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EM CÍRCULO



Mais uma vez, aquele som infernal a derrubou do voo que fazia sobre São Paulo embaixo das cobertas quentinhas. Já tinha acontecido às 8:30, às 8:35 e às 8:40. Agora eram 8:50 e não dava mais para enrolar, precisava pelo menos jogar uma água no rosto e correr para pegar o restinho do café, tentando não derrubá-lo enquanto corria de volta para a escrivaninha. Tirou a blusa tão aconchegante com os desenhos de criança estampados – sempre defendeu que os melhores pijamas são os mais infantis – e vestiu qualquer coisa que havia jogado na cadeira na noite anterior, mantendo a calça listrada cor-de-rosa. Aí, começaram as tomadas. Carregador do computador, encontrar o adaptador para encaixar também o fio do celular, cadê o fone? Um emaranhado complicado que não ia dar tempo de resolver nos 3 minutos que faltavam, ainda precisava abrir a janela, ligar a tela e encontrar o link certo... Enfim, o primeiro dia de aula.


De alguma forma, 10 minutos foram o suficiente. Muito bem poderiam ter sido 30 ou 20 se não fosse pelo seu pensamento de “no pior dos casos eu só ligo no celular e deixo a câmera fechada”. Estranho isso, né? Quando tinha aula, aula de verdade, ela acordava uma hora antes. Realmente, às vezes precisava correr com o café ou com a escova de dentes, mas sabia que precisaria de um tempo pra tirar o pijama, colocar roupa de verdade e, claro, pelo menos uns 25 minutos até chegar à aula, por isso impunha um limite à enrolação. Todo o caminho que antes percorria meio a pé, meio pelo metrô, às vezes de carro, agora era um caminho do quê? De mouse? Ligar o computador e procurar o link nas conversas do Whatsapp Web, ou na sala virtual... virtual, esse era o caminho, nada de realidade nele. Nada de descer o elevador, observar as pessoas na rua ou atravessar os túneis do metrô divagando sobre como será que tinham feito aqueles buracos que sustentam trens. Nada disso. A volta às aulas era a três passos do seu armário e dois da cama, cercada dos elementos que antes eram restritos ao conforto do lar. A volta às aulas nada tinha de volta.


Não havia se ausentado no mês de julho, descansado um pouco, visitado outros lugares e depois retornado para uma rotina. Eram sempre as mesmas paredes, as mesmas pessoas. Ela amava sua casa e sua família, não duvidava, mas caramba, uma parte de amá-los não é exatamente sentir que são especiais no dia a dia? Não teve quebra de rotina. Esteve na mesma posição por 1 ano e meio, com minúsculas variações, pois já tinha explorado todos os cantos do seu quarto nos mais diferentes momentos. As férias não passaram de um descanso para os olhos, mínimas visitas ao resto da família e pequenos encontros com certos amigos. Não que tenha sido ruim, longe disso. Aliás, queria mais, pois quatro semanas não tinham dado conta do recado. Sua cabeça e suas costas ainda doíam do semestre anterior. Além de que o computador parece sugar uma energia a mais e, no final das contas, mesmo que tivesse tentando ligá-lo o mínimo possível em julho, o mundo todo ainda estava preso àquela tela, então não conseguiu escapar da máquina tanto assim. As férias foram uma subida para pegar ar enquanto tentava escapar a nado de uma tsunami. Muito necessário, pouco eficiente.


Nesse meio tempo de devaneios, a professora já tinha passado uns 5 slides explicando o curso. Reparou na estante de livros atrás dela. Ficou tentando reconhecer algum dos títulos, sem sorte. Engraçado como, nos pixels, apesar de sentir que invadia a privacidade de todo mundo ali de um jeito que nunca tinha feito nas aulas normais, na verdade não enxergava nada. Uma barreira essencialmente virtual, “à distância”, a separava de efetivamente interagir com a tal sala de aula. O contato se dava pelo teclado, pelos fios e seus algoritmos. Não eram suas palavras, mas dígitos. Mesmo a voz ou a imagem, nada de real havia nelas. Era um limbo estranho que só tangenciava o concreto.


“Volta às aulas”, ressonava na sua mente.


Que raios de “volta” era essa?


É claro que não tinha jeito, não tinha outra opção. E reconhecia sua sorte em ter a oportunidade de continuar ouvindo e aprendendo mesmo com o caos que reinava porta afora. Mas, realmente, não se sentia de volta às aulas. Não pensou numa roupa para o primeiro dia, não fez cronograma para conciliar a rotina acadêmica com outros compromissos, não arrumou a marmita para o almoço entre aulas. Acordou, sentou em frente à tela e entrou na aula, com a mesma facilidade que fechou a aba da chamada e entrou no Facebook ou foi procurar receitas na internet. Era tudo tão raso naquele primeiro dia. Tão rápido e intangível.


Voltou a se imaginar voando por São Paulo nos 40 minutos seguintes. Tentou captar algumas coisas, copiou frases da apresentação, mas sem muito sucesso. Assistiria à gravação depois. Bateu papo no chat, riu de qualquer coisa que apareceu atrás de uma colega que nem era muito próxima e ligou o microfone para um “obrigada, professora”. Com certeza tinha sido uma aula boa, ela só não conseguiu prestar atenção direito com toda essa reflexão. Ainda precisava superar o fato de que não vivia uma “volta”. De novo.


Mais um semestre começava..., só que ela já tinha se perdido na temporalidade desconexa da vida virtual há um tempo. Mais quatro meses daquilo seriam sentidos como segundos em alguns momentos, como uma eternidade em outros. Odiava isso, mas não tinha muito o que fazer.


Mantinha, contudo, esperanças. Sabia que, alguma hora, realmente voltaria às aulas, voltaria à sua vida e todas essas voltas seriam dadas fora daquele círculo infindável sem escapatória. Só precisava aguentar mais um pouquinho, né?


Autoria: Loreta De Rossi Guerra

Revisão: Bruna Ballestero e Cedric Antunes

Imagem de capa: Pascal Campion




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