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LUZ BRANCA



Abro os olhos. A luz branca silva, arranha minhas retinas.


É o começo do expediente.


No relógio dependurado no topo da parede esquerda, os ponteiros resvalam, morosos, e acusam 22h. É aqui que passarei as próximas horas – o turno da madrugada de uma loja de conveniência em um posto de combustível no meio do nada.


Detrás do balcão cinzento, examino a minúscula loja. Na parede esquerda, as geladeiras encardidas ruminam e tremem, as únicas que, junto dos ponteiros do relógio, se atrevem a se mexer nessa paisagem morta. Observando as prateleiras dispostas pelo resto do ambiente, tento focar nas embalagens coloridas e exageradas dos salgadinhos vagabundos, mas, assim como nas outras vezes, não consigo distinguir o que exclamam. Mesmo que me esforçasse para tentar – e isso eu já parei de fazer há muito –, sei que não conseguiria. É tudo uma indecifrável meleca sarapintada. Quanto tempo falta?


Olho para o relógio. 22h10. Ainda falta muito, e o tempo não passa aqui.


É essa maldita luz branca que silva, arranha minhas retinas. Não olho para a longa lâmpada tubular que a emite, mas o maldito ruído não me deixa esquecer sua presença. Quando observo onde deveriam estar minhas mãos e dedos, vejo apêndices cadavéricos, e sei que é culpa da luz branca. Sinto que, ao grudar na minha pele, ela a deteriora, faz minha cabeça pulsar e a respiração pesar. Como uma teia, ela está apegada em tudo, do balcão aos cantos a cada uma das embalagens medíocres, tudo está pálido e definhando. Não conseguiria descolar essa aura sórdida do meu corpo nem se a luz finalmente se extinguisse, mas ela deve estar sempre acesa e zumbindo forte, dado que estou no que deveria ser uma loja de conveniência, se me lembro bem.


Olho para o relógio. 23h.


Eu poderia desligar a lâmpada. Afinal, nada vai acontecer até às 3h. Sei que não vai, e sei também o que vai acontecer às 3h. Estou aqui há muito tempo.


Porém, se a luz branca se extinguir, vou ter que lidar com o problema do que está lá fora. Ao olhar pela porta de vidro da lojinha, não consigo divisar as bombas de combustível ou as pilastras do posto iluminadas pela fina luz do luar. É pura escuridão. Não vejo nem os pontinhos brancos que normalmente iluminam e dão profundidade ao veludo escuro da noite. Se a lâmpada se apagar, perderei as paredes encardidas e serei só eu e essa treva. A luz branca silva, agulha meus olhos.


Agarrado aos ponteiros do relógio, o tempo rasteja até às 3h. É agora.


Nem um segundo mais tarde, o sininho da entrada toca, breve, com o abrir da porta. Uma mão que sai da escuridão lá fora é que empurra a maçaneta, seu esmalte escuro descascando. Conforme a porta se abre, a mão vai ganhando um braço, um ombro e um corpo, doados pela escuridão. Quando a dona da mão enfim se materializa, é uma jovem mulher, de talvez 20 anos, de cabelos curtos, com um olhar felino e um sorriso no rosto ao olhar para trás, onde outro corpo aparece. Agora, é um jovem da mesma idade, alto e com um cabelo que cobre seus olhos. Trocam olhares e começam a deslizar pelas prateleiras. Murmuram uma conversa tímida – mas constante – que, bem como as letras das embalagens, não consigo entender. Não é como se os sussurros estivessem em um tom baixo demais para eu entender, ou em uma língua que eu não conheço, mas sim como se fosse apenas um ruído branco que, mesmo não significando nada, parece ter algo a dizer.


Algo me diz que eu devo ser indiferente, e é o que sou. Entretanto, é definitivamente o momento mais estranho das minhas noites – se é que isso tudo não é só uma grande noite. Consigo sentir um pingo de algo como curiosidade em minha mente. Se pudesse, perguntaria se acham tudo isso normal, se há algo além da escuridão lá fora, se está tudo na minha cabeça.


Mas não pergunto. Tenho que ser invisível, sou o caixa da loja de conveniência em que eles não comprarão nada. Além disso, não sei nem se conseguiria me comunicar com eles – essa longa noite sob a luz branca me faz sentir como uma criatura diferente, alheio a eles. Os olhares, sorrisos e sussurros pertencem a um tempo já há muito enterrado na minha memória.


Posso parar de pensar sobre isso agora, já que estarão aqui de novo. Olho o relógio. 3h10. A moça pega na mão do jovem, conduzindo-o para a saída. Não compram nada, mas sei que furtam uma garrafa de bebida. Eu não me importo tanto. Abrem a porta e, no momento em que saem, se desfazem no negrume exterior.


Quando volto a estar sozinho, meu teatro não se desfaz, e continuo atuando indiferença para uma plateia inexistente e invisível que me conduz com sua onipresença. Esfrego os olhos. A luz branca silva e, como agulhas, perfura meus olhos.


Um pouco antes das 5h – o fim do turno da madrugada – saio do balcão e vou ajeitar alguns produtos. É uma desculpa para checar se as coisas são reais e, se já o forem, se enfim isso é uma indicação de que posso sair dessa prisão e voltar para a realidade, o que quer que ela seja. Mas os produtos são desfocados e desfigurados até quando os seguro a centímetros dos meus olhos e, quando me viro para olhar para fora, esperando ver o céu alaranjar com o raiar do sol, é só noite.


O relógio finalmente bate 5h. Suspiro e, com o que resta da minha consciência, seguro uma mistura de cansaço, alívio e uma ponta de esperança. Fecho os olhos.


É o fim do expediente.



Abro os olhos. A luz branca silva, arranha minhas retinas.


É o começo do expediente.


No relógio dependurado, são 22h. Aqui passarei as próximas horas, observando a minúscula loja detrás do balcão cinzento. No ar, os zumbidos da lâmpada e das geladeiras. Nas prateleiras, mensagens indecifráveis. Lá fora, um céu noturno sem estrelas encerra o ambiente. A luz branca continua chiando, pinicando meus olhos, grudando e apodrecendo minha pele.


Às 3h, os jovens entram e desfilam pela loja. Essas pessoas também estão presas? Talvez estejam em um ciclo infinito de entrar, rir e sair e, quando fecham os olhos, estão entrando de novo. Será que, por trás dos sorrisos e olhares de soslaio, estão tão desesperados quanto eu, mas assim como eu não conseguem escapar de uma programação alheia a nós?


3h10, eles saem. Não preciso chegar a uma conclusão agora, eles estarão aqui de novo. Olho pela janela, o alvorecer não chega.


Às 5h, suspiro, cansado, e fecho os olhos.


É o fim do expediente.



Abro os olhos. A luz branca silva, arranha minhas retinas.


É o começo do expediente. 22h. Não consigo ler o que está nas embalagens. Lá fora, o breu. Eu definho. 3h. Os jovens riem e desaparecem. Nada é real. Acho que não vou conseguir sair daqui.


5h. Fecho os olhos. É o fim do expediente.



Abro os olhos. A luz branca silva, arranha minhas retinas.


É o começo do expediente.



Autoria: Pedro Augusto Castellani Rolim Revisão: André Rhinow, Anna Cecília Serrano e Gabriela Veit Imagem de capa: 幾望/ Reprodução: https://twitter.com/sh_psl_p/status/1632692882405736448.



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