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DEVEMOS, PODEMOS OU CONSEGUIMOS SEPARAR A OBRA DO AUTOR?




Inspirada pelo texto de Claire Dederer "O que fazer com a arte de homens monstruosos" para o El País e pelas infames atitudes recentes do rapper Kanye West, encontrei-me novamente refletindo sobre o dilema da separação entre o artista e a obra. No texto de Dederer, a escritora discorre sobre as criações de diretores de cinema, atores, escritores, designers e pintores como Woody Allen, Roman Polanski, Bill Cosby, Caravaggio e John Galliano, pessoas que cometeram (ou foram acusadas de cometer) atos condenáveis, mas que produziram algo maravilhoso. No fim da leitura, a autora nos deixa algumas perguntas e são elas que eu, humildemente, tentarei responder.


"O que fazemos com os monstros? Podemos e devemos amar suas obras? Todos os artistas ambiciosos são monstros? E, em voz muito baixa: sou um monstro?"


O que fazemos com os monstros?


Tomando como exemplo Kanye West, famoso rapper e cantor americano, podemos relembrar suas mais recentes polêmicas, que resultaram na suspensão de suas contas do Twitter e do Instagram. Só em 2022, o rapper fez declarações anti-semitas, usou uma camiseta de seu design com a frase “White Lives Matter”, comumente proclamada por supremacistas brancos, na Paris Fashion Week, e insultou George Floyd, símbolo da renovação do movimento Black Lives Matter contra a brutalidade policial direcionada à população negra. Além disso, "Ye", em posts caricatos nas redes sociais, expressou lapsos de agressividade contra diversos outros artistas, como Drake, Trevor Noah, Taylor Swift e o ex-namorado de sua ex-esposa Kim Kardashian, o humorista Pete Davidson, que foi até ameaçado de morte por ele.


Há alguns anos, West vem se posicionando de maneira controversa em relação a alguns temas políticos, demonstrando apoio ao ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Em palanques e shows, mostrou-se a favor do porte de armas, contra o Roe v. Wade (marco da legalização do aborto nos EUA), e como um negacionista em relação à escravidão da população negra e à sua marginalização na sociedade norte-americana, dentre outros. Neste ínterim, o artista foi diagnosticado com transtorno de bipolaridade e, por muito tempo, suas atitudes foram relativizadas, mas agora chegaram a um ponto além do "passável pano".


Racismo e antissemitismo foram o ultimato para que grandes marcas, como a Adidas, com a qual possuía um acordo bilionário, rompessem contratos com West. Gap e Balenciaga também encerraram seus relacionamentos com Kanye, o qual, além de tudo, foi processado pela família de George Floyd após dizer que este havia morrido por abuso de drogas, não por conta do asfixiamento feito por policial em um ato de brutalidade que foi registrado por vídeo e veiculado ao redor do mundo através das redes sociais. Além disso, ele perdeu o contrato de seu selo GOOD Music com a sua gravadora de longa data, a Def Jam.


Essa foi a resposta do mercado e de alguns entes diretamente afetados pelas ações de Kanye. O artista saiu da lista dos bilionários da Forbes e estima-se que tenha perdido cerca de US $1,5 bilhões até então.


Contudo, quanto à sua audiência, restam diversas questões. No campo artístico, apesar de seu ego gigantesco e contínuas polêmicas, a qualidade musical de sua carreira é muito aclamada. O rapper possui uma série de prêmios, dentre eles Grammys, AMA's e VMA's, além de ser escutado e adorado por inúmeros fãs internacionalmente. A despeito de estar envolto em polêmicas mais escandalosas do que nunca e de isso ter afetado a maneira que o público o enxerga e, portanto, pensa antes de o escutar, em comparação à época de músicas que o alavancaram, como Gold Digger, Jesus Walks e Stronger, seus últimos trabalhos não têm gerado tanto impacto atemporal, fora Donda, seu último álbum de estúdio bastante discutido e envolvido em uma série de controvérsias. No Spotify, suas músicas com mais acessos, em sua grande maioria, são dos álbuns mais antigos, assim como nas paradas da Billboard, nota-se que suas produções recentes não possuem resultados como antes, como a presença no Top 10 da lista [1]. Seria, assim, enviesado dizer que apenas as recentes polêmicas afetaram seus números e não considerar uma mudança relevante na adesão do público aos trabalhos do artista desde o álbum The Life of Pablo. Então, pergunto: deixamos mesmo de escutar aquelas músicas icônicas da carreira de Kanye por conta dos últimos escândalos? Estendo essa pergunta: deixamos de ler livros, assistir filmes e ouvir músicas de artistas que também fizeram algo muito ruim?


Acredito que não. No caso de Kanye, apesar de tudo, hoje, ele é o 24º artista mais escutado do mundo inteiro no Spotify. Isso mostra que ainda o escutamos, especialmente suas músicas mais antigas. É muito difícil desapegar de coisas com que construímos uma relação subjetiva de apreciação, gosto ou afeto. Esse pode ser o caso da música de Kanye para muitos e da obra de outros artistas para outros. Por isso, atento ao caráter político e ético que deve ser balanceado por nós ao consumirmos arte.


Roman Polanski estuprou menores, Woody Allen é acusado pela própria filha de molestá-la quando criança (além de ser casado com a filha adotada de sua ex-parceira Mia Farrow, a qual criou e entre quem possui 34 anos de diferença) e Bill Cosby está também na seara das acusações de crimes sexuais assim como muitos outros atores. John Galliano, ex-diretor criativo da Givenchy e da Dior, foi "cancelado" após o vazamento de um vídeo em que proferia falas racistas e antissemitas. Caravaggio, à sua época, foi preso pois matou e violentou pessoas. Coco Chanel, fundadora da marca homônima, revolucionou a moda, especialmente a feminina, com a introdução da calça ao guarda-roupa das mulheres, o little black dress e o uso do preto casualmente, mas compactuou com o nazismo. Não diria que todos esses artistas continuaram no mesmo patamar de aceitação em suas novas produções ou que conseguiram se manter trabalhando na área a depender da proporção da polêmica em que se envolveram, mas, de fato, o olhar sobre suas obras é ampliado, e devemos ser atentos e críticos a elas.


Na matéria do El País, Dederer traz um exemplo que vale a reflexão: o filme Manhattan, de Woody Allen. Nele, que é considerado por muitos o melhor filme do diretor, é retratado um relacionamento entre um homem de 42 anos e uma garota de 17. Até aí, quando falamos de narrativa, não é um grande problema — afinal, é ficcional, não é mesmo? Muitos outros filmes de Allen tratam de relacionamentos com uma grande diferença de idade. Contudo, quando percebemos que a ficção é prática na realidade, tudo fica mais complexo. Isso não torna o filme menos bem feito ou produzido, mas, certamente, o torna muito mais questionável.


Por fim, neste tópico, é importante nos perguntar o que fazemos com as "monstras". Uma mulher se torna um monstro aos olhos do público por motivos muito diferentes dos homens. No geral, o abandono familiar ou a não constituição de família, a rebeldia, a traição, o ato de tornar-se parceira de um homem amado pelo público ou, de modo geral, o comportamento fora dos ditames da moral tradicional geram a reprovação de uma mulher na mídia. Não estranhamente, todos esses quesitos estão vinculados ao patriarcalismo. Exemplos em que fica muito clara a demonização de mulheres que não correspondem às expectativas da sociedade são Madonna e Miley Cyrus.


Madonna foi uma mulher disruptiva na indústria musical desde que surgiu. A cantora endereçou a sexualidade feminina, o amor livre e causas LGBT em suas músicas e performances e, por conta disso, mais especificamente pelo videoclipe da música Like a Prayer, foi boicotada pela Igreja Católica. Além disso, após o lançamento de seu livro Sex e álbum Erotica, foi duramente criticada como uma mulher indecente, além de hostilizada em público por Steve Tyler no VMA de 1994, por exemplo. Ao longo dos anos, ela foi censurada em suas falas em entrevistas e músicas por conta de seu vocabulário "sujo". Algo parecido aconteceu na transição de carreira de Miley Cyrus, quando esta saiu do nicho infanto juvenil como Hannah Montana para a sua fase adulta e lançou clipes como We Can't Stop e Wrecking Ball. Miley foi posta pela mídia como uma depravada e uma vilã perante seu relacionamento findo à época com o ator Liam Hemsworth. Uma onda moralista e patriarcal a boicotou e difamou por anos e, apenas quando ela voltou a se relacionar com o mesmo homem e lançou seu álbum Younger Now, em que usou uma estética clean e romântica, foi encarada com mais respeito pela mídia, até se divorciar e assumir o papel de louca e instável novamente.


Podemos e devemos amar suas obras?


Pessoalmente, gosto muito de algumas músicas e álbuns de Kanye West, mesmo que não exatamente me representem, ainda que tratem diversas vezes de temas religiosos, mesmo sendo, muitas vezes, vindas de uma voz extremamente narcisista e egocêntrica (talvez até machista de vez em quando). Sim, a sonoridade, a produção, a criatividade narrativa, tudo isso me faz gostar da obra dele. Esse é o campo subjetivo, que responde pela ação. No campo objetivo, no qual o lado artístico não predomina em termos de escolha, penso diferente e aqui há um embate. Um artista que representa o armamentismo, o negacionismo e, até mesmo, o racismo me representa? Quero vê-lo prosperar e manter-se relevante? É algo ambíguo, porque quero talvez que ele continue fazendo músicas boas, mas não quero que ele influencie as pessoas. A resposta para esse impasse: não escolhemos o que amamos, mas podemos escolher o que apoiamos e consumimos. Não significa que banirei eternamente as músicas de Kanye West da minha vida, mas acompanhar seus lançamentos sem qualquer crivo crítico e noção do que significa escutá-lo está longe de ser o ideal. Vale ressaltar que sim, consumir a obra de alguém é apoiá-lo, tanto monetária como pessoalmente, em termos de influência e relevância na mídia e até na história.


De forma alguma acho que devemos apagar qualquer um da história, até porque a memória deve ser preservada para fins culturais, críticos e analíticos. No entanto, como uma certa pessoa é retratada e vista é a nuance em que devemos focar. Como vivemos em um mundo onde o dinheiro dita muitas coisas, há um ponto de convergência que merece atenção: consumir, no sistema em que vivemos, é, no fim, direcionar dinheiro a alguém, ou seja, é dar poder e importância, especialmente quando tratamos da indústria da arte e do entretenimento. Então, quando falamos de pessoas ativas, ainda vivas ou que tenham herdeiros no prazo de duração dos direitos autorais (período em que os sucessores do autor detêm os direitos sobre a obra, o qual varia entre os países), por exemplo, o consumir é uma atitude com repercussão moral e política. Isto porque estamos alimentando aquela fonte e mantendo-a acesa, relevante, poderosa e capaz de disseminar ideias com as quais não concordamos para além de sua arte em um contexto isolado.


A arte de Kanye West não é Kanye West. O que ela diz não necessariamente reflete suas atitudes pessoais no mundo. Entendo que a arte, quando colocada no mundo, tem sim um sentido atribuído pelo artista, mas, para quem a recepciona, pode ter muitos outros. Ela pode significar um momento, uma memória, um sentimento, palavras, imagens ou sons e pode nos dizer diferentes coisas. Quando a arte é posta no mundo, ela não é só mais de quem a criou, mas de todos nós que a ouvimos, vemos ou sentimos. A interpretação dela não precisa ser teleológica, em que busca-se atribuir seu sentido a partir da finalidade pretendida pelo autor, ela pode ser exegética, analítica e pessoal.


Podemos amar obras de quem não gostamos, afinal, a arte é subjetiva e ela nos toca de maneiras que não conseguimos muitas vezes entender. Apenas temos que ter muito cuidado com o que fazemos com ela e talvez até ter parcimônia ao revisitá-la. A obra, por si, se torna do público, quem a interpreta e sente, portanto, ela tem sim uma dimensão descolada do artista. A arte é política na medida em que ela transborda quem a criou, mas ela está sujeita a diversas interpretações que a compõem como objeto de apreciação coletiva. A arte é um continuum, que segue ganhando significado após o seu rebento. Entretanto, vivemos num mundo ditado pelo capital e isso implica no consumir, que fortalece ou mantém o autor. Aqui resta o campo da nossa ética enquanto consumidores dela.


Todos os artistas ambiciosos são monstros?


Essa eu respondo fácil: não. É determinístico afirmar que a ambição na arte leva à loucura ou à má conduta de modo geral, embora seja uma constante observada em muitos artistas considerados geniais. Todos temos defeitos e erramos. A discussão aqui pauta-se nos que fogem da proporção e chegam ao patamar do crime ou enorme controvérsia. A lista é infindável de grandes artistas que não são monstros, apesar de seus erros humanos.


E, em voz muito baixa: sou um monstro?


No final, o que é um monstro? E o que somos? Fica a autocrítica proposta por Dederer. Não sou uma pessoa imaculada. Minha impulsividade e ímpeto para expressar-me podem me fazer monstruosa em algum sentido. Lógico, sou mulher e minha própria existência já implica, nesse mundo machista, outros parâmetros incomparáveis aos que consideramos para monstros por aí, como crimes de fato. Seria monstruosa se não seguisse o que esperam de mim como mulher? Se não viver em prol de um homem e não corresponder às expectativas tradicionais de gênero e sexualidade, se for ambiciosa ou até mesmo se for imperfeita? Aqui cabe a crítica de um peso e duas medidas. Enfim, não somos todos monstros, mas somos imperfeitos e o que a nossa arte emana, naturalmente, irá refletir essa realidade de alguma forma.


Assim, chego às minhas conclusões. A primeira é que o mercado ostraciza "monstros" em manada apenas quando estes são considerados "maus demais", ou seja, geralmente quando estão ligados a polêmicas de antissemitismo e, hoje, também, de racismo. Detalhe que apesar das falas racistas de Kanye terem surgido há anos atrás, somente agora, após falas contra a população judaica combinadas a seus atos violentos na internet e racismo, que ele foi "cancelado". Quando falamos de um público tocado pela polêmica (não sejamos ingênuos, pois muitos simplesmente não ligam), podemos dizer que este transforma a obra do "monstro" em um guilty pleasure. A segunda é que podemos amar a obra de um "monstro", contanto que nos mantenhamos críticos para além dela. A terceira é que nem todo artista ambicioso está fadado a ser um "monstro". A quarta e última: sou imperfeita, mas não sou um monstro.


Autoria: Maria Eduarda Neuburger Freire

Revisão: Anna Cecília Serrano e João Rafael Colleoni

Imagem de capa: Reprodução Highsnobiety


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Nota de rodapé:

[1] Kanye West. Billboard. Disponível em: <https://www.billboard.com/artist/kanye-west/chart-history/hsi/>. Acesso em: 4 dez. 2022.

Referências:

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