora. É sempre assim, em situações, mais que confortáveis, animadoras, quando a vida está do jeitinho que eu quero que ela esteja. Já quando tudo está desmoronando, ou extremamente constante e entediante, monocromático, eu fujo do presente. Vou para o meu mundo, onde eu mando na areia das ampulhetas e nos tique-taques. Às vezes funciona, outras traz uma ansiedade danada.
O que me pergunto é: será que esse caráter monocromático do meu cotidiano não é fruto de não conseguir enxergar o agora? Será que eu não estou me prevenindo de ver as cores da vida só porque me parece mais confortável viajar pra outros tempos onde eu conheço direitinho a paleta do momento? Poxa, tudo bem que andar na Avenida Paulista é uma boa oportunidade para se transportar mentalmente para qualquer lugar do tal espaço-tempo, mas me questiono se eu não estou perdendo uma visão legal de todas aquelas pessoas diferentes passando por mim. Ou se, no breu completo do meu quarto à noite, não seria legal só sentir aquele nada por alguns instantes. Mesmo nos momentos difíceis, talvez fugir do agora não seja o melhor caminho, talvez eu esteja perdendo chances de me conhecer, de entender a complexidade da vida. O ponto é: será que eu não perco as brechas da vida para simplesmente ser, tornando esses momentos tão interessantes muito mais escassos? Se for o caso, que tipo de “controle” é esse que acredito ganhar escapando do presente?
Não é que eu sou contra o planejamento ou a nostalgia. Acho a ideia de “viver o presente” extremamente interessante. Realmente, o passado já passou - e o futuro não existe. Mas a vida é muito mais complexa que isso. É fácil levar o dia na filosofia do agora quando não existe responsabilidade envolvida, mas, principalmente, entrando na vida adulta, eu entendo que não funciona assim. Pensar no amanhã é importante - é racional. Lembrar do passado também. Entender o que deu certo e o que não deu. Conhecer o que me fez quem eu sou. O ponto é que eu com certeza não controlo o tempo, mas eu posso aprender a lidar com ele, sem deixar ele se sobrepor a mim. Eu só ajo no presente, isso é um fato, por isso parece fazer muito mais sentido olhar pro agora que pros outros tempos, só que o meu olhar pode ter filtros, pode ter ideias e concepções, elas só não devem preencher toda a paisagem. Eu sou minúscula no cenário temporal, mas eu ainda sou. Eu sou. Já fui e um dia serei... sempre sou.
Foi uma reflexão maluca, diário, eu sei. Olha as coisas que eu penso andando na rua... enfim, preciso ir, mas deixo uma frase boa pra me inspirar quando reler essas páginas:
Os ponteiros não param, mas eu uso o relógio, não o contrário.
Até amanhã.
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