“Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.”
Gosto de praia e de Clarice. Digo Clarice porque sinto que somos íntimas, amigas de infância, memórias de dor e de sorriso trocadas debaixo de cobertores numa daquelas barracas que a gente faz no meio da sala quando criança. Digo Clarice porque somos praticamente irmãs: compartilhamos aflições e dúvidas e encontrei em sua escrita um conforto e uma familiaridade que vejo sempre refletida nas minhas próprias manias literárias. Digo Clarice porque a imprimo em papel toda vez que me deixo devanear em palavra.
Participei de uma entrevista de emprego umas semanas atrás na qual respondi a pergunta “o que você gosta de ler?” (tudo porque tem REVISORA E REDATORA DA GAZETA VARGAS bem grande no meio do meu currículo, Deus me livre) com “gosto bastante de Clarice Lispector.” Um dos meus queridos entrevistadores, advogado de um escritório especializado em Direito Empresarial (não há muito espaço aqui para literatura criativa), me recomendou uma biografia dessa minha grande amiga, escrita por alguém de quem já me esqueci o nome. Agradeci a indicação e não demorei a me esquecer do nome da obra juntamente ao nome do autor e do advogado. Uma pena, parecia uma biografia muito interessante mesmo.
Li Clarice pela primeira vez no ensino fundamental, em uma aula de Português. Lembro que a professora explicou que era um conto psicológico, desses que focam nas lembranças e nos sentimentos dos personagens. Foi quando a conheci, e rapidamente me apaixonei — gosto de contos psicológicos e gostava de levantar a mão bem alto quando a professora perguntava quem queria ler o próximo parágrafo do texto para a turma.
Tenho mais familiaridade com seus contos, fragmentos de grandes histórias das quais ela quis mostrar só um pouquinho, mas o primeiro romance de Clarice que li foi A hora da estrela, sentada em uma cadeira de praia e com óculos de sol no rosto. Na realidade, A hora da estrela é o único livro que possuo da minha amiga, apesar de já ter passado muito tempo admirando aquele enorme com todos os contos dela que eu sempre vejo na Livraria Simples.
A hora da estrela foi o último romance publicado por Clarice, em 1977, mesmo ano de seu falecimento. Diferentemente do que se vê em muitas de suas produções, apresentam-se, aqui, personagens que, de antemão, parecem não se assemelhar de qualquer forma com sua criadora. Clarice sempre esteve de corpo e alma no cerne e nas bordas de suas histórias, eterna protagonista com seu vasto mundo interior, mas o relato da personagem principal e as divagações de seu narrador se afastam dessa presença e A hora de estrela se concentra em personalidades novas e sentimentos difusos. Sentimentos de contentamento e por vezes de ausência de autorreflexão (principalmente e talvez exclusivamente por parte de Macabéa) permeiam os parágrafos — sensações extremamente distintas do que conhecemos como Clarice Lispector.
Acredito que o que mais me conquistou dentro desse livro, com suas curtíssimas setenta e poucas páginas, foi seu narrador. A história teoricamente é sobre Macabéa, uma nordestina que vive no Rio de Janeiro e navega uma vida difícil e muitas vezes infeliz, apesar de tentar manter-se sempre satisfeita. O narrador, porém, cumpre um papel essencial dentro desse universo, sendo tão personagem quanto Macabéa, Olímpico ou Glória, apesar de não participar dos fatos em qualquer ocasião.
Rodrigo S.M., narrador (e autor, responsabilizando-se por criar a história e seus personagens em meio a suas preocupações e seus questionamentos), insiste que seu objetivo é simples e puramente contar sobre a vida da nordestina — a necessidade de trazer ao mundo esse relato o corrói, e ele precisa urgentemente colocá-lo no papel. Entretanto, durante a leitura, acompanhamos os medos, angústias e reflexões do narrador sobre sua própria vida, seus próprios desejos e seus próprios propósitos. Um autor fictício utiliza-se de um conto fictício para indagar-se sobre questões que parece não ter coragem de encarar ao escrever sobre si mesmo.
“Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido, e ao escrever me surpreendo um pouco pois descobri que tenho um destino.”
De maneira inovadora e única, minha amiga Clarice nos insere em um cenário no qual o narrador descobre a história e descobre-se enquanto a escreve. A hora da estrela é uma narrativa que envolve pobreza, solidão, autoconsciência e, por fim, inevitabilidade do próprio fim. A autora consegue, em um livreto de menos de cem páginas, escancarar verdades, receios e medos da natureza humana.
Gosto de praia e de Clarice porque gosto do som do mar e da forma como vejo-me nos questionamentos de um autor fictício de 46 anos atrás. Como é típico de minha quase irmã, os fluxos de consciência do narrador ficam num vai-e-vem interminável que pode não ser agradável a todos os leitores, mas que sempre me proporcionou muito interesse e até certa intimidade. A hora da estrela, assim como toda a produção artística de Clarice, demonstra proximidade e vulnerabilidade entre a artista e sua obra, entre seus sentimentos, seus pensamentos e suas inquietações e os artifícios utilizados para colocá-los no mundo, seja por trás de um “relato do relato”, como no livro em questão, ou por contos nos quais a autora é personagem e a personagem é autora e tudo isso ocorre ao mesmo tempo e a autora é Clarice, entre pseudônimos e representações — até mesmo Rodrigo S.M., de uma forma ou outra. Ou coisa assim.
Independentemente, o livro é curto o suficiente para valer a pena mesmo para aqueles que não gostam tanto dos devaneios de minha querida amiga, além de ser de fácil leitura comparado a outros da autora. Fica a recomendação (por escrito, para dificultar o esquecimento dos nomes do livro, da autora e de quem está recomendando).
“Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?”
Autoria: Anna Cecília Serrano
Revisão: André Rhinow, Luiza Parisi e Laura Freitas
Imagem de capa: DM Anapólis
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