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Na tangente



Enquanto esperava o site da BlackTag carregar, fiquei lembrando da semana na qual realmente comprei o ingresso que pretendia encontrar, lá bonitinho, esperando por mim. No meio de março…de 2020. Fazia quase dois anos que, na semana da GVjada, numa sexta-feira normal saindo da prova de Microeconomia para almoçar na padoca, eu e o resto da turma recebemos um email que mudou tudo. Ali constava que pararíamos as aulas por uma semana, devido à recomendação das autoridades de saúde, já que o tal do vírus que todo mundo estava falando tanto, aparentemente, tinha chegado ao Brasil. É óbvio, hoje olhando para trás, que ele já tinha chegado há muito tempo. Na cabeça ainda quente do sol carnavalesco de fevereiro, no entanto, foi uma grande surpresa. A partir daí, a “postergação” de uma festinha que todo mundo estava tão animado para ir tornou-se, com toda certeza, uma mera gotinha no oceano de problemas que seguiram.


Essa reflexão nostálgica foi extremamente desconfortável. Lembrar do sentimento de aprisionamento e impotência, que invadiram o conforto do meu lar no resto de 2020 e boa parte de 2021, não é nada animador. Na verdade, é um trauma, mais agravado ainda pelo reconhecimento do sofrimento intenso das milhões de outras pessoas que foram (e ainda são) muito mais afetadas que a classe média e alta por todo esse apocalipse que vivemos nos últimos tempos. O cenário de The Walking Dead que prevalecia nas ruas, as máscaras escondendo os rostos de todo mundo, os infindáveis rituais de álcool em gel... só alguns exemplos (pequeninos) das mudanças que, de certa forma, desumanizaram nosso cotidiano.


Mesmo com todo o caos que permanece, contudo, me encontrei ali, olhando para o ingresso de uma festa grande que vai acontecer. Uma junção de várias pessoas em espaço público com o puro objetivo de entretenimento. E mais impressionante: ela pode, com permissão das autoridades, finalmente acontecer. Honestamente, ainda parece mentira. A população vacinada? Uso compulsório de máscara sendo revogado? O sentimento de desesperança imperou por tanto tempo que me sinto num programa de pegadinhas, alguém vai aparecer com câmeras e falar que devo voltar pra caverna que fiz do meu quarto..., mas não é pegadinha. A pandemia não acabou, só tomou novos rumos que, progressivamente, nos permitem voltar à vida real. Não tenho outra expressão para descrever essa percepção senão "realmente estranha".


O que mais me intriga é a vivência que temos agora, de um período de transição. Um meio-termo entre a realidade restrita da sociedade que vive, ainda, uma calamidade na saúde pública e a paradoxal volta do ritmo perdido no começo do ano passado. Estamos claramente num limbo bizarro. A ida a restaurantes dispensou o cenário de mesas vagas para manter distância entre os clientes. Caramba, dá pra tomar uma cerveja com os amigos no bar! É cômico (e trágico) que isso seja uma conquista, mas não vejo um substantivo melhor para descrever tais “novidades”. Para uma boa maioria, são cenas que não imaginávamos, lá em junho de 2020, que veríamos tão cedo. Para mim, tiveram momentos de achar que nunca mais iriam voltar... e voltaram! Podemos, com segurança, sair de casa, mas existe, em paralelo, um contínuo sentimento de hesitação perceptível nas pessoas, eu inclusa. Ao mesmo tempo que nos empolgamos com tal retomada, não há uma absoluta certeza de que devemos abandonar protocolos, provavelmente porque eles se tornaram nossos melhores, digo, piores amigos durante tanto tempo.


Nos lugares públicos, percebo a diversidade do movimento de cada um para fora do forte de concepções pandêmicas que construíram no último ano. Alguns saem correndo pelo portão, outros dão passos cautelosos e logo voltam para dentro. Faço uso da licença poética com essa metáfora peculiar, mas creio que seja uma boa forma de descrever as máscaras no queixo, a libertação da culpa de entrar com o sapato sujo de rua em casa sem espirrar álcool na sola e tantos outros costumes e sensações confusas e talvez até irracionais que regem tal fase de transição. A verdade é que esse momento constitui um grande desafio sociocultural, e é perfeitamente compreensível que razão e lógica não estejam em alta. Tomar a vacina e perguntar se já dá pra lamber corrimão é fácil, mas efetivamente “lamber o corrimão” é um passo muito maior que enfrenta barreiras complexas.


A efetividade da vacina e o reconhecimento da superação do estado caótico em que estávamos antes não são o problema, pelo menos não para a maioria. A ciência é, mais que a salvação da própria pandemia, um grande alicerce do retorno ao cotidiano. Contudo, por mais promissores que se mostrem os números, há camadas profundas de hábitos e traumas que imperaram nos últimos tempos. O baque no “normal” causado por esses foi tão grande que desenterrar os costumes efetivamente normais é, e continuará sendo por algum tempo, um trabalho complicado. Mexer com hábitos, conceitos e vivência em sociedade sempre é complicado e o Coronavírus conseguiu mexer, como efeito colateral, nos três. Pandemia para a saúde, economia, política e cultura.


Já ouvi várias vezes “não sei mais socializar” seguido de risos, mas, no final das contas, é a mais pura verdade. Ninguém mais sabe socializar direito. Vivemos praticamente dois anos em telas de computadores e smartphones. É, mais que normal, esperado estarmos confusos com protocolos sociais. Beijo no rosto ou só um aceno? Será que dá pra dividir o copo com o amigo? São questões que podem não gerar um estado de dúvida extrema, podem até só rapidamente passar pelo subconsciente de alguns, mas estão ali e transparecem. As reuniões entre amigos, contudo, evoluem para eventos cada vez maiores, acompanhando, é claro, o progresso da pandemia. E nós ficamos no meio do fogo cruzado entre o desejo profundo e compreensível de voltar a viver plenamente e o medo de desrespeitar o padrão seguro que nos foi imposto, mas que, no final, também nos salvou.


É realmente uma situação extraordinária que (espero) provavelmente não voltará a acontecer tão cedo. Ao mesmo tempo, é um limbo que inclui a esperança; estamos no meio do caminho para um amanhã que fica menos apocalíptico a cada dia. Escrevi, recentemente, um texto sobre o sentimento de volta às aulas que, no EAD, compreendi nada ter de “volta” exatamente pela descaracterização de retornar à faculdade provocada pelo ambiente virtual. Comparei esse sentimento a andar em círculos, o qual acabou sendo o título da crônica. Fico feliz que a confusão dos costumes que aqui refleti sobre, o não saber mais como se portar socialmente e o que podemos ou não fazer, sejam parte de um desvio desse círculo que mais parece um buraco negro. Estamos escapando dele pela tangente, uma tangente complicada de chegar e de se manter. Sob a intensa força gravitacional que comanda a órbita pandêmica, vamos, inevitavelmente, ser puxados algumas vezes de volta para o círculo. Com persistência, contudo, creio que podemos escapar pela tangente. A melhor forma de lidar com tudo isso é, na minha visão, aceitar o estranho caminho que nos leva a ela, aos poucos retomando as anotações das aulas da nossa própria memória sobre como pedir o litrão no bar e dançar no rolê com os amigos.


Autoria: Loreta De Rossi Guerra

Revisão: Beatriz Nassar



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