No texto de hoje, nosso redator Bruno Daré discorre sobre as dualidades da expressão de gênero, as construções sociais e as características que são inatas aos indivíduos. Uma reflexão um tanto destoante das discussões sociais contemporâneas, neste artigo é apresentada a ideia de que talvez a cultura não seja tão influente assim, e que sejamos o que sejamos por simplesmente o sermos. Venha ler mais para enxergar uma perspectiva diferente da que você está acostumado!
Enquanto o presidente ataca a democracia, a imprensa e a liberdade de expressão, em meio também a uma crise de saúde global, escrever sobre qualquer outra coisa parece fora de contexto – ou até covardia, talvez. Permita-me essa gafe, pois não aguento mais ler quais os novos porquês de Bolsonaro ser irresponsável. Já estou convencido, e provavelmente também estão os leitores da Gazeta. Mais do que isso, outras pessoas expressam o que penso, e para um público muito maior. Feita essa ressalva, começo meu texto de fato no parágrafo seguinte.
Gosto muito de meias brancas. Foi o que pensei no domingo, procurando inspiração para escrever, enquanto tomava café e vestia um par de meias brancas. Não sei bem o porquê de preferir meias brancas, também gosto de outras cores no meu pé, aliás. Mas confesso que esse é o tipo de curiosidade que martela na minha cabeça há alguns anos – o fruto das minhas preferências. Nossas vontades são inatas ou frutos de construções sociais? Obviamente não tive sozinho essa epifania – a pergunta é antiga na filosofia. Quero, no entanto, dar alguns pitacos próprios que penso serem autênticos, e já me desculpo se eu acidentalmente tomei emprestado os insights de alguém que tenha pensado e registrado as coisas que vou dizer, o que é provável – até gostaria de saber se estou coincidentemente concordando com algum pensador.
Comumente nesse tipo de discussão existem duas opiniões mais frequentes – a de que a ampla maioria das coisas são naturais, a de que a ampla maioria das coisas são socialmente construídas. Meus pais diriam que pintar unhas é uma atividade naturalmente feminina, e boa parte dos jovens desconstruídos diria que é só esmalte no dedo. Nesse caso, a princípio, parece óbvio que pintar o dedo não está biologicamente ligado a nenhum sexo. Meus pais diriam, também, que qualidade musical é natural e inata – provavelmente numa justificativa esfarrapada de dizer que funk é ruim, ou não é artístico. Mas apesar do objetivo boomer desse palpite, eu concordaria que os nossos gostos por música não são arbitrariamente construídos culturalmente. As notas que conhecemos (dó, ré, mi, etc.) correspondem à frequências sonoras bastante específicas – nós simplesmente nos acostumamos com essas frequências? Se, desde o nosso nascimento, ouvíssemos notas que hoje chamamos de “desafinadas”, nos acostumaríamos e diríamos que as notas desafinadas são agradáveis? Eu particularmente acho difícil de acreditar que fomos socialmente ensinados a gostar das notas que gostamos – parece que existe algo naturalmente desagradável sobre frequências entre mi e fá.
Meu ceticismo manda que eu responda “não sei” para todos esses casos. Talvez existam motivos naturais para que mulheres estejam mais propensas a querer pintar a unha, por mais improvável que isso possa soar. Pode também ser o caso de que nada sobre a natureza humana faz com que nós estejamos mais confortáveis com determinadas frequências sonoras. Um ramo da filosofia se propõe a discutir exatamente se a beleza é objetiva ou subjetiva – talvez os leitores familiarizados com a literatura estejam revirando os olhos lendo as obviedades que escrevo aqui. Aquilo que é belo é socialmente construído ou é natural?
Musicalmente, tendo a acreditar que existe algo natural sobre o que gostamos, mas quando penso em filmes ou paisagens, mudo de ideia. Como disse, são palpites, não há como saber, com toda certeza, se achamos determinadas coisas bonitas ou atraentes porque aprendemos assim, ou porque já nascemos com esses gostos. Achamos cocô fedido porque aprendemos que é fedido? Achamos espinhas feias pois assim nos ensinou a mídia? Acho fundamental que se encare essa pergunta com muito ceticismo, explico o porquê.
Militudos de plantão mergulharam de cabeça na tese de que todos os costumes e gostos da nossa sociedade são frutos de construções culturais da imaginação de nossos antecessores. Seja pelo hype da rebeldia de contrariar os pais, seja porque é estrategicamente importante para a narrativa do movimento x do qual você faz parte – esbravejar pelo feed que tudo é socialmente construído é simplesmente desonesto.
Ninguém sabe com certeza a resposta daquela pergunta que coloquei no primeiro parágrafo. No caso de pintar a unha, apesar de não ser o posicionamento mais cético e honesto de todos os tempos, dizer saber com certeza que o esmalte é fruto do patriarcado é um posicionamento inofensivo. Mas quando discutimos hierarquias, economia de mercado, casamento, ou outros pilares da cultura ocidental, não podemos simplesmente descartar todas essas coisas alegando que elas são construções sociais. Podemos, racionalmente, pensar se os costumes que outras gerações cultivaram são necessários e/ou prejudiciais, mas sem o versículo pós-moderno de construção social como se os que discordam são propagadores de heresias dignas de cancelamento.
Antes que digam que estou inventando um espantalho da militância, discutirei uma frase que sempre me faz coçar a cabeça quando aparece no meu feed, “pessoas gays já nascem gays”, ou como está no título do vídeo do Quebrando o Tabu – “ninguém vira viado”. Obviamente é desonesto, afinal, é perfeitamente possível que a sexualidade de uma pessoa tenha se desenvolvido na primeira infância, ou ainda mais tarde. Ainda assim, o vídeo (e millenials em geral) toma(m) como verdade imutável a tese de que ninguém vira viado como se fosse a coisa mais óbvia do planeta, como se a sexualidade das pessoas não pudesse, potencialmente, ser influenciada por fatores externos. Ninguém sabe se, desde o primeiro fôlego, cada indivíduo já tem determinados sexualidade, cor de meia preferida, traços de personalidade, gosto, etc. Seria da mesma rigorosidade científica de signos.
Pior, além de desonesto, parece não ser nem estrategicamente inteligente – a resposta de que gays já nascem gays soa como uma tentativa de tranquilizar pais homofóbicos, quase dizendo que seria um problema se as pessoas se tornassem gays ou pudessem escolher ser gays. “E se meu filho virar gay vendo um casal de homens se beijando na rua?” não merece mais do que um “E se? E daí? E o que é que tem se ele virar gay?”, mas covardemente respondemos “Calma! Ninguém vira gay, se seu filho nasceu gay então não tem mais jeito mesmo!”. Não precisamos abandonar o ceticismo e inventar desculpas porque não importa se gays nascem gays e héteros nascem héteros – ser gay não é um problema, e não seria problema se alguém pudesse escolher ser gay.
Como disse, gosto sempre de responder “não sei”, apesar de eventualmente ter pitacos sobre o que eu acredito ser o caso – de haver ou não haver componentes naturais ou inatos num determinado fenômeno. Felizmente, estudos empíricos poderiam nos ajudar a responder algumas perguntas, apesar de não eliminarem completamente a dúvida. É sabido que em cursos de engenharia há mais homens, e em cursos de pedagogia há mais mulheres – e inclusive alguns pensadores cogitam que isso seja porque, na média, homens são mais interessados por coisas, e mulheres são mais interessadas em pessoas. Existe evidência empírica que sustenta essa hipótese, como sugerido pelo artigo “Men and things, women and people: a meta-analysis of sex differences in interests”
De qualquer forma, resta ainda uma dúvida importante: homens, naturalmente, gostam mais de engenharia ou esse gosto foi inteiramente construído por hotwheels, gillette, videogames, e tantas outras coisas externas que são direcionadas aos meninos na sociedade? De novo, é perfeitamente possível que tudo sobre as nossas noções de masculinidade sejam invenções, sejam culturalmente construídas, mas também é possível que alguns elementos daquilo que entendemos por masculinidade estivessem mais presentes em homens do que em mulheres, mesmo na ausência de influências sociais externas. Daí a dúvida – quais características e gostos culturalmente atribuídas aos homens seriam mais comuns em homens independentemente de influências externas? Todas, nenhuma?
Não quero ser mal interpretado: a resposta dessa pergunta tem o propósito único de descrever a realidade, isto é, ela não diz nada sobre o que homens e mulheres devem ou podem fazer. Em outras palavras, mulheres e homens escolhem cursos diferentes porque foram ensinados a gostarem de coisas diferentes ou porque naturalmente têm gostos diferentes?
Estranhamente, o movimento feminista parece não ter um pingo de dúvida sequer – na ausência da influência da sociedade, meninos e meninas teriam os mesmos gostos. Também não tem dúvidas o cidadão de bem – homens são naturalmente mais violentos e mulheres são naturalmente mais sensíveis. Fico com o ceticismo, prefiro ser honesto comigo mesmo e admitir não saber a respostas – ainda que sob risco de cancelamento.
É curioso (para não dizer irônico) que nesses dois exemplos que dei, boa parte dos progressistas acreditem que a sexualidade é completamente inata e blindada de qualquer influência externa social, e simultaneamente, papéis de gênero são inteiramente inventados e produtos de construções sociais. Nestes mesmos dois exemplos, conservadores escolhem os posicionamentos opostos correspondentes. Deliberadamente escolhem o que é mais conveniente. Tudo é construção social, pero no mucho.
Me restringi a exemplos que eu enxergo como conveniências mais latentes no debate público, mas a minha defesa do ceticismo é também para quando as conclusões forem inconvenientes para o que eu previamente acredito. Esse talvez seja o desafio que proponho para aqueles que supostamente defendem a ciência – não proponham respostas mirabolantes baseadas na sua fé. Esse texto é sobre isso, sobre não responder o que não sabemos. Talvez homens e mulheres naturalmente tenham gostos e comportamentos diferentes, talvez não. Talvez eu sempre tenha gostado de meias brancas. Talvez eu detestasse Mozart e adorasse cheiro de estrume se eu tivesse tido uma educação com outro mindset. Não sei.
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