Realizei um pequeno experimento sociológico há poucos dias: entrei no perfil de uma pessoa conhecida que sigo no Instagram cujas opiniões políticas divergem radicalmente das minhas e analisei as páginas que ela seguia - em especial, os veículos de informação e mídias jornalísticas. Entrei na página de um dos jornais independentes que não conhecia, explorei o feed para ler algumas das manchetes e constatei que não era à toa que éramos incapazes de chegar a algum lugar quando discutimos sobre algo. Era como se vivêssemos duas realidades paralelas, onde os mesmos fatos passavam por filtros completamente diferentes.
O fenômeno das bolhas de informação e dos fatos alternativos não é nenhuma novidade. O tema está no centro do debate político desde a eleição de Donald Trump em 2016, quando o presidente recém-eleito mentiu sobre o número de pessoas que estavam presentes em seu discurso de posse. Quando foram questionados pela mídia sobre o falso número de presentes, a equipe de Trump respondeu que apenas “estavam fornecendo fatos alternativos”. Para a jornalista Patrícia Campos de Mello, Trump acabara de iniciar “um governo da pós-verdade, que valorizava versões em detrimento de fatos”. Esse cenário veio acompanhado do imenso desprezo pelas mídias tradicionais e o incentivo constante a fontes de informação alternativas e “diretas”, como os perfis dos próprios políticos nas redes sociais. As notícias falsas por si só não são um problema novo. Sempre se mentiu no campo da política. O problema se agrava quando campanhas eleitorais aprendem combinar os fatos alternativos ao chamado microtargeting, ou micro-direcionamento. Quando essa técnica de disseminação de informação é colocada em prática, ninguém mais têm a capacidade de discernir fatos e ficções, ou pior ainda, um bom número de pessoas simplesmente não se importa mais em fazer tal distinção.
Nos últimos anos, campanhas eleitorais como as de Trump, Bolsonaro ou do partido Bharatiya Janata (BJP), na Índia, incorporaram as mídias sociais e o uso de Big Data às suas campanhas com maestria. Segundo Steve Bannon, estrategista-chefe da Casa Branca no governo Trump e ex-membro da diretoria da Cambridge Analytica, “as redes sociais eliminaram o intermediário, ou gatekeeper, da mídia tradicional, e permitiram a confraternização do eleitorado que se sentia desprezado pelas elites intelectuais”. O estrategista afirmou que, sem o “Facebook, Twitter, e outras mídias sociais, teria sido cem vezes mais difícil para o populismo acender, porque não conseguiríamos ultrapassar a barreira do aparato da mídia tradicional. Trump conseguiu fazer isso, e Bolsonaro também”.
A ideia do micro-direcionamento é simples e, depois do escândalo da Cambridge Analytica, bastante conhecida: segmentam-se milhões de usuários das redes sociais, sem o conhecimento desses, em grupos baseados em seu perfil. A partir desse desenho inicial, somado a outras informações agregadas, é possível criar campanhas políticas que exploravam os medos e ansiedades de segmentos específicos da população. Com os dark ads, só determinados grupos recebiam certas mensagens em feed no Facebook, enquanto outros recebiam mensagens completamente diferentes. Essa tática evoluiu para fora do Facebook e se difundiu profundamente no WhatsApp.
O micro-direcionamento foi usada com muito sucesso pelo BJP nas eleições indianas de 2019. Em seu livro “A Máquina do Ódio”, Patrícia Campos de Mello narra uma conversa que teve com Shivam Shankar Singh, ex-membro da equipe de estratégia digital e análise de dados do partido. Ele explicou que, com essa técnica, “o BJP pôde se mostrar aos eleitores dos estados mais religiosos do cinturão hindu como forte defensor das vacas, enquanto atenuou essa bandeira para a população nordeste da Índia, onde há menos preocupação com o tema”. Em agosto de 2018, o diretor da divisão de tecnologia e informação do partido já previa que as eleições seriam disputadas pelos celulares. Ao serem bombardeados por essas mensagens direcionadas, os eleitores as repassavam a amigos e familiares no WhatsApp e os temas passavam a fazer parte das conversas diárias, moldando a narrativa.
Na eleição brasileira de 2018, a situação não foi muito diferente. Segundo uma pesquisa realizada pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), a estratégia de comunicação de Bolsonaro se baseou em segmentar informações para os diferentes perfis de potenciais eleitores. Dessa forma, Bolsonaro foi capaz de assumir “diferentes formas, a partir das aspirações de seus apoiadores”. A pesquisa foi capaz de agrupar 16 tipos de apoiadores e potenciais eleitores do então candidato, de acordo com marcadores de classe social, raça/etnia, identidade de gênero, religião, formas de engajamento e crenças. Os grupos eram tão diferentes entre si que, para quem olhasse de fora, pareceriam ser eleitores de dezesseis Bolsonaros diferentes.
As mídias tradicionais e algumas plataformas digitais vêm desenvolvendo novas formas de combater fenômenos como os fatos alternativos e as bolhas de informação. Uma delas, muito presente durante os debates eleitorais de 2020 nos Estados Unidos, é o chamado fact checking (verificação de fatos). Depois dos debates, emissoras como a CNN e ou jornais como o The New York Times repassavam afirmações feitas pelos candidatos e apuravam o que era verídico, o que era enganoso ou exagerado e o que era falso. Da mesma forma, plataformas como o Twitter e o Facebook passaram a sinalizar algumas postagens como falsas ou enganosas e, em alguns casos, chegaram a deletar posts que poderiam apresentar algum tipo de risco, como foi o caso de postagens que traziam informações falsas sobre o COVID-19.
Entretanto, políticos como Trump e Bolsonaro incentivam fortemente seus seguidores a desconfiarem das mídias tradicionais e, portanto, uma verificação de fatos ou um aviso de Fake News só serão levados em consideração por quem já confia nessas plataformas. Para os que desconfiam, apresentar dados e fatos verificados é o mesmo que falar com as paredes.
Os eleitores de Bolsonaro não são os únicos presos dentro de bolhas de informação. O meio das redes sociais incentiva esse tipo de segregação naturalmente, de forma que parecemos compartilhar uma mesma realidade apenas com outros membros do nosso nicho social. O que é dito por alguém de outro segmento é geralmente descartado como fruto de manipulação ideológica ou ignorância. Isso impossibilita um diálogo mais amplo, pois dialogamos apenas com quem já está pré-disposto a concordar conosco.
Há, porém, pessoas que vêem esse processo de maneira mais otimista. De acordo com o escritor e jornalista Giuliano da Empoli, “as redes sociais e o uso do Big Data funcionam melhor com mensagens e políticos de visões extremas” O próprio modo de funcionamento das redes sociais não favorece ideias (ou políticos) moderados. Isso significa que o ambiente digital no qual se faz política atualmente é, por definição, uma incubadora de Bolsonaros e Trumps e a receita do fracasso para políticos moderados, conciliadores e não muito inspiradores - como Biden. No entanto, o democrata de 77 anos se tornou o candidato a Presidente mais votado da história dos Estados Unidos, colocando em xeque o modelo Trump. Isso se deve, em grande parte, a capacidade que o partido democrata teve de aglutinar, em uma frente única de resistência, os diversos setores da população que se opunham ao presidente – muitos dos quais se opunham também, de maneira menos enfática, a Joe Biden.
Isso não significa, de forma alguma, que o problema esteja resolvido. Em seu discurso na noite do dia 5, Trump alegou a existência de fraude eleitoral em diversos estados nos quais estava perdendo, sem apresentar nenhuma prova, e pediu o fim imediato da contagem dos votos. O discurso é grave, pois ataca diretamente as instituições democráticas e as normas constitucionais sobre as quais elas se sustentam. O Presidente vinha fazendo acusações como essas desde o segundo dia da apuração, e essas alegações reverberaram entre seus seguidores nas redes sociais e nas ruas. Jornais e emissoras de TV ofereceram explicações sobre o processo eleitoral e sobre a contagem de votos, mas para muitos, esses avisos caíram em ouvidos surdos.
Nas eleições municipais em São Paulo, também não faltam ataques e acusações falsas feitas pelas redes sociais, assim como correntes de notícias falsas repassadas pelo WhatsApp diariamente. No entanto, é possível estarmos, aos poucos, aprendendo alguma coisa.
Como todo avanço tecnológico, as redes sociais não são intrinsecamente boas ou más, mas ferramentas que podem ser utilizadas de diversas maneiras. Parte do desafio das democracias contemporâneas é aprender a sobreviver num cenário em que a política tende a ser feita nos extremos e em que fatos não serão necessariamente levados em consideração. Para pessoas que vivem nessas democracias, o desafio será a aproximação daquilo que parecem ser realidades paralelas criadas pelas bolhas de informação. Será preciso reaprender a dialogar com quem parece incapaz de ouvir.
Fontes:
MELLO, Patricia Campos de. A máquina do ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2020 cap. 3.
QUEM SÃO E NO QUE ACREDITAM OS ELEITORES DE JAIR BOLSONARO, Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo; Publicado em: outubro de 2018. Disponível em: <https://www.fespsp.org.br/upload/usersfiles/2018/Relatório%20para%20Site%20FESPSP.pdf> Acessado em: 02/11/2020
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