Rua Desembargador do Vale, número 914. Nesse endereço, posicionado no segundo andar de um avelhantado edifício situado aqui no bairro de Perdizes, encontra-se o humilde apartamento onde vivi boa parte da minha infância. Lá, morávamos eu, minha mãe e meus avós -– éramos bem grudados, apesar de nem sempre estarmos tão próximos. Isso porque minha mãe passava a maior parte do dia no trabalho, já que saía de casa no período da manhã, quando me levava à aula, e retornava apenas para o jantar. Eu também não parava quieto nem por um segundo: assim que chegava da escola, almoçava o mais rápido possível e descia na limitada área de lazer do térreo para encontrar algum amiguinho que estivesse sem ter o que fazer. Gostava muito de brincar com a turma do prédio, que era formada pelo Gui, pela Isa, pela Marcela, pelo Rafa e por mais alguns outros garotos e garotas de que não lembro bem. A Marcela era a mais velha do nosso grupo, então nunca conseguiu se enturmar direito conosco. O Rafa era mais velho também — além de ser um dos meus amigos mais engraçados, diga-se de passagem — mas inventava muitas histórias para diminuir seu tédio. E nós, pequenos e ingênuos, acreditávamos em cada palavra. A Isa era meio maluca. Certo dia, estávamos jogando alguma coisa em meu apartamento, quando ela se deparou com uma bala de caramelo já envelhecida que estava na estante do meu quarto havia pelo menos uns dois anos. Sem que eu percebesse, agarrou o doce e o entregou para mim, dizendo que tinha trazido de casa aquele presente porque sabia que eu iria gostar — vai entender qual era a dela. Guilherme foi um achado um pouco mais marcante, pelo fato de que foi o único daquela roda com quem mantive um forte laço de amizade até a pré-adolescência.
Em outras palavras, eu tinha uma vida sossegada e com boas companhias. Mas, no fundo, minha melhor amiga durante a primeira parte da infância foi minha avó, dona Maria Aparecida. Quer dizer, é claro que minha mãe sempre fazia um tremendo esforço para estar ao meu lado durante todas suas horas vagas e fins de semana, mas eu inevitavelmente acabava passando mais tempo ao lado da minha avó. O vô, seu Kiyoshi Motooka, por outro lado, era um pouco mais fechado e um tanto reservado. Sendo filho de imigrantes japoneses e sobrevivente de uma vida sem luxos, obrigado a enfrentar inúmeras dificuldades desde cedo, era um senhor que demonstrava afeto à sua maneira, como dizem por aí. Então, éramos apenas eu e dona “Cida” -– assim chamada carinhosamente por suas seis irmãs e pelos mais chegados -– na maior parte das tardes, divertindo-nos com nossas brincadeiras preferidas, como esconde-esconde, arremesso de carrinho pelos corredores, caça aos objetos que o outro escondia, entre muitas outras. Eu também adorava quando ela fazia desenhos para que eu colorisse, já que a vó amava desenhar e pintar, mas estava dando um tempo nisso, porque as paredes de casa não tinham mais espaço para comportar outro quadro seu.
Foi quando completei sete anos que conseguimos melhorar um pouco nossa condição e nos mudamos para um apartamento um pouco mais legal, com maior espaço e uma área de lazer que me deixou encantado. Era próximo de um clube – do jeito que meu avô queria – e conquistara o coração da minha avó desde sua primeira visita. Minha mãe desde o princípio detestou o lugar, mas não poderia desapontar nós três, especialmente sua mãe, com a escolha da mudança. Então, trocamos de endereço, tendo a falsa impressão de que a vida em nosso novo lar seria mil maravilhas. Infelizmente, nem tudo são flores. O céu já não estava mais tão azul e o canto dos pássaros encontrava-se cada vez mais distante. Dona Cida não era mais a mesma mocinha de antigamente: estava mais cansada e queixava-se de algumas dores que a incomodavam mais a cada dia. Tamanho foi o incômodo que ela me chamou para o canto numa tarde, dizendo que provavelmente teria que ficar longe de casa por um tempo, mas que eu poderia visitá-la no hospital sempre que quisesse. Eu, indignado, passei os dias seguintes emburrado, pois não entendia o motivo de minha avó fazer aquilo comigo, considerando que ela sabia como eu iria sofrer por saudades. Então, na manhã do dia que foi internada, ela me acompanhou até a escola e, ao se despedir, não fui capaz de retribuir suas palavras meigas e acaloradas com qualquer coisa além de um “tchau” seco e sem muito ânimo.
Um mês depois, dona Cida nos deixou, acometida por uma infecção hospitalar que contraíra após operar o tumor que criava raízes em seu estômago. Foi assim que perdi minha segunda mãe, sem aviso prévio ou data marcada. A notícia chegou em casa como uma bala de canhão. Eu e minha mãe soluçamos e sofremos e choramos e sofremos mais um pouco, porque a dor era tamanha que não poderia ser contida nem por um segundo, porque o silêncio e a quietude iriam nos corroer bem mais rapidamente do que o choque de forma isolada. Foi nessa época que percebemos o quanto minha avó precisava estar ali para que nada desmoronasse: nos meses seguintes, minha mãe e seu Kiyoshi tiveram a briga mais feia que eu poderia ter tido o desprazer de presenciar. Meu avô se mudou e ficou bons anos sem ter contato conosco. Como o apartamento estava vazio agora, tive que passar a viver com uma tia-avó e com minha madrinha, fazendo com que minha casa servisse apenas de dormitório até que eu completasse doze anos – mais ou menos quando acharam que eu já conseguiria me cuidar por conta própria. O tempo caminhava e as irmãs de dona Cida estavam cada vez mais distantes de nós, como se o vínculo que nos ligava tivesse sido rompido da forma mais agressiva possível.
Passei a repetir como um mantra que morrer não seria algo tão ruim assim, pois poderia ver minha avó novamente. Mas, sendo bem honesto, morrer era sim um grande problema. Era uma assombração, na verdade. Gastava mais tempo do que gostaria de admitir pensando na morte e em como as coisas são transformadas com a sua chegada. As noites que passei em claro eram em grande parte decorrentes das visitas que ela fazia em minha imaginação, e em decorrência do fato de saber que eu ainda estaria no conforto do meu lar, com o carinho dos meus avós e com a família unida, se ela tivesse esperado um pouco mais para nos cobrir com seu véu gélido e escuro. As saudades me apertavam o peito, mas seria egoísmo da minha parte deixá-las interromperem minha vida, quando todos ao meu redor estavam sofrendo o mesmo tanto, senão mais, e continuavam com suas rotinas, porque, afinal, o que mais fariam? Minha mãe dava seu melhor para disfarçar a tristeza ao levar-me à escola, mesmo que transbordasse em lágrimas no momento em que eu cruzava o portão de entrada do colégio, e mesmo que eu soubesse exatamente o que estava acontecendo, apesar de seu esforço sobre-humano para tentar criar essa ilusão de que as coisas não estavam tão ruins quanto parecia.
A vida prega algumas peças e isso é bem frustrante, mas são coisas inevitáveis que iriam nos esgotar pouco a pouco, caso déssemos a elas atenção além da conta. Em julho de 2023, perdi meu pai para a mesma doença. Nunca tivemos uma relação padrão de pai e filho e, sobre isso, reservo outro texto. O que tenho a dizer é que meu pai me presenteou com uma lembrança pela qual tenho uma tremenda admiração atualmente. Ao longo dos últimos dois anos, nunca se vitimizou por estar doente. Nem uma vez sequer alterou seu tom de voz, seu humor ou qualquer outra coisa devido ao câncer. Apenas explicava que não estava em condições de conversar direito ou de ficar tão disposto, porque passava por uma fase pesada do tratamento ou porque não havia conseguido descansar o suficiente na noite anterior. Sempre tinha em mente seus sonhos, que ainda gostaria de perseguir, seus defeitos, que ainda pretendia corrigir, e seus agradecimentos pelos pontos que estavam dando certo.
Não tenho mais tanto medo da morte. Ela continua me assustando, é claro, assim como diversas outras coisas que podem acontecer para além dos problemas que já existem e estão no curso natural da vida, porque, convenhamos, eles sempre estão presentes. A questão é: quão dispostos estamos para deixar um pouco de lado nossas tristezas e frustrações – já que não podemos escapar delas mesmo – as quais, com sorte, serão apenas borrões em nossa memória num futuro não tão distante? Afinal, a vida tem seu lado bom também. Minha relação com minha mãe nunca esteve melhor; tenho o privilégio de estudar na faculdade pela qual batalhei tanto para ser aprovado; fiz amizade com pessoas que colocam um sorriso genuíno em meu rosto e namoro uma garota que ri de todas as idiotices que falo, além de ser a dona do meu coração.
Poucas lembranças restaram da vó Cida, apesar de ela ter sido uma das pessoas mais importantes que conheci. Não me recordo bem do seu jeito de falar, dos seus abraços, nem mesmo da sua risada — talvez porque era muito novo quando tudo aconteceu, talvez porque os curativos oferecidos pelo tempo têm um alto custo. Ainda acredito que vamos nos encontrar -– e que delícia será esse encontro. Contudo, até lá, teremos que nos contentar com o que temos. Teremos que nos contentar com as brincadeiras, os desenhos e os momentos que tive o prazer e o privilégio de viver com você lá na nossa casinha, na rua Desembargador do Vale, aqui em Perdizes.
Autoria: Rafael Diz Motooka da Cunha Castro
Revisão: Gabriela Veit e Luiza Parisi
Imagem de capa: Old and Young People Holding Hands
Comments