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NADA MUDA NA NOITE DE ANO NOVO?



Faltam vinte dias para o fim de 2020.


A essa altura do campeonato, estamos saturados de piadas batidas sobre o quão ruim foi esse ano. Já esgotamos o estoque de comentários sobre os desastres de 2020, que se estendem desde uma pandemia que colocou sistemas de saúde em crise ao redor do mundo ao assassinato de George Floyd e tantos outros homens e mulheres negros e negras que alavancaram ondas de movimentos globais por justiça e igualdade racial. No Brasil, além da crise sanitária e da violência racial, enfrentamos desastres ambientais imensuráveis e um segundo ano de governo Bolsonaro que veio acompanhado de novos ataques à ordem democrática e aos direitos fundamentais. Para finalidade cômica, caracterizamos essas tragédias como sintomas de 2020. Elementos de um grande pacote de desastres que ocorreram em um espaço de 365 dias - mas a maior parte desses problemas já estava presente muito antes de 1º de janeiro e, infelizmente, continuarão presentes depois que o relógio der meia noite no dia 31 de dezembro. Citando U2, "nothing changes on New Year's Day".


É importante destacar que terminamos o ano com algumas vitórias, sendo a maior delas possivelmente o começo da campanha de vacinação no Reino Unido. Algumas das vacinas mais importantes da história - como contra a varíola, tétano, influenza e febre amarela - levaram anos, quando não décadas para serem produzidas e disponibilizadas à população. Dessa vez, após os primeiros casos de COVID-19 relatados no final de 2019, cientistas levaram apenas algumas semanas para identificar o vírus e sequenciar seu genoma. Testes estavam disponíveis após poucos meses e, se tudo sair como esperado, teremos vacinas eficazes à disposição do público já nos primeiros meses do ano que vem. A derrota de Donald Trump, nas eleições norte-americanas, foi outra entre as conquistas. Uma possível vitória contra a onda antidemocrática na qual o atual presidente dos Estados Unidos parece ter sido um símbolo nos últimos quatro anos.


Apesar disso, os problemas de cunho social e político com os quais lidamos em 2020 nos acompanharão em 2021. Joe Biden e Kamala Harris estão muito longe de serem uma resposta ideal ao avanço do conservadorismo, nos Estados Unidos ou no mundo, e os resultados do começo da vacinação serão lentos. Segundo uma análise do jornal The New York Times, uma vacina com 95% de eficácia, como é o caso da Pfizer, levará quase seis meses para imunizar uma parcela significativa da população a ponto de conter o avanço do vírus. Mesmo que a vacinação prossiga no ritmo esperado, o jornal estima que cerca de 10 milhões de americanos ainda poderão contrair o vírus entre janeiro e julho, e mais de 160 mil ainda podem morrer por conta da doença. No Brasil, ainda teremos mais dois anos de governo Bolsonaro pela frente. E ainda assim, mesmo sabendo que não é nada além de marco simbólico de passagem do tempo, que nada será diferente depois da meia-noite, espero que todos possamos celebrar o final de 2020.


O conceito de celebração do ano novo apareceu há cerca de quatro mil anos, na Mesopotâmia. As festividades consistiam em banquetes e rituais na época do equinócio vernal (fim de março). O ano novo chinês, que ocorre em meados de fevereiro, é celebrado há mais de três mil anos. O Rosh Hashanah, que acontece entre setembro e outubro, já era celebrado em 600 a.C.. O ano novo islâmico passou a ser celebrado em 622 d.C. Há séculos, famílias e amigos ao redor do mundo se mobilizam para celebrar o começo de outro ano com tradições das mais diversas, geralmente relacionadas a contemplar o ano que acaba e fazer desejos de boa sorte, prosperidade e amor para o que virá.


No Brasil, escolhemos a roupa de baixo para fazer desejos para o próximo ano e pulamos ondinhas. Muitos países de língua espanhola têm o costume de comer doze uvas na virada do ano, para pedir por doze meses de prosperidade. Na China, pode-se presentear pessoas queridas com um hongbao - envelopes vermelhos com dinheiro que simbolizam pedidos de boa sorte e prosperidade para o ano novo. Essas são apenas algumas das centenas de tradições usadas ao redor do mundo para celebrar a virada do ano, independentemente da data.


Para o psicólogo David Ropeik, esse apego ao simbolismo de um ano novo está ligado a dois desejos profundamente arraigados no ser humano: o de sobrevivência e o de uma certa sensação de controle. Celebramos, primeiro, a passagem do tempo e o fato de que estamos vivos para poder vê-lo passar. Assim como ocorre com aniversários, o Ano Novo nos permite celebrar o fato de termos sobrevivido aos últimos 365 dias. Já resoluções de ano novo e rituais de boa sorte nos permitem alguma sensação de segurança e controle sobre um futuro incerto e incontrolável. Não apenas celebramos ter chegado até onde chegamos, mas desejamos que o que vier a seguir seja melhor do que o que foi até agora. Para as pessoas que têm o hábito de fazer resoluções – ainda que essas geralmente não durem uma semana – o Ano Novo representa uma possibilidade de obter algum controle sobre a própria narrativa - fazer uma promessa de mudança para si mesmo. Mesmo que por um segundo, a virada do ano simboliza a possibilidade de recomeço, de olhar para o que deu errado, respirar fundo e recolher energia para fazer melhor no ano que vem. São rituais de esperança. Rituais de promessa.


Esse ano tem um peso diferente. Por mais que as piadas tenham ficado batidas, a verdade é que todos queremos e precisamos que 2020 acabe. Simbolicamente, precisamos do encerramento e da motivação renovada para continuar lutando as mesmas batalhas no ano que vem. E muito além do peso simbólico, é inegável que 2020 trouxe mudanças radicais para a humanidade como um todo. Nas palavras de Yuval Harari, "Medidas emergenciais de curto prazo se tornaram parte da nossa vida. Essa é a natureza das emergências: elas aceleram processos históricos". Para o bem ou para o mal, o mundo terá mudado depois de 2020, em termos de avanços tecnológicos e transformações sociais. Com algum esforço, talvez sejamos capazes de tirar de todo esse sofrimento alguns pontos positivos, como por exemplo um reconhecimento reforçado da importância de sistemas de saúde pública, como o SUS, ou a instituição de novos projetos de ação afirmativa e combate da violência policial.


A virada do ano não será nenhum passe de mágica, mas ainda é um bom momento para observar as tragédias e os erros cometidos no passado e adentrar o ano que vem com interesse e motivação suficiente para continuar lutando para ratificá-los. Vamos celebrar ter sobrevivido por mais 365 dias, e nos preparar para lutar pelos 365 que virão a seguir.


Faltam vinte dias para o final de 2020. Quais serão as nossas promessas para 2021?



Texto por: Luiza Castelo


Imagem da capa: BBC

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Fontes:





https://www.psychologytoday.com/us/blog/how-risky-is-it-really/201312/why-we-really-celebrate-new-years-day


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