No meu aniversário de 20 anos, ganhei da minha namorada à época, uma luminária turca, daquelas que pendem de uma armação de ferro trabalhada, quase no formato de um ponto de interrogação.
A luminária era feita de um mosaico de vidros coloridos, formando uma imagem abstrata, semelhante a uma mandala. Quando a luz amarelada de dentro se acendia, as cores eram arremessadas contra a parede fria do quarto, e nenhuma conversa naquele ambiente terminava sem que passasse por um comentário qualquer sobre os padrões distorcidos no rosto de quem se colocava diante da luz.
Meus amigos mais próximos compartilharam do meu apego à peça de vidro arredondada. Nas noites mais quentes do ano, lá estávamos nós, espalhados pelo chão, envolvidos pela flor que fazia com que as cores dançassem pelas paredes. Naquele tempo, era fácil olharmos uns aos outros nos olhos, por vezes um olhar era esquecido fixo, e a tensão escalava até que alguém soltasse a primeira gargalhada. Então, como num efeito dominó, estávamos todos rindo sem saber o porquê, até que esse se tornava o próprio motivo.
O tempo passou, e aos poucos a sua presença naquele canto do quarto deixou de chamar tanta atenção, o que nunca lhe tirou o mérito pela textura impressa na atmosfera nas quartas-feiras, que sempre traziam novos olhos para se encantar pela primeira vez com aquelas cores. Também não consigo imaginar como teriam sido todas as noites intermináveis, de lágrimas sufocantes, caso houvesse ali uma luz branca e fria, no lugar daquelas cores soníferas que me envolviam num carinho maternal.
Dormia muito fora de casa, mas nunca por duas noites seguidas, que era o tempo suportável até que a abstinência das cores se tornasse angustiante, uma sensação que só consigo comparar com a impaciência dos amantes de primeira viagem, para os quais as horas tomam proporções seculares. Quando retornava ao quarto escuro, era como se ela me esperasse com a mesma ansiedade que eu carregava por todo o caminho de volta.
Não houve testemunhas da minha ira, na madrugada em que a dor da rejeição me dilacerou e a existência me pareceu, mais do que nunca, uma canção detestável. Solucei ajoelhada aos pés da cama, mirando a cúpula de vidro solta da armação, enquanto recitava numa súplica todas as orações que prometiam conseguir uma resposta, um sinal. Era o meu direito, depois de toda a adoração, eu merecia ser correspondida.
Tentei ao máximo apagar aquela noite da minha memória, e mantive a relíquia turca numa mesinha de cabeceira ao lado da cama pelo tempo que morei na Bela Vista. Com a mudança, troquei gradualmente a mobília juvenil de estudante, uma parte ganhada de tias solteiras e outra comprada num bazar de móveis usados, por extensos planejados em preto e cinza. Numa terça-feira, passados anos imemoráveis, percebi que aquele mosaico assimétrico era o único objeto familiar que me restava à vista, apesar de um tanto anacrônico em meio aos imponentes armários foscos.
Envolvi-a em folhas de jornal, achei uma caixa vazia e a guardei, assim mesmo, sem mais nem menos, sem o falso sentimentalismo das pessoas dissimuladas. Não me comoveu sequer a consideração que lhe devia pelo tempo em que não tive ninguém além das suas cores nas noites desesperadas. Coloquei então a caixa em cima de um grande armário, como se faz com o que se quer perder de vista, numa tentativa mesquinha de reduzi-la ao objeto que nunca foi.
Às vezes amaldiçoo meus pais pela herança do ceticismo, por mais irônico que seja. Me foi arrancada muito cedo a curiosidade, substituída por um paralisador conformismo com a insignificância. Me pergunto como teria sido acreditar em algo além dos desejos mundanos e das sensações resultantes de processos químicos. Hoje é tarde para isso.
Na última noite de chuvas fortes de janeiro, senti um arrepio percorrer o meu corpo como uma anunciação, era como se finalmente algo se revelasse, logo quando pensei estar vencida pelo cansaço de perambular sob as luzes vulgares e desconhecidas de São Paulo. Entrei sem me preocupar com a poça que deixava atrás de mim, e com a ponta dos pés na beirada da cama, alcancei a caixa em cima do guarda-roupas.
Desfiz as dobras do papelão numa mistura de medo e antecipação. Me sentia de novo uma criança, muito antes de descartar as primeiras dúvidas sobre o mundo. Enquanto desenrolava o jornal, enxerguei os primeiros cacos de vidro verdes em meio às notícias velhas. O que me foi palco e platéia de uma vida outra, agora já sem forma inteiriça. Restavam apenas alguns pedaços pontiagudos entre os farelos coloridos, me vi sem desculpas para retorná-los ao armário.
Enrolei numa toalha o jornal cheio de cacos e peguei uma nova caixa, agora mais firme, na tentativa de consertar o passado. Coloquei os pedaços de volta sobre o guarda-roupas com a ajuda de uma cadeira na qual não quis me sentar. Chorei de joelhos como na noite em que pedi pela sua personificação, esfacelado naquela caixa estava o que para mim mais se aproximou do amor divino.
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