Quando eu me mudei para Miami eu tinha 9 anos de idade. Em inglês, eu sabia todas as cores, contar até 50 e o verbo “to be”. Minha mãe dizia que esse era o verbo mais importante, e assim, antes das aulas começarem, ela treinava comigo como eu deveria usá-lo. I am Nina. I am 9 years old. I am from Brazil. Foram essas as frases que eu memorizei, era esse o jeito que eu devia me descrever.
Até que em uma das minhas primeiras aulas de literatura, aprendemos o que são substantivos. O professor propôs um exercício: cada aluno deveria se apresentar usando o verbo “to be” e mais um substantivo. “Por exemplo, ao invés de falar ‘Eu sou o Leo e eu gosto de pintar’, diga, ‘Eu sou o Leo e eu sou um pintor’” ele explicou. E então a brincadeira começou: “I’m Mia and I’m a singer” disse a menina sentada na minha frente. “I’m Will and I’m runner” disse o menino ao lado dela. “I’m Kai and I’m a chef” disse outro, e assim foi. Quando chegou a minha vez, fiquei quieta. O professor tentava me explicar o exercício de novo, dando exemplos atrás de exemplos que não se encaixavam comigo. Eventualmente, ela passou a minha vez, achando que eu não havia entendido o exercício por conta do inglês. A verdade era que eu não sabia o que falar. Era muito difícil manter meu senso de identidade quando tudo com o que eu me identificava - minha família, meus amigos, minha cultura - havia sido arrancado de mim. No Brasil, eu era nadadora, escritora, skatista, boa aluna. Nos Estados Unidos, eu não era nada. Eu tentava não pensar muito nisso, em tudo que havia deixado para trás. Tudo que me representava, que me fazia ser eu. Afinal, como uma menina de 9 anos, minha prioridade não era me encontrar, era apenas me encaixar.
Nesses primeiros meses, nada parecia normal. Parecia que não importava o que eu fizesse, era impossível me sentir em casa. Eu ficava especialmente frustrada com todas as caixas que invadiam a sala, a cozinha e até o meu quarto. Assim, eu acabava passando muito tempo na minha varanda, onde eu sentava em um banco de madeira e observava a rua vazia e as casas da frente. A minha favorita era a casa que ficava na minha diagonal esquerda. Ela tinha paredes beges, com detalhes em azul nas janelas, dois andares e um gramado que se estendia pela frente. O que mais me chamava a atenção era uma cesta de basquete pendurada em um canto da garagem. A cesta parecia ser oficial, com aro laranja e rede branca, igual as que eu via nos jogos que passavam na televisão.
Eventualmente, decidi pedir ao meu pai a minha própria cesta. No fim de semana seguinte, ele me chamou para ajudar a montá-lá. Um mês depois, minha mãe me inscreveu numa liga de basquete. No semestre seguinte, passei na peneira da minha escola. Nos próximos anos, fiz parte de 8 times durante as temporadas. Treinei 5 dias por semana. Me machuquei feio 4 vezes. Ganhamos 3 campeonatos. Recebi 2 títulos de MVP. Fui jogar na escola número 1 do Estado.
Neste processo, eu entendi quem eu era e assim, o verbo “to be” não parecia tão apavorante. Eu era jogadora de basquete. Eu era armadora, às vezes ala. Eu era boa defensora, mas melhor ainda arremessadora. Eu era tanto líder como aprendiz. Eu era determinada. Eu era apaixonada. Eu era uma boa amiga. Eu era divertida, alegre, engraçada. Eu era boa ouvinte, dedicada, parceira dos meus treinadores. Eu era filha do meu pai, sempre entregando sangue, suor e lágrimas. Eu nunca me senti tão verdadeira comigo mesma como na quadra de basquete.
Com tudo isso, depois de 6 anos jogando nos Estados Unidos, eu voltei ao Brasil. Com a restrição de times femininos na minha cidade, a chegada da pandemia e novas responsabilidades, passei os primeiros 3 anos sem jogar competitivamente. Ao considerar as diversas faculdades, coloquei como necessário encontrar um time de basquete. Quando passei na FGV, comecei a treinar com as meninas imediatamente, antes mesmo das aulas começarem. Entrei no time num momento turbulento, com várias angústias na minha vida pessoal, mas nada disso importou. Fui recebida com carinho, risadas e um senso inexplicável de companheirismo. Com elas, me senti em casa em cada quadra em que jogamos. E assim continua, ano após ano. Todo começo de temporada me encontro cara a cara com uma menina de 9 anos, segurando a bola pela primeira vez.
Autoria: Nina Neves
Revisão: Ana Carolina Clauss, Laura Freitas
Imagem de capa: Foto própria da autora
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