Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Foi assim que, em 1975, João Bosco iniciou o seu álbum Caça À Raposa, com a música Mestre Salas dos Mares. A canção, musicada por João e letrada por Aldir Blanc, relembra a história de João Cândido, o marinheiro que liderou a Revolta da Chibata em 1904. Foi um dos maiores sucessos da dupla João e Aldir, ganhando notoriedade na voz de Elis Regina. A letra é poderosa, e evoca com maestria o espírito da Revolta que abalou o governo do Marechal Hermes da Fonseca.
Em sua letra, Aldir narra:
Conhecido como o almirante negro
Tinha a dignidade de um mestre-sala
E ao acenar pelo mar na alegria das fragatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
João Cândido, o Almirante Negro, como foi conhecido, é lembrado pela elegância com que liderou a insurgência. Antes um marinheiro de baixo escalão, João se viu de repente em uma posição de líder, comandando uma série de navios. Os marinheiros revoltosos exigiam o fim do uso da chibata como castigo físico, herança da escravidão e ferramenta de abuso contra a maioria negra dos marinheiros. Para a surpresa da sociedade carioca, João Cândido realizou complexos movimentos com as embarcações dominadas pelos rebeldes, apontando-as para pontos estratégicos do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. A movimentação talvez tenha remetido Aldir Blanc à imagem de um mestre-sala, flutuando pela avenida.
A canção prossegue pintando um quadro do Rio da época, ressaltando que o Almirante Negro foi saudado pelas "mocinhas francesas", jovens "polacas" e batalhões de "mulatas". As francesas, prostitutas de bordéis chiques, dividiam a região do mangue com as "polacas", jovens judias trazidas do Leste Europeu e obrigadas a se prostituírem para pagar os custos da viagem ao Brasil. Já as "mulatas", mulheres negras condicionadas à vida em cortiços e nas nascentes favelas, ganhavam o pão como quituteiras, lavadeiras, benzedeiras, ou o que mais lhes pudesse tirar de uma realidade na qual a abolição parecia ter vindo pela metade. Essas mulheres provavelmente se simpatizaram com a causa de João Cândido, e saudaram aquele que também batalhava pela dignidade de seus companheiros.
Mais adiante, João Bosco canta os seguintes versos:
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história não esquecemos jamais
Salve o almirante negro
Que tem por monumento as pedras pisadas do cais
(...)Mas faz muito tempo
A homenagem a João Cândido é, portanto, uma homenagem a todas as “lutas inglórias” imortalizadas na história. ”Mas faz muito tempo”. Mas fazia mesmo? Na época em que Aldir Blanc escreveu essas palavras, o Brasil passava por uma ditadura militar, mais um governo autoritário como o que Hermes da Fonseca encabeçou nos tempos da chibata. A condição da população negra não tinha melhorado muito, e várias lutas inglórias ainda ocorriam no país. O passado ainda se fazia presente.
Por outro lado, da mesma forma que as letras de Aldir lembravam que o pior da República Velha ainda dava as caras durante a década de 70, elas também traziam uma lembrança nostálgica de alguns momentos do passado brasileiro nos quais a esperança existiu, para desaparecer pouco depois. Em Linha de Passe, do álbum homônimo, o violão frenético de João Bosco cria uma atmosfera alucinante, frenética, um “som bordão bordando o som, dedão, violação”. As palavras de Aldir podem parecer aleatórias e desconexas, mas não são:
Toca de tatu, lingüiça e paio e boi zebu
Rabada com angu, rabo-de-saia
Naco de peru, lombo de porco com tutu
E bolo de fubá, barriga d'água
Há um diz que tem e no balaio tem também
Um som bordão bordando o som, dedão, violação
Diz um diz que viu e no balaio viu também
Um pega lá no toma-lá-dá-cá, do samba
Um caldo de feijão, um vatapá, e coração
Boca de siri, um namorado e um mexilhão
Água de benzê, linha de passe e chimarrão
As referências culinárias, futebolísticas e musicais se misturam e nos levam em um passeio por um Brasil divertido, colorido, cheio de possibilidades. Mas como alegria de brasileiro dura pouco, o cenário logo piora:
Já era Tirolesa, o Garrincha, a Galeria
A Mayrink Veiga, o Vai-da-Valsa, e hoje em dia
Rola a bola, é sola, esfola, cola, é pau a pau
E lá vem Portela que nem Marquês de Pombal
Mal, isso assim vai mal, mas viva o carnaval
Lights e sarongs, bondes, louras, King-Kongs
Meu pirão primeiro é muita marmelada
Puxa saco, cata-resto, pato, jogo-de-cabresto
E a pedalada
Quebra outro nariz, na cara do juiz
Aí, e há quem faça uma cachorrada
E fique na banheira, ou jogue pra torcida
Feliz da vida
As referências ao jogador Garrincha e à socialite Mayrink Veiga nos remetem ao período do Governo Juscelino Kubitschek, época de intenso otimismo, da bossa nova, do título de 1958... Mas “hoje em dia/ Rola a bola, é sola, esfola, cola, é pau a pau”. A confusão é generalizada, simbolizando a violência e o caos instaurado pela ditadura militar. Se antes existiu alguma cooperação, alguma harmonia, uma “linha de passe”, agora a briga, o jogo sujo e o individualismo imperam, se “quebra outro nariz” e “há quem faça uma cachorrada e fique na banheira”.
Foram nesses tempos turbulentos que a dupla João Bosco e Aldir Blanc atingiu o estrelato e lançou uma série de canções definidoras da MPB. Foram gravados por Elis Regina, Simone, Joyce, Clara Nunes, foram censurados, emplacaram a abertura da novela O Astro com a música Bijuterias, e lançaram álbuns de uma qualidade elevada até mesmo para uma época que hoje é lembrada como um dos momentos mais criativos da música brasileira. Completarem um ao outro, dois gênios ressaltando o que outro tinha de melhor.
Ainda assim, a maior parte do estrelato foi, naturalmente, reservada a João Bosco. Ele era o intérprete, e seu carisma e violão virtuoso merecidamente figuraram nas rádios. Aldir Blanc, ainda que relegado ao papel oculto de letrista, sempre foi um grande personagem. Nascido no bairro do Estácio, transitou pela Tijuca e Vila Isabel, conhecendo o subúrbio carioca que mais tarde daria as caras em suas músicas. Era vascaíno e salgueirense roxo, boêmio e cronista dos personagens da noite. Se formou em medicina, a qual largou para viver de suas composições. Empregou o vernáculo brasileiro de forma que passeou tranquilamente pelo erudito e pelo popular. Fez rir, chorar, refletir, emocionar do jeito que só os maiores poetas conseguem.
Talvez o seu maior êxito, a sua obra-prima, foi o Bêbado e o Equilibrista. Que o leitor me perdoe pelo excesso, mas acho que cabe transcrever toda a letra:
Caía a tarde feito um viaduto E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos A lua, tal qual a dona de um bordel Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel
E nuvens lá no mata-borrão do céu Chupavam manchas torturadas Que sufoco Louco O bêbado com chapéu-coco Fazia irreverências mil Pra noite do Brasil Meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil Com tanta gente que partiu Num rabo de foguete Chora A nossa Pátria mãe gentil Choram Marias e Clarisses No solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente Não há de ser inutilmente A esperança Dança na corda bamba de sombrinha E em cada passo dessa linha Pode se machucar
Azar A esperança equilibrista Sabe que o show de todo artista Tem que continuar
O Bêbado e o Equilibrista foi um hino da anistia. Percorreu o país na voz de Elis Regina e foi cantada em comícios que pediam o fim da perseguição e a liberdade aos presos políticos. Depois de promulgada a anistia, famílias receberam seus parentes exilados, que retornando ao país eram recebidos pela canção saindo de gravadores.
A tarde caia assim como o Viaduto Paulo de Frontin caiu em 1971, deixando 26 mortos. A queda foi, de certa forma, expressiva das falsas promessa da ditadura, que escondia a miséria brasileira e as suas contradições por trás de opulentas obras públicas.
O bêbado, personagem mundano que escaparia das analogias de um artista menos sensível, ganha os holofotes de Aldir, representando um Brasil enlutado, trajado de preto como o Carlito de Chaplin. Cambaleante, o bêbado fazia irreverências à sufocante noite brasileira, como que tentando encarar tragédia com um pouco de bom humor. Louco!
Brasil que sonhava com a volta do irmão do cartunista Henfil, o sociólogo Betinho, mais um dos muitos exilados partidos num rabo de foguete. No qual choravam Clarice, viúva de Vladimir Herzog, Maria Tereza e Maria Aparecida, filhas de Manoel Fiel Filho, e muitos outros que perderem seus entes queridos pela repressão.
Mas uma dor assim pungente, de dar um nó na garganta, não havia de ser inutilmente, certo? Pra toda noite sufocante, existe um raiar do dia libertador. A esperança existia no horizonte, ainda que bamboleando como um equilibrista, alerta e consciente que pode, a qualquer momento, se estatelar no chão do circo. Mas o equilibrista segue, pois sabe que o show de todo artista tem que continuar. Qualquer faísca de esperança vale a pena ser perseguida. A perspectiva de uma anistia, quiçá de uma eleição direta, representava aquilo que as mocinhas francesas, jovens polacas e um batalhão de mulatas viram encarnada no Almirante Negro. A esperança equilibrista.
Em O Cavaleiro e os Moinhos, Aldir aperta uma tecla semelhante:
Acreditar Na existência dourada do sol Mesmo que em plena boca Nos bata o açoite contínuo da noite
Arrebentar A corrente que envolve o amanhã Despertar as espadas Varrer as esfinges das encruzilhadas
Aldir nos fez acreditar na existência dourada do sol. Hoje, de novo, essa parece ser uma tarefa impensável, quixotesca. Em meio a uma pandemia, a natureza destruída, governantes que se lembram com saudosismo da ditadura e uma crise econômica em curso, a noite não anda dando arrego ao brasileiro.
Aldir Blanc faleceu em maio deste ano, por complicações decorrentes do novo coronavírus. Foi uma das várias vítimas que hoje são choradas por Marias e Clarices. Já era Tirolesa, Garrincha, Galeria, Aldir. Nos resta uma dor assim pungente, e a sua lembrança. A sua poesia nos elevou, mostrou um vislumbre do que o Brasil poderia ser. Foi um bravo marinheiro, há quem a história não esquecerá. Mas faz muito tempo. Faz mesmo?
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