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HOJE EU VOU.



Ao primeiro toque do meu alarme, abro os olhos.


Como todos os dias, acordo disposto, e me levantarei daqui alguns poucos minutos. Nem sempre foi assim, mas é que adquiri, há alguns meses (dois ou três), o costume de correr bem cedinho.


Devo confessar que esse é o melhor hábito que já adotei em todas as minhas duas décadas de existência. Um dos motivos disso é o lugar em que corro: uma rua larga na encosta de um morrinho nos arredores da minha cidade que, pelo que sei, um dia pertencerá a um complexo residencial de luxo. Mesmo que perfilada por algumas casas modernas de arquitetura insossa, ela ainda oferece uma bela vista da cidade, do nascer do sol e dos campos que circundam o município, fato que combinado a intensidade e o cansaço do exercício acaba criando uma sensação terapêutica, quase mística, ao fim da maratona. A outra razão é o horário: além do nascer do sol, correr nas primeiras horas da manhã garante a ausência de transeuntes e pedreiros trabalhando na construção de mais casas insossas, ademais de uma brisa delicada que torna o clima fresco e agradável.


Mas, se tenho que ser totalmente sincero com você - e imagino que tenha - essas duas não são minhas reais motivações. Quer dizer, não menti – não sou mentiroso –, elas são boas razões; só não são as minhas principais. Na verdade, estão mais para as respostas diplomáticas – junto com a gratificação pós-exercício e o desejo de correr em uma maratona – que distribuo quando me perguntam - e sempre perguntam - qual seria o porquê de acordar tão cedo para correr. Não sei se é paranoia minha, porém penso que minha motivação real é um tanto incomum e renderia olhares surpresos e comentários inconvenientes. No entanto, já disse que serei franco, então me acompanhe enquanto me arrumo para minha corrida. Não se preocupe, não costumo demorar muito.


Com os poucos minutos passados, empurro minhas cobertas para longe e me levanto.


Tudo começou três meses atrás (lembrei, eram três meses), quando minha mãe me chamou para uma caminhada nessa rua, suponho que para conhecer aquele projeto de condomínio – que provavelmente seria fechado a sete chaves e teria muros altos coroados por arame farpado após a construção de um número suficiente de casas insossas –, convite que aceitei por tédio. Foi naquele fim de tarde calmo, agitado apenas pelo vento que insistia em bagunçar nossos cabelos, que encontrei minha motivação para voltar todos os dias, religiosamente, àquela rua. Enquanto andava e jogava uma tímida conversa fora, avistei-a, em toda sua majestosidade: em um nível abaixo da rua, uma expansiva e frondosa árvore balançava levemente sob a ventania, no centro de bem-dispostos círculos de plantas de soja, que também dançavam com o sopro do vento.


Abro a janela, e, rapidamente, me dispo do meu pijama.


Em questão de um mero olhar, aquela cena me cativou, prendeu e apaixonou. Fui imediatamente hipnotizado pela beleza da Árvore, sua solidão (afinal, era a única árvore que povoava aqueles campos), pelos asseados aros verdes em seu entorno, e pelo modo como toda a composição se movia serenamente ao sabor do zéfiro vespertino. Mesmo tentando, não logrei sucesso em desviar minha atenção daquele cenário paradoxalmente pacato e arrebatador na mesma proporção, e a voz de minha mãe esmaeceu até se confundir com o assobio da brisa. Mas só contemplar aquela cena não era, e continua não sendo, o suficiente.


Visto uma camiseta e bermuda leves, separadas na noite anterior.


Desde então, não consegui apartar da minha mente a ideia de descer aquele morro, atravessar a plantação, e chegar até a Árvore. Só de imaginar estar de frente para Ela, completamente imerso na melodia intrusiva produzida pelo farfalhar de suas folhas, meu coração acelera. Comecei a cultivar esse momento, que sabia que viria, como uma emancipação. Disparar encosta abaixo, num rompante imperturbável por pensamentos contumazes poluindo minha mente ou preocupações impertinentes sobre a cidade, as casas insossas e o resto do mundo, tornou-se sinônimo de liberdade para mim, além de meu mais essencial e básico desejo. Por isso, voltei para lá no dia seguinte, pronto para me atirar em direção à Árvore. Mas, é claro, não foi tão simples.


Amarro meus tênis, que comprei exatamente para esse meu hábito.


Não me entenda mal, a Árvore ainda estava lá, e me enfeitiçou como na véspera, mas atingir minha emancipação se provou uma tarefa mais árdua do que pensara. Observá-la em toda sua suntuosidade, a luz do sol se derramando por suas folhas como mel, fez-me constatar a imensidão de meu desejo – que se tornou uma necessidade de lá para cá –, o que me assolou e fascinou ainda mais. Nesse dia, voltei para casa assustado e ainda mais aficionado pela minha recentemente descoberta necessidade. E, se já não está claro, repeti a dose dia após dia.


Pego minhas chaves, que estão no parapeito da minha janela (como sempre).


Acho que agora você já pôde perceber que não tenho sido tão genuíno quanto disse que seria, peço perdão. Mas a verdade é que menti: não corro todas as manhãs. Não corro nenhuma das manhãs. Apenas vou até aquela rua, crente de que será o dia em que me libertarei, que ouvirei os murmúrios das folhas e tocarei a Árvore. Cada vez sinto que chego mais e mais perto, que só preciso de mais um dia, mais uma manhã. Aí está, minha verdadeira motivação, desejo, necessidade e obsessão.


Passo pelo umbral da minha porta, e sou recebido pela brisa suave do amanhecer.


Obrigado por me acompanhar, mas agora tenho que ir. Sinto que é hoje.


Hoje eu vou.



Autoria: Pedro Augusto Castellani Rolim

Revisão: André Rhinow e João Vítor Vedrano

Imagem de Capa: Alexandre Calame (1810-1864) Landscape with Oak Trees 1

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