LIBERDADE DE EXPRESSÃO EM DEBATE: ENTREVISTA COM CLARISSA GROSS
- Erick Martins Rosario
- há 1 dia
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A liberdade de expressão é uma das garantias fundamentais para a existência de um Estado Democrático de Direito. Seus limites e proteções, no entanto, têm sido cada vez mais disputados por diferentes grupos políticos. Para melhor compreender essas divergências, a Gazeta Vargas convida Clarissa Gross, professora da Escola de Direito de São Paulo (EDESP) da Fundação Getulio Vargas (FGV), coordenadora da Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia (Pled), além de fundadora e diretora do Instituto Tornavoz.
A divergência de ideias é comum em ambientes universitários marcados pela liberdade acadêmica. Na sua experiência como docente, como essas divergências têm se manifestado em sala de aula? A liberdade acadêmica se diferencia da liberdade de expressão de alguma forma?
A minha experiência como docente me dá a oportunidade de vivenciar momentos muito ricos em sala de aula. Ricos porque, quando estimulados e em um ambiente convidativo, as alunas e alunos revelam disposição para reflexões livres e se permitem considerar diversos caminhos de argumentação. É uma troca muito importante para mim. Eu aprendo muito com as alunas e alunos. Tenho também muita satisfação de ver que elas e eles aguçam a própria curiosidade e gostam de se confrontar com ideias novas, ideias com as quais ainda não tinham se deparado e que desafiam as convicções que em um primeiro momento elas e eles possuíam. A nossa escola tem se esforçado por tornar o ambiente acadêmico cada vez mais diverso, apoiando o ingresso de alunas e alunos de contextos diferentes e com experiências prévias distintas. Esse esforço é muito importante e ainda temos muito o que avançar nesse sentido. Quanto mais diversas as perspectivas em sala, maiores as possibilidades de cada um de construir posicionamentos mais sofisticados, embasados e de refinar a própria capacidade para o diálogo e para a construção democrática de soluções para problemas sociais complexos. O ganho não é apenas cognitivo, mas também em termos de atitude. Precisamos aprender a lidar emocionalmente com a diferença. Quanto mais pudermos conviver com o diferente, menos nos sentimos ameaçados pela diferença e mais conseguimos nos abrir para ouvir, ponderar e de fato interagir com as ideias e propostas que os outros trazem. Isso faz parte, a meu ver, da formação democrática.
Por outro lado, penso que ainda podemos caminhar mais na construção de um compromisso compartilhado em torno da liberdade de pensamento. Sinto que às vezes muitas alunas e alunos se sentem acuados e receosos de compartilhar suas convicções sinceras ou suas dúvidas acerca de problemas jurídicos e sociais controvertidos. Vivemos em uma sociedade pouco tolerante, em diversos sentidos. E a juventude, penso, tem tido muito medo de errar, de cogitar em voz alta. Há pouco espaço e pouco tempo para amadurecer posições, para mudar de opinião. Esse receio, a meu ver, importa em uma perda para a aluna, o aluno e a comunidade acadêmica em geral. O propósito da sala de aula é o de dar suporte pedagógico para amparar cada uma e cada um no desenvolvimento das próprias ideias. Se alunas e alunos não puderem expressar com sinceridade aquilo que pensam, o desenvolvimento da formação e da troca não acontece.
Outro ponto importante é que, em um ambiente de sala de aula, onde o foco é a formação e o aprendizado mútuos, existem regras de civilidade que devem ser observadas. Apesar de compartilhar semelhanças de propósito, penso que há diferenças entre liberdade acadêmica e liberdade de expressão. A meu ver, o direito de liberdade de expressão nos ampara em relação à nossa participação no debate público porque é uma das manifestações de nossos direitos políticos. No âmbito do debate público, a minha posição é de que não temos obrigação de honrar com parâmetros de civilidade. Podemos nos expressar de forma raivosa, vulgar e ofensiva. O mesmo não é o caso no ambiente de sala de aula e de debate acadêmico, porque o debate nesses ambientes está a serviço não do exercício de direitos políticos, mas da formação de cada um e do desenvolvimento da ciência em sentido amplo. No ambiente acadêmico, devemos respeitar a presença de cada um dos nossos pares. Todos aqueles que participam do ambiente acadêmico têm direito, a meu ver, a um ambiente livre de interações em tom agressivo ou que tenha como finalidade negar o direito de certas pessoas ou grupos de frequentar e ocupar o ambiente acadêmico. Ademais, os critérios de qualidade argumentativa nos quais a ciência se fundamenta não correspondem necessariamente à opinião da maioria. Isso também implica na legitimidade de oferecer, no ambiente acadêmico, mais espaço para argumentos, pontos de vista e teorias que correspondem aos critérios de qualidade científicos, ainda que isso possa desagradar parte importante do público da própria academia ou da sociedade em geral.
Os limites da liberdade de expressão têm sido alvo de intensos debates nos últimos anos, especialmente com os avanços tecnológicos conquistados com as redes sociais. Questões envolvendo desinformação, discurso de ódio e movimentos antidemocráticos têm figurado entre os principais pontos de disputa. Como você avalia essas discussões? Nos moldes do Estado Democrático de Direito brasileiro, qual a relevância desse direito para a população em geral?
Eu acredito que essas discussões são importantes e inescapáveis, tendo em vista as grandes tensões pelas quais as democracias têm passado, não apenas pelos avanços tecnológicos, mas também, a meu ver, pela polarização política alimentada tanto por avanços quanto por fracassos das democracias. Os avanços tecnológicos permitiram muito mais pessoas se manifestarem politicamente e buscarem construir redes para organização da ação política. Isso revelou que muitos setores e grupos da sociedade não compreendem os compromissos das democracias constitucionais e se ressentem com os avanços igualitários. Esses grupos passaram a vociferar seu descontentamento e a se organizar politicamente. Isso não apenas assusta como aumenta os riscos de desmobilização do compromisso democrático dentro das instituições. Daí, as diversas reivindicações para que as pessoas sejam proibidas de expressar ideias contrárias aos valores que estruturam a democracia constitucional.
Eu acredito que as democracias constitucionais podem legitimamente proibir discursos que criam riscos de deflagrar ações prováveis e iminentes de violação de direitos ou que impeçam o funcionamento das instituições. Mas isso, a meu ver, não é o equivalente a proibir qualquer discurso que defenda ideias contrárias à democracia ou às instituições democráticas, ideias anticientíficas ou ideias preconceituosas. Por exemplo, não me parece legítimo proibir a publicação do Manifesto Comunista por defender a revolução do proletariado. Tampouco me parece legítimo proibir que pessoas comuns se manifestem publicamente contra a segurança de uma determinada vacina, ainda que o consenso científico seja o de que a vacina é segura. Isso porque, ainda que o primeiro discurso possa ser considerado contrário à manutenção das instituições democráticas e o segundo seja considerado anticientífico, não associamos, nem a um, nem a outro, um risco de deflagração de ações prováveis e iminentes capazes de impedir o funcionamento das instituições ou de impedir a condução de uma política pública de vacinação. Ao mesmo tempo, entendemos que é importante que as pessoas possam tanto expressar as suas convicções quanto ter livre acesso às convicções das demais pessoas, mesmo quando essas convicções possam ser consideradas antidemocráticas, anticientíficas ou falsas por alguma outra razão. Não queremos que o Estado controle, a princípio, o que podemos expressar e o que podemos ouvir, ver ou ler porque não queremos que o Estado se substitua ao nosso juízo independente acerca do que é e do que não é uma ideia ou uma convicção de qualidade.
O desafio, portanto, é o de elaborar conceitos e regras para colocar limites à liberdade de expressão que capturem essa distinção entre discursos que criam e discursos que não criam riscos significativos, sob pena de silenciarmos de forma ilegítima a liberdade de expressão das pessoas. Essa liberdade não protege apenas a expressão de conteúdo de qualidade. Ela protege a prerrogativa de cada um de nós de fazer valer a nossa condição de cidadão no debate público. Possui o mesmo status do direito de votar. O nosso direito ao voto não é condicionado ao exercício do voto com qualidade. Penso que a mesma coisa se passa com a liberdade de expressão.
Nos últimos meses, o governo Trump sinalizou a possibilidade de retirar a licença de canais de televisão e emissoras de rádio que o criticassem. Ainda assim, o presidente americano e seus apoiadores se apresentam como defensores da liberdade de expressão. Caso essas ameaças se concretizem, qual seria o risco real para esse direito fundamental? E, na sua visão, essas movimentações políticas deveriam acender um alerta também para a realidade brasileira?
A meu ver, Trump e seus apoiadores têm demonstrado que não compreendem e não respeitam a tradição da liberdade de expressão do seu próprio país. Os Estados Unidos são considerados como um dos países que garantem um dos maiores escopos de proteção das prerrogativas de expressão dentre as democracias liberais. Isso porque, nos Estados Unidos, o Estado não pode proibir a circulação de um conteúdo com base apenas no juízo sobre a qualidade desse conteúdo. Assim, o conteúdo não pode ser proibido apenas por ser imoral, antidemocrático ou falso. Para proibir um discurso, é preciso que se associe a ele, de forma concreta, um dano ou um risco de dano aos direitos de terceiros ou às instituições.
Um dos tipos de discurso que merece a mais alta proteção pela liberdade de expressão nos Estados Unidos é aquele que trata de questões de relevância pública, em especial, problemas políticos. O discurso de conteúdo político, além de expressar as convicções do falante, tem um valor para a coletividade em geral porque é um mecanismo de checagem do poder. Garantir a liberdade de expressão de discursos sobre as autoridades públicas e seu trabalho é uma forma de promover que o povo controle o Estado, e não o contrário.
As ameaças do Trump são ameaças à liberdade de expressão e, caso se concretizem, constituirão um golpe muito duro para a liberdade de expressão nos Estados Unidos. Alguém poderia rebater no sentido de que retirar licenças de rádios e de televisão não é a mesma coisa que proibir um discurso ou punir alguém por falar alguma coisa. Ademais, seria possível dizer que empresas, sejam quais forem, não possuem direitos de liberdade de expressão assim como os indivíduos. Mas a liberdade de expressão não apenas protege contra a proibição e a punição de discursos, como protege contra a exclusão na distribuição de recursos e oportunidades pelo Estado. As licenças para funcionamento de rádios e televisão são oportunidades distribuídas pelo Estado. O Estado não pode instrumentalizar a distribuição dessas oportunidades com o objetivo de se blindar de críticas, sob pena de violação da liberdade de expressão.
Quanto à distinção entre empresas e indivíduos, ela é de fato relevante: empresas não possuem liberdade de expressão como indivíduos. Mas há um certo tipo de empresa que é especialmente protegida pela liberdade de expressão: os veículos de imprensa. A liberdade de imprensa é um direito que assiste aos profissionais e veículos de imprensa e que é semelhante à liberdade de expressão em geral dos indivíduos. A imprensa recebe especial proteção em relação a outras empresas porque a sua função social é justamente fomentar o debate público, provendo o público de informações e perspectivas diversas, livre de controle estatal.
Essas movimentações políticas nos Estados Unidos devem acender alertas para a realidade brasileira porque grupos políticos no Brasil de inclinações políticas e ideológicas semelhantes àquelas de Trump já sinalizaram a mesma falta de compromisso com a liberdade de expressão. No Brasil, temos o agravante de que não temos uma forte tradição de proteção da liberdade de expressão. Nossas categorias de proteção e de limitação dessa liberdade não são claras e isso se reflete nas decisões erráticas do judiciário a respeito de conflitos relacionados à liberdade de expressão. Assim, investidas de grupos políticos poderosos contra a liberdade de expressão no Brasil podem se revelar ainda mais graves porque não temos uma jurisprudência e uma cultura jurídica fortes de proteção dessa liberdade à maneira daquelas que encontramos nos Estados Unidos.
Quase quatro décadas após a promulgação da Constituição Federal, que sucedeu a um regime militar marcado pela supressão de direitos civis, como a liberdade de expressão, quais avanços você destacaria nesse percurso democrático? E de que maneira o entendimento do Poder Judiciário se transformou desde então?
Tivemos vários avanços na proteção da liberdade de expressão no Brasil desde a promulgação da Constituição Federal. A liberdade de expressão e de imprensa foram expressamente afirmadas em diversos dispositivos da Constituição Federal. Não obstante, diversas leis anteriores à Constituição continuaram vigentes após a redemocratização. O judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, teve um papel importante de compatibilização do ordenamento jurídico em geral com a Constituição.
Um dos primeiros avanços teve relação com a consolidação do entendimento de que a liberdade de expressão protege contra a censura prévia exercida tanto pelo Estado quanto por entidades privadas e indivíduos. Isso significa que nem o Estado, nem qualquer outra pessoa física ou jurídica, pode impedir que um cidadão ou a imprensa expresse ou publique um conteúdo, por qualquer meio, em função de um juízo de que o conteúdo prejudica certos interesses. O Estado exercia controle prévio de conteúdo durante a ditadura com o objetivo de impedir a circulação de conteúdo de crítica ao regime político ou que, na visão do Estado ditatorial, questionasse aspectos da cultura e da moralidade endossados pelo Estado. Isso significava, por exemplo, que para que o conteúdo de um jornal ou uma peça de teatro pudesse ver a luz do dia, precisava primeiro passar pelo controle do Estado. Se o Estado autorizasse, o conteúdo podia ser publicado no jornal e a peça de teatro podia ser apresentada. A Lei 5.250 de 1967, conhecida como Lei de Imprensa, havia sobrevivido à ditadura e continha dispositivos que preservavam esse poder de censura prévia por parte do Estado. O STF declarou essa lei inconstitucional em 2009, por ser incompatível com a liberdade de expressão protegida constitucionalmente. Já em 2015, o STF declarou a inconstitucionalidade da interpretação do código civil que conferia a personalidades públicas e seus parentes o poder de impedir a publicação de biografias sem autorização dos biografados ou de seus parentes. O STF entendeu que essa leitura do código civil equivalia a reconhecer um poder de censura prévia aos particulares, poder esse incompatível com a Constituição Federal.
No entanto, para que os cidadãos e a imprensa possam realmente exercer o seu papel de participação plena no debate público, é preciso que as pessoas e veículos de imprensa possam não apenas tornar público um conteúdo, como também tenham a segurança de que essa expressão será protegida pelo direito. Não me adianta muita coisa poder publicar um conteúdo se eu não tenho a segurança de que, ao publicá-lo, não serei condenado a sofrer uma sanção penal ou a pagar uma indenização, além de ter o meu conteúdo posteriormente removido do debate público. Assim, a liberdade de expressão deve ser bem mais do que a proteção contra a censura prévia se quisermos que ela proteja as pessoas em seu direito de participação no debate público. A jurisprudência no Brasil também avançou nesse sentido. Há entendimento razoavelmente consolidado de que, a princípio, conteúdos de crítica política, sátira cultural, conteúdos artísticos, conteúdos de relevância científica e educacional e conteúdos sobre personalidades públicas merecem maior proteção e devem prevalecer face a alegações de violações de direitos de reputação, honra, privacidade ou imagem. Mas essa é ainda uma proteção vacilante no Brasil. Isso porque critérios acerca do que podemos ou não dizer no espaço público ainda não são claros. O judiciário, incluindo o STF, se reserva o direito de fazer ponderações de valores em cada caso concreto que se apresenta. Isso deixa os cidadãos e a imprensa sem referência e orientações claras acerca do escopo de proteção da liberdade de expressão para além da proteção contra a censura prévia.
Um dos avanços mais recentes nesse sentido ocorreu no escopo das decisões do STF na ADI 6792 e na ADI 7055, que foram conjuntamente julgadas em 2024. Nessas ações, o STF decidiu que jornalistas e veículos de imprensa só podem ser civilmente responsabilizados por conteúdos de sua autoria quando imputam fatos falsos a terceiros com dolo ou culpa grave, ou seja, com conhecimento da falsidade ou negligência evidente na apuração dos fatos. Isso significa que a imprensa não pode ser responsabilizada por informações verdadeiras, meras críticas ou opiniões e mesmo erros fáticos cometidos sem dolo ou culpa grave. Nessa ação, o STF reconheceu que, até aquele momento, não havia no direito brasileiro parâmetros claros de responsabilização civil da imprensa. Foi uma decisão muito importante que, a meu ver, foi pouco noticiada. No entanto, apesar do avanço, ainda temos problemas e desafios a enfrentar.
Em primeiro lugar, os parâmetros dessa decisão desafiam algumas ideias do senso comum jurídico prevalecente no Brasil, inclusive dentro do judiciário. Por exemplo, me parece que, se a decisão protege o conteúdo verdadeiro e aquele que constitui mera crítica ou opinião, isso significa que a imprensa não pode ser responsabilizada quando publica conteúdo crítico ou conteúdo verdadeiro, mesmo quando ele for ofensivo e/ou prejudicial à reputação. Isso desafia algumas razões que tradicionalmente são reconhecidas no direito brasileiro para condenação penal e civil. Basta verificar a literalidade dos tipos penais de injúria e de difamação. Temos casos muito graves no Brasil de condenação civil de jornalistas ao pagamento de indenizações exorbitantes pela publicação de fatos de relevância pública em relação aos quais há indícios e evidências importantes, ou pela crítica à atuação de autoridades públicas. Muitas dessas ações são movidas pelos próprios integrantes do judiciário, aí incluídos ministros do STF! Vai ser difícil promover a internalização dos critérios dessa decisão na cultura jurídica brasileira, em especial no judiciário. Os próprios ministros do STF, em algumas reclamações constitucionais movidas com base no que o STF decidiu nessas ADIs, já mostram falta de compreensão daquilo que o próprio STF decidiu ou falta de compromisso com as decisões nas ADIs. Um passo importante foi dado, mas teremos ainda muito trabalho para fazer valer esses critérios. Isso sem falar que, a princípio, são critérios que se aplicam apenas à imprensa. Para a maior parte dos cidadãos brasileiros, o escopo do direito à liberdade de expressão segue nebuloso e sem contornos claros na jurisprudência. Precisamos ainda avançar no sentido de construir um direito de liberdade de expressão para todos que seja claro e que tenha um escopo compatível com o que esperamos de uma democracia.
Autoria: Erick Martins Rosario
Revisão: Artur Santilli
Imagem da capa: Arquivo pessoal







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