Serviços de streaming alteraram o consumo de séries de televisão, e essa mudança tem um impacto fortíssimo na maneira como esse conteúdo está sendo produzido.
Por mais surpreendente que pareça, a Netflix não inventou o conceito de “maratonar uma série”, apenas o facilitou ao extremo. Segundo Ted Sarandos, co-diretor-executivo e diretor de conteúdo da Netflix, a maior parte das pessoas já assistia a muitos programas sob demanda ou em DVD, vários episódios de uma vez, mesmo antes da introdução da plataforma. Quando o serviço de streaming fez sua estreia no mercado, no começo dos anos 2010, a tendência dos assinantes de maratonar séries longas que haviam sido lançadas por emissoras tradicionais de TV, como Breaking Bad, Friends, How I Met Your Mother, Gilmore Girls ou Grey's Anatomy, tornou-se ainda mais clara.
Outra propensão dos assinantes que ficou nítida nos primeiros anos da Netflix é que os consumidores preferem assistir uma série de cada vez, o que não era possível quando os episódios passavam em dias diferentes ao longo da semana na televisão. Em uma entrevista em 2016 Sarandos explicou que, enquanto se preparava para lançar sua primeira série original, House of Cards, a Netflix considerou que corria o risco de perder espectadores caso os obrigasse a esperar uma semana pelo episódio seguinte. Assim, a plataforma de streaming introduziu um novo modelo de conteúdo ao mercado: ela passou a lançar temporadas inteiras de suas séries de uma vez só.
Esse modelo de produção de série teve um impacto direto na estrutura narrativa dos programas, que antes eram feitos com o intuito de se estenderem por meses e, a partir de House of Cards, passaram a ser produzidos para consumo imediato. Séries cujos episódios podiam ser assistidos de maneira independente, como os dramas criminais (Criminal Minds, Law and Order ou C.S.I), dramas médicos (Grey's Anatomy, E.R., House) ou sitcoms (Friends, How I Met Your Mother, The Big Bang Theory) são disponibilizados pelos streamings, mas dificilmente serão produzidos pelas plataformas, que tem uma preferência por séries com um fio condutor claro. Mesmo programas como Game of Thrones e Breaking Bad, que possuíam uma trama contínua, contavam com episódios estruturados com começo, meio e fim, ainda que estes fizessem parte de um enredo mais amplo. Em séries produzidas para streamings, como Stranger Things, por exemplo, os episódios são imediatamente conectados um ao outro, passando a sensação de um filme de oito horas, ao invés de um seriado.
Ao longo dos anos 2010, o conteúdo de streaming alcançou a produção das emissoras tradicionais e eventualmente substituiu esse tipo de mercado. A maioria dos telespectadores mais jovens sequer usa TV a cabo fora da temporada do BBB. Isso não tirou as emissoras do mercado, mas obrigou várias delas a mudarem a forma como distribuem seu conteúdo. Muitas como a HBO, Fox e Disney criaram serviços de streaming próprios e retiraram seus conteúdos de plataformas genéricas, como Netflix ou Amazon Prime. Outras fizeram acordos de distribuição com os serviços de streaming, o que permitiu a expansão dos canais distributivos, apesar da perda de audiência no modelo tradicional. Algumas emissoras, como a norte-americana CW, passaram a produzir parte de seu conteúdo em parceria com outras plataformas, como é o caso da série Riverdale.
Contudo, um efeito inesperado dessa mudança de formato é o da longevidade das séries de TV. A ponderação sobre a renovação de uma série se dava com base em um cálculo entre o custo da produção de cada episódio e a audiência média da série. Assim, programas que mantinham uma audiência e um orçamento estáveis podiam continuar por anos, muitas vezes durante uma década ou mais. Enquanto esses canais lucravam com intervalos comerciais e acordos com operadoras de TV que disponibilizam pacotes de canais, a Netflix e outros serviços de streaming ganham dinheiro com assinaturas, ou seja, seu principal objetivo é não apenas preservar os assinantes que já tem, mas constantemente obter novas assinaturas. Isso gera um incentivo econômico para que as plataformas adquiram conteúdo que já possui uma ampla base de fãs ou produzam conteúdo original que atraia novos assinantes. A renovação de séries é, no geral, muito menos lucrativa para a Netflix do que o lançamento de uma série nova, e muitas acabam sendo canceladas depois de pouquíssimas temporadas. Foi o caso de séries excelentes como Sense8, Everything Sucks, The O.A., Anne with an E, One Day at a Time, The Get Down, Luke Cage, entre outras. Só em 2020, a Netflix cancelou 26 de suas séries originais. Em 2019, tinham sido 30. Essas séries, geralmente mais ricas em termos de qualidade e de diversidade do que muitos dos grandes hits das plataformas, parecem ser as principais vítimas dos streamings.
O investimento que iria para a renovação dessas séries é direcionado para a produção de um conteúdo novo capaz de atrair novos assinantes, como aconteceu com a série The Witcher, baseada no famoso videogame, e com o mais novo hit da plataforma, Sombra e Ossos, baseada em uma saga best-seller de livros que já contava com milhares de fãs ao redor do mundo. Ambas foram projetos de altíssimo orçamento, mas por já contarem com uma "fanbase" ampla e dedicada, eram investimentos seguros.
Esse modelo de mercado afeta também o projeto de séries que não correm risco de cancelamento, como o carro-chefe da Netflix, Stranger Things. Apesar do sucesso estrondoso, a série não passará de cinco temporadas, afirmam os produtores. Não há mais sentido em criar séries que se estendem por sete ou oito anos, como é o caso de tantos clássicos dos anos 90 e do começo dos anos 2000. Grey 's Anatomy, com suas 17 temporadas, é o último suspiro de uma era da televisão que não existe mais. Em termos narrativos, o que isso significa?
Em primeiro lugar, a série tem que ser um sucesso desde a primeira temporada. Isso não dá à narrativa tempo de amadurecimento. Histórias que às vezes precisam de tempo para serem contadas de maneira adequada não recebem essa chance, pois caso não cativem o público em seu primeiro ano, não chegarão muito longe. Em resumo, plataformas de streamings não se arriscam nem investem em potenciais sucessos, apenas em projetos com chance de retorno imediato e com a capacidade de manter esse retorno pelos anos seguintes.
Essa tendência resulta no fim de algumas surpresas que poderiam aparecer ao longo dos anos. Um bom exemplo é o romance de Chandler e Monica, em Friends, que não estava nos planos originais e leva alguns anos para tomar forma. Essas guinadas inesperadas no roteiro, que só são possíveis quando os produtores têm espaço para "ver no que vai dar", são provavelmente algo que ficou na televisão do passado.
Ironicamente, enquanto tantas coisas na forma como se faz televisão estão mudando, outras parecem estar voltando ao seu formato original. O maior exemplo é provavelmente a decisão criativa de alguns serviços de streaming de voltar a liberar episódios de suas séries semanalmente, ao invés de lançar a temporada inteira de uma única vez. A Netflix vinha fazendo isso há alguns anos com séries de menor visibilidade, mas o primeiro serviço de streaming a testar a estratégia com seu carro-chefe foi a Amazon Prime, que optou por liberar a segunda temporada da série The Boys semanalmente. A primeira temporada havia sido liberada de uma vez só, e obteve sucesso imediato de público e crítica. Ainda que a segunda tenha obtido números igualmente altos, a resposta dos fãs ao lançamento semanal foi inicialmente muito negativa. A explicação de Eric Kripke (showrunner) para o novo formato foi que "quando lançamos a série toda de uma vez, as pessoas consomem tudo, ela vira um sucesso por um tempo, e depois cai no esquecimento. [Com os lançamentos semanais], você pode falar a respeito da temporada num geral, mas também sabe que pode ser muito bom analisar as particularidades de cada episódio."
Apesar do estranhamento inicial do público, a estratégia obteve um grande sucesso quando foi implementada pela Disney+. A primeira série Marvel original da plataforma, WandaVision, foi capaz de manter o interesse do público semanalmente, gerando debate e diálogo nas redes sociais entre o lançamento dos episódios e estendendo o sucesso da série por quase dois meses, ao invés de apenas uma semana, como ocorreria caso todos os episódios tivessem sido liberados de uma única vez.
Mesmo com o retorno de algumas tendências, uma coisa ainda é clara: o futuro do entretenimento pertence às plataformas de streaming, e só nos resta observar quais serão os impactos desse novo monopólio no nosso conteúdo.
Por Luiza Castelo
Revisão: Julia Maciel de Rodrigues
Imagem de capa: Reprodução CNET
Estás novas séries lineares são preguiçosas e não geram uma nova geração de fãs. São esquecíveis no momento que terminam. A diversidade chega a ser excessiva e as tornam descartáveis e intragáveis.