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FRONTEIRAS

No texto de hoje, Carlos Roberto, redator e aluno de Direito da Fundação Getúlio Vargas (EDESP-FGV) oferece um panorama do bairro Bela Vista, com suas destoantes realidades, além de apresentar o compromisso do Centro de Assistência Jurídica Saracura, uma associação que presta serviços jurídicos gratuitos à população de baixa renda. Venha saber mais sobre a Bela Vista e sobre esse projeto incrível!

Rua Rocha, número 233. Bela Vista, São Paulo. Esse é o endereço da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, uma típica faculdade de elite. Com mensalidades altíssimas e a maior parte do público frequentador com classe e raça muito bem definidas, o prédio da EDESP possui uma localização emblemática: ele encontra-se no limite entre dois mundos distantes.


Ao sair desse edifício e subir em direção à Paulista, você estará na Bela Vista. Bairro tradicionalmente conhecido por seu alto custo e estilo de vida elista e extravagante, este é um reduto homogêneo da elite econômica paulistana - o que nos leva à consequência lógica de inferir classe e cor daqueles que aí vivem (basta olhar a própria composição do alunato geveniano).


O mais interessante nessa localização é justamente que, tomando o caminho inverso, encontramos uma realidade completamente diferente. Fazendo esse caminho, estaremos no Bixiga, uma das regiões mais antigas e conhecidas da capital paulistana. Aqui, podemos abandonar qualquer ideia de homogeneidade citada antes: encontramos um caldo cultural complexo, herança das influências sociohistóricas que agiram na formação da região¹.


Ao mesmo tempo em que presenciamos rodas de samba, centros de umbanda e candomblé e a própria Vai-Vai, importante escola de samba paulistana, encontramos também traços da cultura italiana, com cantinas e festivais de massas tradicionais, como a Festa de Nossa Senhora Achiropita (esta que, por sua vez, possui sua própria paróquia no bairro). Além disso, também podemos encontrar influências mais recentes, como o gastrobar Al Janiah, especializado em culinária mediterrânea e que abriga em seu quadro de funcionários refugiados da Palestina, da Síria e imigrantes de Cuba e da Argélia².


Em síntese, confrontamos duas realidades opostas: de uma lado, um ambiente com marcas de uma segregação racial e de classe e, por outro, um marcado por traços profundamente multiétnicos. Mas, além das diferenças culturais e de formação, existe uma outra que é de tanta importância quanto: a diferença na concentração de riqueza (financeiramente falando). Essa característica, por mais que o Bixiga possua uma comunidade popular extremamente forte e ativa, protagonista em diversas lutas importantes³, ainda representa a fonte de vários problemas sociais (andando pela praça XIV Bis em qualquer momento do dia, é possível que se tenha uma leve dimensão do que estamos falando aqui).


Um deles, no entanto, encontra-se intimamente relacionado com a EDESP: a dificuldade em conseguir um pleno acesso à justiça. Como em diversas outras regiões (de São Paulo ou mesmo do Brasil), são justamente as comunidades com menos recursos financeiros que possuem a maior demanda por informação e auxílio jurídico, dos mais variados tipos. E mesmo estando já há 18 anos na região, nunca se viu alguma ação de longo prazo que de fato fosse efetiva para auxiliar a região que nos acolhe enquanto estudantes da GV.


No entanto, algo mudou: a EDESP, nos últimos anos, acrescentou em sua grade curricular mais matérias relacionadas a direitos humanos e ao acesso à justiça, além de aumentar o tempo fora de sala de aula e, também, de ampliar o número de ingressantes anuais por meio do vestibular. Em conjunto com uma recorrente demanda do alunato em outros anos, surgiu a possibilidade de, pela primeira vez, organizar um projeto que possibilitasse que a comunidade geveniana pudesse cumprir com sua responsabilidade social para com a região que frequentamos diariamente: o Centro de Assistência Jurídica Saracura.


Em parceria com a gestão Voz do Centro Acadêmico, o CAJU surge inspirado em outras iniciativas semelhantes, como uma associação independente dos alunos da EDESP, com o objetivo de prestar assistência jurídica gratuita às pessoas que não tenham condições de arcar com os custos do advogado e do processo, em especial na região da Bela Vista/Bixiga. Nesse primeiro momento de existência, o CAJU atuará por meio de demandas e aconselhamento jurídico, adaptados a meios comunicacionais viáveis diante da situação do COVID-19, para prestar auxílio principalmente informacional e aproximar-se de forma não invasiva e respeitosa com a comunidade. A intenção é justamente conhecer as pessoas e fazer com que elas nos conheçam, enquanto o projeto se estrutura para trabalhar da forma mais eficiente possível.


O CAJU, portanto, é uma ferramenta pela qual todas as pessoas de todos os cursos da GV podem atuar de forma a compartilhar os privilégios que possuímos e tentar diminuir a distância existente entre essas duas comunidades, causando uma mudança positiva na realidade social na região. Representa, também, uma iniciativa inédita de aproximação entre a Fundação e o Bixiga: como disse a Dra. Anna Murari, presidente da Vai-Vai, em todos esses anos de existência da faculdade de direito, ninguém da GV nunca estabeleceu um diálogo com a comunidade. Além disso, é uma oportunidade incrível de adquirir experiência e conhecimentos práticos (sejam profissionais ou mesmo pessoais).


Para os alunos que se interessaram, o próximo processo seletivo ocorrerá no fim desse semestre. Já se você é ex-aluno, pesquisador ou professor da GV, basta entrar com contato pelo e-mail cajudireitogv@gmail.com. Quanto mais pessoas nos ajudarem, maior será a intensidade e a qualidade do impacto social que poderemos causar.




¹O Bixiga, historicamente, foi formado pela confluência e estabelecimento de comunidades afro descendentes, imigrantes italianos e espanhóis e, em um movimento mais recente, passou a receber também grande influência de migrantes nordestinos e comunidades sírias, haitianas e de países africanos lusófonos. Para entender melhor, veja:

PASSARELLI, G. Guia do Bixiga: história, cultura e muita comida. Chicken Or Pasta. Disponível em: .<https://chickenorpasta.com.br/2018/guia-dicas-bixiga-sao-paulo>. Acesso em: 02/04/2020.

PORTAL DO BIXIGA. História: Desde 1878 o bairro mais tradicional da cidade. Disponível em: <http://www.portaldobixiga.com.br/historia/>. Acesso em: 02/04/2020.

NETTO, C. G. Bexiga, história viva das origens da cidade de São Paulo. Jornal da Unicamp. Disponível em:

CAPUANO, F. Documentário Vai Vai: 80 anos na rua.


²AL JANIAH. Sobre Nós. Disponível em: <https://www.aljaniah.com.br/sobre1>. Acesso em: 04/04/2020.


³Como, por exemplo, a luta contra a construção de três torres residenciais pelo Grupo Sílvio Santos próximo ao tradicional Teatro Oficina, na qual a comunidade local tem conseguido resistir há mais de 40 anos. Sobre, ver:

NUNES, L. Embate entre Zé Celso e Grupo Silvio Santos pode ter fim com projeto votado na Câmara. O Estado de SP. Disponível em: <https://cultura.estadao.com.br/noticias/teatro-e-danca,apos-40-anos-projeto-de-implantacao-do-parque-do-bixiga-e-votado-na-camara,70003196590>. Acesso em: 04/04/2020.


Onde está o Bixiga era antes Vale do Rio Saracura, hoje encoberto pelo asfalto. O nome vem da ave Saracura-do-Brejo, típica da região. Nas escarpas mais íngremes do vale, existiu também o quilombo da Saracura, símbolo da resistência negra. Só depois veio a ocupação italiana do bairro. Como o CAJU prestará um serviço à região integrado com os articuladores comunitários, homenageia em seu nome a Saracura, que inclusive é o emblema da Escola de Samba Vai-Vai, nossa principal parceira de atendimento.


Como por exemplo o Departamento Jurídico da FDUSP, o Escritório Modelo da PUC, a Assistência Judiciária João Mendes do Mackenzie, a Divisão de Assistência Judiciária da UFMG, o Núcleo de Prática Jurídica da UFRJ e o Núcleo de Prática Jurídica da UNB.


A intenção é, justamente, que tenhamos uma equipe multidisciplinar atuando no CAJU, tanto para melhorar a qualidade do atendimento oferecido quanto para possibilitar que o maior número de pessoas interessadas possa atuar.



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