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MARIGHELLA, ENTRE NÓS, FINALMENTE, O FILME MAIS POLÊMICO DO ANO




“Verás que um filho teu não foge à luta”


Não é fácil mostrar e demonstrar a história de uma figura polêmica. Uma figura polêmica? Sim, uma figura real, daquelas que prospectamos em nós mesmos e em nossos semelhantes, mas que nos falta coragem para falar. A palavra “polêmica” encontra sua origem no grego polemikos, que quer dizer “agressivo e beligerante”. Logo, polêmico relaciona-se com aquele que pretende encontrar-se em constante guerra. Ora, resistir, em muitos casos, implica necessariamente numa guerra; e nem sempre nos é fácil falar sobre esta. Pois, então, faça-se luz: Marighella e Marighella (2019, para alguns, 2021, para brasileiros) são coisas extremamente polêmicas.

Primeira direção de Wagner Moura, o longa, inspirado na biografia escrita pelo jornalista Mário Magalhães, aborda a jornada de luta e resistência de um dos maiores guerrilheiros brasileiros, o comunista Carlos Marighella (1911-1969), desde os primeiros momentos do Regime Militar em 1964 até seu assassinato em 1969. Desde sua estreia mundial em 2019, o filme passou por inúmeras dificuldades para a efetivação de seu lançamento e distribuição no Brasil, fazendo com que a mesma fosse concretizada apenas na última quinta-feira, 4 de novembro de 2021, quase dois anos após a estreia internacional.

Inicialmente, tal fenômeno fora associado pela produtora do filme (O2 Filmes) ao não cumprimento a tempo de todos requisitos exigidos pela Ancine (Agência Nacional do Cinema) para conseguir verba pública para sua distribuição. No entanto, após declarações do presidente Jair Bolsonaro a respeito da importância de haver um “filtro de conteúdo” dentro do órgão, cogitando sua extinção caso não ocorresse, além de tuítes de um dos filhos do presidente, Carlos Bolsonaro, comemorando a negação de recursos ao longa, uma zona cinzenta em torno de uma provável censura formou-se. Assim, os acontecimentos foram dando indícios de que as dificuldades enfrentadas poderiam estar ocorrendo mais em razão de uma articulação político-ideológica contra filme do que um mero empecilho burocrático, o que fez com que a estreia no país fosse acometida por uma morosidade generalizada.(1)

Sobre o filme em si, gostaria de destacar, primeiramente, a interpretação fabulosa de Marighella por Seu Jorge, o qual consegue dar vida a uma personagem polêmica, complexa e, talvez, contraditória, embora sempre consistente em seus fins. Sendo assim, a dualidade sinérgica do protagonista é não apenas um aspecto marcante, mas crucial para a construção de uma personagem cujo maior mérito foi nunca ter desistido de sua luta, mesmo quando todo o emparelhamento estatal militar já havia sido consolidado com os Atos Institucionais, os quais aniquilaram qualquer alternativa democrática de oposição ao regime.

Dessa forma, de um lado o cantor brasileiro dá vida a um alguém verde e amarelo capaz de exprimir ódio, força e coragem de magnitudes quase mitológicas e que poderiam parecer impossíveis para os atuais descobridores e estudantes da história brasileira. Isso porque tais ações demonstram-se indubitavelmente determinantes para o combate contra um sistema que se vendia como um “Messias” ao potencial “perigo comunista”, ao passo que ele próprio fazia questão de caminhar em tanques para demarcar sua força. E essa dureza da interpretação é equilibrada com outra de aspecto similar, mas que tem nome de “amargura”. Há uma sensibilidade silenciosa nos olhares profundos e demorados de Seu Jorge, os quais abarcam tanto a dor de ver aqueles que amamos correrem perigo (possuindo, portanto, sempre um tom de despedida incerta), quanto o medo de ter que mergulhar em sangue uma luta justa devido às circunstâncias que sua necessidade de existência foi colocada.

E a respeito dessa resistência constante empreitada por Carlos Marighella, é impossível não deliberar que fora esquecida por muitos e, com certeza, expropriada de tantos outros brasileiros nascidos antes, durante e depois do Regime Militar. Para dificultar ainda mais a visitação histórica, como se não bastasse os berros fascistas do atual governo, que colocam os fatos numa maré caótica de “achismos”, os documentos públicos da época sobre os acontecimentos e ofensivas que rodeiam a figura do combatente comunista estão envoltos em muitas mentiras.

Um exemplo marcante é um dos episódios (com o qual o filme se inicia) no qual Marighella fora preso e baleado no cinema da Tijuca, em 9 de maio de 1964. Segundo os militares, Carlos havia baleado a si mesmo. Entretanto, dado que se tratava de uma perseguição sem mandato, o então inimigo número um do Estado foi solto após 83 dias com a ajuda de Sobral Pinto (1893-1991), importante jurista e advogado brasileiro. A partir daí, indissocia-se a história de Marighella às constantes tentativas de distorcer e apagar a mensagem de sua luta. Eu mesmo, partindo de minha experiência pessoal, nunca tive a oportunidade de ter um contato direto e íntimo com essa importante personagem brasileira, não tendo a chance de ouvir seu discurso sem ruídos e pré-conceitos. Imagino que eu não seja o único. Nesse sentido, com efeito, o longa de Wagner Moura é decisivo e ganha força ao dar palco a uma história até então inacessível ao público geral.

Em relação à narrativa, penso que seria fácil para o longa colocar Marighella num pedestal, dando-lhe um caráter exclusivo de herói perfeito. Muito pelo contrário, a obra nos oferece um guerrilheiro que se questiona e é constantemente questionado a respeito da efetividade e legalidade de sua luta. Contudo, em relação à história de Marighella que extrapola o período em que o filme se passa, acredito que acontecimentos enigmáticos como a sua estadia em 1953 e 1954 na ditadura chinesa de Mao Tse Tung (2), a qual estava longe de poder ser considerada uma democracia, muito menos de uma sociedade inclusiva, são questões difíceis de serem deixadas de fora, pois creio serem importantes para uma compreensão ampla de sua luta. Quais foram suas impressões e considerações ao chegar no país asiático? Até que ponto compactuava? Mas essas são interrogações que vão além da proposta principal do longa, isto é, de tratar apenas do período ditatorial no Brasil, além do fato de que até mesmo biógrafos e historiadores têm dificuldade de respondê-las, dada a escassez de documentos e relatos que as abordam especificamente.

Por outro lado, penso que suas ações não encontram tantas contradições, se considerarmos apenas sua atuação em solo brasileiro. Assim, com relação aos meios radicais que Marighella encontrou para guerrilhar, convido o leitor à seguinte reflexão: após a institucionalização ilegal de um regime militar que não fora democraticamente eleito e que agia, mesmo a partir de sua própria perspectiva, de modo ilegal e segundo atores completamente independentes, a única forma de combatê-lo seria por meio de uma suposta luta “ilegal”. Consequentemente, por mais “ilegal” que tal resistência armada contra o sistema possa parecer num primeiro momento, seria complicado compará-la às certamente ilegalidades dos militares, especialmente as do violento DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Nada mais legal que um combate “ilegal” contra um sistema ilegal que se utiliza de recursos ilegais.

Nesse sentido, Marighella é um daqueles filmes que colaboram para que tanto revisitemos quanto ressignifiquemos nossa história. Logo, não surpreso fico que aqueles que idolatram ou relativizam as atrocidades cometidas pelo regime militar são os mesmo que batalharam tanto para que o filme não fosse lançado no país. Da mesma forma que seria inverossímil pensar uma história indígena no Brasil na qual houve apenas uma receptividade passiva aos portugueses, sem qualquer resistência, por exemplo, seria inteiramente equivocado imaginar uma ditadura que foi facilmente engolida pelos brasileiros. Tais falas podem parecer redundantemente desnecessárias; entretanto, dado a ainda significativa parcela de pares que creem idilicamente num período militar exclusivamente próspero e de pouquíssima resistência, penso que o esforço ainda seja mais que necessário.

Um longo processo de alienação histórica foi feito e é imprescindível que estejamos ativos constantemente numa batalha para desemaranhá-lo. Não faltarão agentes que tentarão nos impedir dessa luta. Em duas cenas do filme (não darei spoiler) em que o hino nacional brasileiro é cantado, fica claro o quanto um mesmo hino pode ser utilizado de formas tão díspares, isto é, ora como meio para hipnotizar e construir um patriotismo populista e fascista, ora para celebrar que, apesar de constantemente tombados e maltratados, ainda somos um “povo heroico” disposto a lutar por um Brasil melhor. E não posso deixar de pensar que não haja um paralelo claro com correntes grupos de manifestantes apoiadores de Bolsonaro, os quais travestem-se de verde e amarelo na tentativa de evocar um purismo, ao passo que defendem ideias convergentes com a negação e aniquilação de minorias, indo, paradoxalmente, contra a própria “pátria amada”. Afinal, o que e de quem seria esse “país”?

O que sei é que, portanto, e no sentido amplo, Marighella é um dos filmes mais polêmicos já feitos e que agora, finalmente, caminha pelas terras irregulares deste solo. E aqui deixo o convite. Temos um filme beligerante desde sua primeira cena até seus créditos. Temos uma pérola, um retrato e um símbolo. Temos o recorte de parte da vida de um poeta e militante chamado Carlos Marighella. Temos a oportunidade de olhar novamente e, então, reelaborar. Temos a redescoberta de cacos então perdidos; o que faremos com eles? Esse acontecimento é raridade. Meu Brasil sonha. Temos o existir dessa terra - uma constante resistência.

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim, sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.”(3)



Autoria: Gabriel Linares Fernandes

Revisão: André Rhinow & Glendha Visani

Imagem de Capa: terra.com.br



Referências:


  1. OLIVEIRA, Joana. “Marighella”, na zona cinzenta entre cortes, problemas na Ancine e censura sob Bolsonaro. El País, 2019. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/12/cultura/1568322222_654952.html>. Acesso em: 7 de novembro de 2021.

  2. Carlos Marighella. Memórias da Ditadura. Disponível em: <https://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/carlos-marighella/>. Acesso em: 9 de novembro de 2021.

  3. MARX, Karl. O 18 brumário de Luiz Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2003.

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