ORDEM E REGRESSO
- Erick Martins Rosario
- 9 de ago.
- 6 min de leitura

Nos últimos dias, uma campanha publicitária tornou-se objeto de intenso debate nas redes sociais. Nela, Sydney Sweeney aparece vestindo peças da marca American Eagle, enquanto declara “My jeans are blue”, afirmação endossada com uma legenda de “Sydney Sweeney has great jeans”.
Não demorou muito para que uma parcela do público se atentasse para uma homofonia presente nas frases. É que, no inglês, “jeans” possui um som muito próximo, se não idêntico, a “genes”, de modo que, traduzidas, as frases poderiam ser entendidas como “meus genes são azuis” e “Sydney Sweeney tem bons genes”.
Diante disso, presumia que não precisava me aprofundar muito no porquê afirmar que uma pessoa branca e de olhos azuis tem “bons genes” não deveria ser tido como aceitável – provavelmente, uma mera visita aos livros de História que retratam a Alemanha da década de 30 seria o suficiente. Entretanto, nos últimos anos, esses consensos construídos ao longo de décadas parecem ter alcançado um limite, e mais do que isso: um ponto de virada.
A década de 2010 parece ter sido o ápice do progresso dessas pautas. Foi durante esses anos que, por exemplo, a TV brasileira se abriu para a inclusão de narrativas de minorias em suas telas. Da contratação de âncoras negros nos principais telejornais do país a exibição do primeiro beijo homoafetivo em uma novela das nove, os meios de comunicação hegêmonicos pareciam abrir-se à realidade da população brasileira, incluindo outras vivências para além das Helenas da Zona Sul do Rio de Janeiro.
Já na política, os ventos pareciam seguir para o mesmo rumo. Foi nessa década que o Brasil também elegia sua primeira presidenta da República; dava início a uma política afirmativa para negros, indígenas e pessoas de baixa renda nas universidades públicas; reconhecia o casamento homoafetivo; e, ainda, criminalizava a homotransfobia.
Sob a perspectiva do campo empresarial, a adoção de códigos de conduta cada vez mais éticos também foram necessários. Isso porque não foram poucos os profissionais que tiveram suas vidas amplamente expostas após escândalos revelarem a prática de condutas que não eram mais socialmente aceitas, vide os casos de Justine Sacco, Milton Vavassori, entre tantos outros. Naquele tempo, notava-se um receio das companhias: a manutenção de funcionários “polêmicos” diante de uma clientela engajada socialmente poderia afetar diretamente a lucratividade de seus negócios.
Mas, então, o que aconteceu de lá para cá? Como saímos de uma comunidade em que o repúdio a executivos racistas e misóginos acarretava em suas demissões para uma em que se torna aceitável que marcas façam campanhas de publicidade que aludam ao eugenismo? De nada valeu o avanço das últimas décadas?
Essas não são perguntas com respostas fáceis: suas razões passam por questões multifatoriais e que são de difícil determinação. Ainda assim, arriscaria apontar para três motivações principais: (1) o passado não era tão progressista; (2) o crescimento das redes sociais; e (3) a alteração nos princípios que guiam a ordem econômica ocidental.
Assim, mesmo que tenhamos tido notórios avanços nas pautas igualitárias nas últimas décadas, sendo a Constituição Federal de 1988 um de seus maiores marcos, não penso que, em algum momento, tenhamos tido uma sociedade que fosse realmente progressista. Isso fica evidente quando comparamos a série histórica do Índice de Conservadorismo Brasileiro, pesquisa realizada pelo Ipsos-Ipec e que objetiva caracterizar a população brasileira como tendo um perfil mais progressista ou conservador.
A partir de questionamentos ligados às “pautas de costumes”, como casamento homoafetivo, legalização do aborto e desarmamento, a pesquisa traça um indíce de 0 a 1 – de forma que quanto mais próxima de 0, mais progressista é a população; e, quanto mais próxima de 1, mais conservadora é. Nesse sentido, curioso observar que, em 15 anos de pesquisa, o perfil ideológico brasileiro pouco oscilou: saindo de 0,657 em 2010 para 0,652 em 2025.
Por que parece, então, que o campo progressista sofreu uma queda tão grande quando olhamos no retrovisor? A expansão das big techs, empresas administradoras das redes sociais, parece ser um outro bom palpite. Em A máquina do caos: como as redes sociais reprogramaram nossa mente e o mundo, o jornalista Max Fisher aponta que, na última década, as plataformas digitais passaram a impulsionar matérias de ódio, violência e de falsidades no ambiente digital, visando uma ampliação do seu lucro a partir de um maior engajamento de seus usuários.
Paralelamente, um estudo recente demonstrou que o algoritmo do TikTok tem recomendado vídeos misóginos a homens adolescentes. Divulgado em 2024 pela University College London e a Universidade de Kent, o relatório observou que a oferta desses vídeos chegou a 56% entre os vídeos recomendados no 5º dia de pesquisas nesse público.
Isso demonstra como as redes sociais têm sido utilizadas não apenas para manter valores conservadores na sociedade, mas também para amplificar o seu alcance por meio de impulsionamentos algorítmicos. É por isso, inclusive, que parcela da população tem a também falsa impressão de que está em um período severamente mais conservador do que o passado, enquanto, na realidade, esse seja apenas o conteúdo mais promovido e entregue aos usuários pelas redes sociais.
E essa razão mercadológica por trás dos algoritmos das big techs talvez explique também o “novo” princípio que guia nossa ordem econômica: o individualismo ainda mais selvagem. Se até os anos 2010 o neoliberalismo se travestia de uma camada progressista, cooptando movimentos sociais para a expansão de seus mercados, a nova direita repudia com veemência qualquer aliança com tais populações. As grandes companhias do século XXI não veem mais seu lucro ameaçado por uma clientela progressista: ao contrário, veem ele impulsionado ao abandoná-la.
Não seria por menos a motivação de Mark Zuckerberg ao anunciar que a Meta reduziria a moderação dos conteúdos publicados em todas as suas redes sociais, permitindo inclusive “acusações de anormalidade mental relacionadas a gênero ou orientação sexual”. Mais uma vez, o engajamento do ódio gera lucro e, com a ascensão da nova direita nas eleições de todo o Ocidente, o público já deu o seu recado.
Mas, afinal, estamos mais conservadores? Ainda luto em acreditar nisso. Na realidade, penso que a sociedade só encontrou uma nova forma barulhenta de demonstrar seu conservadorismo. Boa parte dos avanços conquistados da última década apresentados neste texto não advêm de uma mobilização coletiva de toda a população, mas sim da pressão de grupos minoritários sobre a Justiça brasileira, sob a forma do Supremo Tribunal Federal.
Assim, ao dependermos da função contramajoritária da Suprema Corte para o avanço dessas pautas, por si só já demonstramos que não se tinha uma sociedade majoritariamente progressista. Outra prova disso é que, enquanto todas as referidas conquistas ocorriam, outros debates intimamente ligados a essas questões – como classe e trabalho – foram travados, quando não precarizados.
Dessa forma, vale avaliar se de fato vive-se em um período de regresso em pautas que já eram tidas como “consenso” ou apenas tem-se a ordem das coisas se apresentando como ela sempre foi: avessa a progressos.
Autoria: Erick Martins Rosario
Revisão: Ana Clara Jabur
Imagem da capa: People
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Referências
BRASIL DE FATO. O fim do neoliberalismo “progressista”. Brasil de Fato, 27 jan. 2017 (atualizado em 1 fev. 2020). Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2017/01/27/o-fim-do-neoliberalismo-progressista/. Acesso em: 06 ago. 2025.
GLOBO, O. Executivo é demitido após publicar comentário misógino no Twitter. O Globo – Brasil, 12 mar. 2018 (atualizado em 13 mar. 2018). Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/executivo-demitido-apos-publicar-comentario-misogino-no-twitter-22480842. Acesso em: 06 ago. 2025.
GLOBO, O. TikTok ajuda a ‘normalizar’ misoginia entre meninos adolescentes, mostra estudo. O Globo – Mundo, 9 fev. 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2024/02/09/tiktok-ajuda-a-normalizar-misoginia-entre-meninos-adolescentes-mostra-estudo.ghtml. Acesso em: 06 ago. 2025.
IPSOS-IPEC. Pesquisa Ipsos-Ipec indica recuo no Índice de Conservadorismo do Brasileiro, sobre as pautas de costumes em 2025. Ipsos, 1 ago. 2025. Disponível em: https://www.ipsos.com/pt-br/indice-de-conservadorismo-brasileiro-2025. Acesso em: 06 ago. 2025.
Ipsos
JORNAL DA USP. Meta permitirá discurso de ódio para aumentar lucros, alertam especialistas da USP. Jornal da USP – Diversidade, s. l., s. d. Disponível em: https://jornal.usp.br/diversidade/meta-permitira-discurso-de-odio-para-aumentar-lucros-alertam-especialistas-da-usp/. Acesso em: 06 ago. 2025.
PÚBLICO. Sydney Sweeney volta a causar polêmica em anúncio American Eagle. Público, 30 jul. 2025. Disponível em: https://www.publico.pt/2025/07/30/impar/noticia/sydney-sweeney-volta-causar-polemica-anuncio-american-eagle-2142273. Acesso em: 06 ago. 2025.
UOL. Executiva é demitida por postar piada racista no Twitter. UOL – Empregos e Carreiras, 23 dez. 2013. Disponível em: https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2013/12/23/executiva-e-demitida-por-postar-piada-racista-no-twitter.htm. Acesso em: 06 ago. 2025.
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