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DESCULPAS


Aprendi a pedir desculpas cedo demais na vida. Quando pequeno, passei curtos anos com avôs e avós, tias e tios amorosos num pequeno sítio no interior do Rio de Janeiro. Árvores esparsas e frondosas, com altas copas e lindas flores. Bico-de-papagaio, eu lembro. Tantas havia. Relva macia de qualidade, terra farta e fértil. Cães felizes, cores vibrantes e aromas que, mesmo com tamanha densidade, eram leves como pluma. Raios de sol me esquentavam a pele como um abraço apertado e brancas orquídeas decoravam o ambiente. Caminhos de terra batida, projetos de obra em andamento, progresso e fartura. Tudo isso durou breves cinco anos e depois as coisas mudaram. Esqueço-me dos pormenores, agora me prendo no conceito das desculpas. Não tente adivinhar minha história.


Conheci o concreto, a luz fria e a disciplina. Minha mente, antes em fluência de ideias com o ambiente e com as pessoas, agora era, para mim, um íntimo esconderijo. Eu pedia desculpas. Pedia desculpas por ter mudado de um ambiente para outro em que não me sentia bem-vindo. Pedia desculpas por falar baixo e por andar com o olhar para o chão. Aparentemente isso era patético e errado. Pedia desculpas por chorar de madrugada com saudade da vida de antes e da minha família. Pedia desculpas por ter insônia e pesadelos, já tão novo. Pedia desculpas por não gostar de feijão rijo, sem tempero e com tanto alho esbranquiçado que, para meu paladar, era da mais forte picância. Pedia desculpas por ir ao banheiro no meio do almoço e por sonhar demais por não gostar da realidade.


Vivia trocando de escolas. Pedia desculpas por não me adaptar bem em ambientes em que nunca estive antes, com pessoas que se viam desde sempre, mas que eu nunca havia visto. Pedia desculpas por não tirar notas boas em um lugar em que eu não suportava estar, por me ver rodeado de crianças maldosas e impressionantemente manipuladoras que me tratavam mal. Pedia desculpas por não ser uma criança mais organizada, mesmo que eu fosse bastante organizado para uma criança. Pedia desculpas por esfregar o nariz na roupa, mesmo tendo convivido, desde recém-nascido, com uma violenta alergia em decorrência de um rompimento prematuro que me fez tomar pesados antibióticos no primeiro dia de vida e que me deu pneumonia e uma asfixia que exigiu a retirada da minha amígdala. Pedia desculpas por espirrar demais. Pedia desculpas por não ter motivação para estudar disciplinas escolares e, ao invés disso, criar histórias, aventuras, jogar jogos e inventar brincadeiras que me levassem de volta para casa, onde era seguro e as coisas faziam sentido.


Pedia desculpas por ser sozinho, por ser estranho, por ser sensível e por chorar. Pedia desculpas por visitar minha própria mãe e por passar meu tempo com ela como gostaria. Pedia desculpas por não me sentir em casa e por crescer inseguro e frágil. Pedia desculpas por ter cabelos grandes e amigos gays e por tratá-los bem. Pedia desculpas por me isolar e por me retrair. Pedia desculpas por ter criado uma armadura desconfortável, porque seu desconforto era inferior ao do dano à pele nua. Pedia desculpas por me armar contra coisas que antes me feriam, como memória muscular. Pedia desculpas por amar demais aos outros, e menos a mim, quando é isso que me foi posto a crer.


Pedia desculpas por não assumir, calado, o erro dos outros como meu próprio. Por manifestar, com argumentos contundentes, coisas plenamente lógicas de minha defesa contra quem quer que seja, porque era uma defesa, afinal, eu deveria, parece, ser indefeso. Pedia desculpas por ser indefeso, quando eu deveria ser indestrutível, e por ser inflexível, quando eu deveria ser paciente. Pedia desculpas por não querer ser apenas um ouvinte, porque também tenho minhas opiniões e pedia desculpas por ter opiniões, porque a casa nunca foi minha. Pedia desculpas por não me sentir em casa.


Pedia desculpas por falar a verdade quando se sabia o que ela era, por seus efeitos. Pedia desculpas por suportar, com raiva, os efeitos das mentiras e pedia desculpas por ter raiva. Pedia desculpas por não gostar das mentiras quando vindas de autoridade e por não reconhecer autoridades que não deveriam existir. Pedia desculpas por não aceitar o açoite das injustiças, quando suas estruturas se enraizavam ao meu redor, como um palacete medieval de ignorância. Pedia desculpas por não ser ignorante e por pensar ao meu modo, por ver o mundo como eu vejo, por perdoar e conceder a quem toma dos outros o perdão. E pedia desculpas por existir, em geral.


Minhas desculpas não eram necessariamente, em todas as ocasiões, de mim para outrem. Precisamente, todas eram, no mínimo, para mim. Devo dizer que me pedi muito perdão e jamais, antes, o concedi, porque esperava que a concessão fosse de fora para dentro, e não de dentro para dentro. Desafio algum será maior para mim do que o qual outrora se mostrou: amar a mim mesmo. Ainda luto por isso todos os dias. Com progresso e retalhos, procuro mitigar minhas inseguranças e aceitar meus bons atributos, porque sempre os neguei. Com todas as forças, suprimo a deficiência psicológica de que se serve minha depressão, porque devo ser mais forte, hoje e sempre, do que elas. A deficiência. E a depressão.


Pedi desculpas demais e não acredito, depois de tanto tempo, na revolta como fonte de superação. Não gosto dos testemunhos de quem mal deseja a quem mal lho houvera feito. Não aprovo o dano com o ódio ou o desgosto com o desprezo, porque é preciso força para lutar com o corpo e mais força ainda para lutar com a mente. Se há raiva e remorso, sei que perdi o ponto. Quando existe, mesmo excepcionalmente, uma felicidade derivada de que eu me encontro em mim mesmo, sei que o venci. Apesar de tudo, não é tão óbvio quanto parece. Poderia eu mesmo ter lido essas palavras meses antes, anos antes, e não entendido, porque a compreensão das palavras é tão mais rasa do que o significado que elas pretendem. Este vem da vivência, da experiência de ter sido repelido ou rejeitado, ou qualquer algo ruim ou bom.


Meu coração não é pesado e não deve ser. Não deve carregar mágoas mundo afora, mas ainda carrega. Sou pequeno neste planeta e nesta vida. Sou novo e sou criança e devo me permitir aprender, como raramente vejo ser feito, porque é comum usarem, impulsivamente, a idade como prerrogativa de experiência, saber de mundo, mas acredito que a sabedoria vem da disposição que temos, em cada contexto, bom ou ruim, de mudarmos para melhor. De adquirir, com inteligência, ou tentar, o que acreditamos ser bom para o outro, e para nós. E mesmo colocando-os sob péssimas circunstâncias, muito que vale é o amor que pretendemos, os bons resultados, as boas intenções. Uma pena, porém. Intenções não curam feridas, e que bom. A pele cicatrizada é mais rígida.


Minha proposta, no entanto, é posterior à carcaça firme que se faz da cura. Um unguento para a pele, um remédio a mais, é o perdão. Poderoso como é, não há tanto quem saiba interpretá-lo, e precisa de amor para funcionar. Não vejo muita competência em lugar algum para que lidem bem com o amor. Dizem que machuca, mas penso que não é bem o amor que fere a pessoa, é, sim, o que o acompanha. O medo da perda e do abandono. Não importa tanto o estado anterior ao conhecimento do amor que se queria. O que importa mesmo é que se agora o tem, e abriu-se o céu profundo depois dele. Que será, agora, da realidade, sem o céu escuro e lindo, cheio das mais elaboradas galáxias que, perplexas com sua infinidade, giram incessantemente, como a gastar energia? É daqui, então, que voltamos às cicatrizes.


A pele nova que pretendo e que tenho construído há tanto tempo é difícil. Não só rígida como aço, porque com aço não sinto o vento. Não só bruta como pedra, porque com pedra não sinto as ondas. Não só lânguido como o barro, porque com barro não me sustento contra as intempéries. Não só mais como antes era, porque o homem é bicho frágil. Quero a pele resistente e sensível como a dos cães. A inteligência humana me adiciona o poder da escolha e, dela, me sirvo com boas companhias. Poderia, hoje, pedir desculpas mais uma vez, por ser estranho, reservado e diferente. Mas eu sei que, fosse o caso de conceder abraço, conforto ou companhia a quem bem fizesse, eu o faria de bom grado. A quem mal fizesse, nada entrego, de bom ou de ruim.


Por fim, me despeço das desculpas. Muito agradeço por elas, porque me deram a clareza de que não sou vítima de absolutamente nada. Não fossem os fatos que se sucederam, jamais eu seria quem sou, e acho que não gostaria de ter sido outro eu — porque eu já nem mais seria. Perdoo-me, finalmente, porque carregar um elefante por tanto tempo me cansa as costas. É como Atlas se descobrisse que a abóbada celeste era, desde o princípio, um biombo multicor. Digo que amo e me pego todo dia amando mais. Digo que perdoo e, cada vez mais, concedo perdões. Dentro de mim o entrego, é claro, porque, às vezes, não é bom entregá-lo a quem ainda precisa de sua ausência.


E tendo em vista o possível desenrolar dos eventos do mundo, seja porque estamos numa matrix, ou porque o universo é uma pedra de areia, o colar de um gato ou interior de um átomo, toda essa reflexão me leva à simplicidade. Ao procurar pelos óculos enquanto estão no meu rosto ou lutar contra o ar com uma espada, vejo que as ilusões que criei do mundo perduraram por tempo o bastante para causarem péssimos efeitos ou bons placebos de que eu poderia me servir. Acho, no fim das contas, que as desculpas são a expressão do arrependimento ou de uma farsa de quem as pede por interesse. No fim das contas, pedi desculpas quando não precisava, mas penso que precisei pedir desculpas para deixar de pedi-las demais.




Autoria: Rodrigo Ferreira

Revisão: Luiza Parisi

Imagem de capa: Homem lendo, Instagram

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