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Meus Cumprimentos ao Chefe


Eu sou um péssimo cozinheiro, um verdadeiro desastre. Tirando alguns sanduíches mais “elaborados” e aquele macarrão singelo, que faço com mais dificuldade do que o necessário para uma pessoa normal, sou completamente inepto. Deus abençoe os congelados. Por mais que eu faça piada com isso, minha falta de habilidade na cozinha me entristece. Em parte, pela minha história familiar e, em outra, por pessoas que admiro, não que eu não admire membros da minha família (favor não me colocar em uma saia justa, querido leitor). Cresci indo religiosamente aos almoços de domingo na casa de minha avó, que sempre, com muito carinho, fazia questão de preparar quantidades colossais de pratos incríveis, como risotos, feijoada, massas, carnes… e lá vai a lista. Casa de vó é bom demais. Por causa desse contexto, compartilhado entre tantos, acredito fielmente que almoços de domingo são uma peça fundamental na vida de uma pessoa, pois ensinam o valor que a comida tem para unir pessoas em volta de algo prazeroso. Familiares, amigos ou desconhecidos, na verdade, muitas vezes não importa a proximidade dos envolvidos, com uma boa porção no meio e uma bebida a gosto do cliente, todos são um só, iguais perante ao mundo. Por isso, tenho muito respeito pelos chefs, sejam eles da minha família ou não, por conseguir proporcionar momentos como esses, de alegria e unidade. Nisso, poucas pessoas entenderam a importância cultural da comida e seu poder de união como o tópico de texto: o chef Anthony Bourdain.


Aqueles que me conhecem sabem que possuo uma grande admiração pelo trabalho do falecido chef. Membros deste ilustríssimo periódico, que você está lendo agora, já me encheram a paciência diversas vezes por citar as viagens de Bourdain no dia a dia. Mas ignoremos a polícia da diversão e vamos direto ao ponto. Para aqueles que nunca ouviram falar, Anthony Bourdain era um chef e apresentador de televisão estadunidense que ficou conhecido, primeiramente, por seu livro “Cozinha Confidencialno qual expõe a realidade da indústria de restaurantes pela perspectiva de um cozinheiro de linha. Neste depoimento, Bourdain abrange diversos tópicos, como se apaixonou por gastronomia ao provar ostras frescas quando criança, seu breve tempo como líder de um sindicato de cozinheiros, política migratória americana (sério), seus problemas com as drogas, as dificuldades de restaurantes de se manterem de pé financeiramente e os truques que cozinheiros utilizam para poupar dinheiro, como guardar as piores peças de carne para o clientes que a pedirem bem passada, não por picuinha, mas para esconder os defeitos do ingrediente. 


Mas a parte que me fez admirar mais o trabalho do chef, foram os seus programas de televisão. Primeiro veio “A Cook’s Tour” logo seguido de “Sem Reservas”, programas mais tradicionais de culinária, nos quais Anthony viajava pelo mundo provando comidas típicas dos lugares, visitando chefes renomados e interagindo com a cultura local. Depois o “Fazendo Escala”, quase um subprograma em que o chef ficava, por pouco tempo, em cidades menos visitadas, foi nesse que gravou seu episódio sobre a cidade de São Paulo. Por último, o meu favorito e o programa que conversa sobre o que falamos previamente da comida ser um âncora cultural: “Partes Desconhecidas”. Nesse, Bourdain viajava por cidades, países, estados ou até mesmo bairros de grandes cidades, enfim, lugares que são, por muitas vezes, ignorados pela maioria dos viajantes, e analisava, através de atividades e refeições, a cultura de cada um deles e como a comida refletia os valores e as histórias daquele lugar e vice versa. A combinação da diversidade de locais visitados, de pessoas que o chef encontrava, de contextos, de ingredientes apresentados e dos monólogos do apresentador – que colocavam em evidência sua prosa brilhante – tornavam o programa algo muito diferente de qualquer outro programa “culinário”. Uso as aspas, pois, por mais que a comida fosse a desculpa que o programa dava sobre sua existência, ela claramente não era seu enfoque, mas sim aquilo que acontece em volta da mesa.


O primeiro episódio de “Partes Desconhecidas” já faz um belo trabalho em apresentar o intuito do programa. Estando no Myanmar em 2013, quando o país ainda era uma ditadura militar (em 2015 virou uma democracia e em 2021 voltou ao regime ditatorial) Bourdain mostrava ao mundo os abusos da junta que comandava o país ao conversar com prisioneiros políticos recém libertados enquanto comiam uma iguaria local. Mas também mostrava como o povo do país ainda achava maneiras de se divertir mesmo sob o autoritarismo do exército ao se encontrar com uma banda de rock em um bar de rua e ao ir em uma feira de diversões onde homens pulavam de cabine em cabine de uma roda gigante para que ela girasse, já que o país enfrentava falta de energia crônica. Bourdain usava a comida como um pé de cabra para abrir a janela do preconceito de muitos e permitir com que víssemos a beleza de outras culturas, mesmo em seus tempos de dificuldade.


Há um tempo, vi um vídeo e uma matéria do jornal The Free Press, na qual argumentava que Anthony Bourdain teria deixado um culto de personalidade insuportável após sua morte e que teria arruinado a maneira como uma geração come ao “tratar pedir uma sopa como uma missão de resgate” e que “agora todo homem pensa que precisa ir para uma caverna para comer pho”. Em uma pequena parte eu concordo com a crítica. Sim, o culto de personalidade de Bourdain é, como você pode ter achado neste texto, insuportável, e se você não achou nada insuportável até aqui, saiba que existem fãs piores que eu por aí. De resto, essa análise é completamente errônea e demonstra uma falha extrema de interpretação da obra do chef. Falar que ele exotificava comidas e culturas, e que sua dramaticidade era para demonstrar o quão raro e peculiar as culturas que ele interagia eram, é coisa de quem assistiu seus programas de olhos fechados. Seus programas sobrevivem até hoje como estudos do cotidiano de lugares esquecidos por muitos. Em Detroit, ele foi em um drive-thru de Soul Food operado por uma dona de casa para ver como pessoas comuns lidavam morando em uma cidade que tinha colapsado economicamente e socialmente. Em Salvador, ele foi em um desses botecos que críticos de comida paulistanos gentrificariam por serem “autênticos, meo”. No Vietnã, em um dos episódios mais icônicos do programa, ele jantou com o então presidente Barack Obama em um bar comum de Hanoi, porque é nesses lugares que pessoas comuns comem. O ponto dos programas é que nesses lugares: Congo, Mianmar, o interior dos EUA, essas “cavernas reclusas”, como dito no vídeo da autora do artigo, têm comida tão digna quanto a que você come, até porque não existe comida indigna, existe apenas a indignidade da fome. Enquanto estava na Palestina, Anthony não foi para Gaza comer falafel, ele comeu falafel por estar em Gaza.


Bourdain em sua carreira demonstrou o que minha avó e mãe sempre falam para mim: comida é uma forma de transmitir amor. Ele era um novaiorquino progressista, que diversas vezes entrou em monólogos para xingar o Ex-Secretário de Estado Henry Kissinger pelas suas ações no sudeste asiático e era um defensor de imigrantes nos EUA. Mesmo assim, nas vésperas da eleição de 2016 em que Donald Trump seria eleito presidente pela primeira vez, foi para a Virgínia Ocidental, conhecer em refeições o que pensava o povo de um dos estados que viria a ser um dos maiores redutos de apoiadores de alguém que ele detestava, porque acreditava fielmente que dividir o pão, mesmo com quem não se goste, era importante. Inocente? Talvez. Mês passado, em junho, Anthony teria feito 69 anos. Mês passado se fez 7 anos de seu trágico suícidio. Hoje, o mundo, que é cada vez mais dividido e isolado, pode achar consolo em sua obra que preza, acima de tudo, a diversidade e lembrar daquela que, na minha opinião, é sua mais célebre frase que é, em tradução livre: “Se eu defendo alguma coisa, é se movimentar. Para o mais longe que puder, o máximo que puder. Do outro lado do oceano, ou simplesmente do outro lado do rio. O ponto em que você consegue se colocar no lugar de outra pessoa ou pelo menos comer a comida dela é um ponto positivo para todos. Abra sua mente, levante-se do sofá, mova-se.”


Descanse em paz Tony. 

Obrigado pela inspiração.





Autor: Eduardo Loeser

Revisão: Ana Carolina Clauss, Artur Santilli, Giovana Rodrigues.

Imagem de Capa: Huckberry

 
 
 

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