As prateleiras encantavam Cecília. Ordenadas por marcas, cores, sabores, tudo em seu devido lugar, nem um resquício de desordem, vidros de mostarda e latas de conserva imersas em inabalável paz. Encontrava-se em transe quando ia ao supermercado, deslizava pelos corredores com seu carrinho, a música ambiente marcando seus movimentos, em sua onírica valsa. O ambiente a acalmava, como se a abundância de alimentos a protegesse de algo, a acomodasse em um lugar seguro e confortável. O supermercado era a certeza de uma outra vida.
"Eu sei o que você fez no verão passado. Eu sei o que você fez no verão passado. Eu sei o que você fez no verão passado", repetia, no seu ouvido, um antigo amigo seu, enquanto desciam a represa em um pequeno barco. Ela acordou assustada e, por 5 segundos, achou que deveria se preocupar com o que tinha acabado de sonhar. Era apenas o título de um filme antigo e a imagem de uma represa, ela constatou – não havia o que se preocupar.
Sua refeição da manhã passou a ser chá de camomila. De manhã, bastava algo quente para beber, principalmente em dias frios, nos dias em que o sol não aparece. Estes eram a maioria, e Cecília não se lembra da última vez que viu o sol. Nos dias ensolarados de outrora, gostava de pegar a sua bicicleta, e dar voltas no parque, até cansar e se deitar na grama para ler um livro.
Deitar na sombra da árvore, ver o sol do fim da tarde ir se acomodando nas superfícies dos prédios, tudo isso era a promessa de uma outra vida, daquela vida. Cecilia buscava aproveitar o leve vento tocando seus cabelos, o clima ameno, mas aquela imagem ecoava alguma sensação. Uma sensação inalcançável, até utópica? Ou uma sensação perdida, impossível de recuperar?
Trabalhando de casa, era paisagista. Passava o dia criando, analisando, executando projetos, sempre determinada, sempre intocada, em paz e em silêncio. Só se ouvia as delicadas notas do jazz que ressoava em seus fones. Tomate, cebola, pepino, pimentão, alho, pão, vinagre, azeite e água; o almoço seria gazpacho. Enquanto lentamente posicionava a colher do prato na sua boca, observava o dia lá fora. Oito graus, clima nublado, sem previsão de chuva.
02:18 da noite, e tinha acordado de novo. Droga. Sabia que ia precisar tomar o remédio. Colocou a água na caneca, caminhou da sala até a varanda, e ficou observando a noite. A inversão térmica invadia os céus, as ruas, os prédios. Imagens desbotadas se sobrepunham. Uma melodia dissonante e ininterrupta. As ondas se intensificam; não vamos dormir esta noite.
No caminho da quieta e antiga biblioteca da faculdade, na qual ia passar as tardes livres lendo, encontrou Clarice. Há quanto tempo não se viam? Dois meses, não mais do que isso, apesar de parecer mais. Cumprimentou rapidamente sua amiga, a qual também seguiu seu caminho, estava indo pro hospital. O que é?, ela perguntou. Não é nada, apenas um desconforto na perna, respondeu. Estou bem, obrigada por perguntar.
Cecília tentava se concentrar no seu livro sobre esquizoanálise, mas não queria. Se levantou e começou a caminhar lentamente pela vazia biblioteca, observando de relance aqueles livros que não significavam mais nada. Entrou na sala da bibliotecária, uma antiga amiga sua, com a chave que guardava. Arquivos, papéis, um antigo computador, desprovidos de valor, eternos, vazios. Olhou para a sua reflexão no vidro e nada sentiu; não estava bonita, não estava feia. Estava como sempre: cabelo curto, olhos negros, pele macia. Começou a bocejar, o sono bateu, e dormiu no sofá.
Era noite, e tinha acordado no seu quarto. 00:26 da noite, estava com muita fome e não tinha comido. Cecília era ótima cozinheira, gostava sempre de preparar pratos elaborados, mesmo que só para ela. A sorte dela é que tinha um cordeiro guardado, o qual preparou rapidamente, acompanhando molho de hortelã. Seu passatempo favorito das madrugadas era assistir filmes – de qualquer época, de qualquer gênero, com qualquer ator. Eram seus últimos laços com a realidade material, a vida das coisas e, por algumas horas, se sentia bem de novo
03:21, decidiu caminhar na rua. Estava frio e ventando, três graus na calçada. Foi até o supermercado, não precisava comprar nada mas queria estabelecer uma rota para não andar sem rumo. Ao virar a rua, se segurou pela parede. Tinha visto eles de novo, aqueles homens armados com fuzis, que rondavam a cidade pela noite. Eles se vestiam como soldados, capacetes, óculos escuros, colete à prova de balas, sempre andando em duplas. Deu meia-volta e voltou para casa, desejando encontrar Clarice no seu sofá, em seu leve sono.
Daquele encontro em diante, sempre passava na entrada da universidade, tentando encontrá-la novamente. Às vezes não tinha nada pra fazer, nenhum livro pra ler, só se sentava no banco esperando-a aparecer. Um dia, enquanto olhava para a árvore, ela apareceu. Um sobretudo preto, um batom vermelho, um belo par de brincos: essas eram as coisas que importavam. Como você está?, perguntou extasiada. Bem. Estou indo ao supermercado, quer ir comigo? Claro, ela respondeu.
Seus encontros se tornaram mais frequentes. Na casa de Cecília, conversavam, cozinhavam, viam filmes juntas. Ela era arquiteta, e também morava sozinha. As duas trocavam olhares tenros e curiosos, um rapport suave escondido em um mundo de gramáticas brutalistas. Clarice tinha trazido naquela noite batatas cozidas com porco; esse prato lembra muito a minha mãe, disse ela. Ela sempre cozinhava para mim e para meu irmão, e, depois que tirava do forno, tomava um gole de cerveja escura. Eu lembro sempre da cerveja porque ela sempre pedia para eu pegar na geladeira, era uma garrafa igualmente escura com alguns detalhes de cor laranja.
Eu também lembro bastante da minha família, disse Cecília. Era meu pai e meu irmão, não lembro tanto das refeições porque ele era péssimo cozinheiro, peguei aversão à frango por causa dele, mas lembro sempre da gente no sofá, vendo as notícias. Depois da televisão jogávamos algum jogo, geralmente cartas, e depois ele colocava a gente pra dormir contando alguma história.
Essas eram as cinzas: imagens já queimadas, vidas destruídas, relatos sem futuro. Comida não era mais afeto e carinho, as artes eram inúteis. Nós nos agarramos ao quê? À civilização? Sobravam apenas as imagens do abandono, do exílio, da inacessibilidade. Restaurantes vazios, já desistindo de esperar uma clientela. Salas de cinema projetando filmes malditos, imagens de um mundo que não existe mais. As igrejas ecoavam sermões em looping, os supermercados continuavam abastecidos. E Cecília era paisagista.
Hoje o dia amanheceu chovendo, Cecília precisava visitar seu irmão. Entrando no hospital psiquiátrico, cumprimentou a simpática enfermeira que sempre estava na porta, tomando café. Ala 58, é por aqui, senhora. "Cecília", disse ele, "eu vi um fantasma.". Seu cabelo loiro estava engenhosamente cortado e seus dentes, bem cuidados. Conversaram por alguns minutos; ela perguntou da comida ali, disse que era gostosa. A sopa de legumes é a minha favorita, disse ele. Que bom, respondeu. Então, preciso ir. Fica bem, ok? Te amo. Também te amo, ele respondeu, enquanto via a irmã saindo pela porta.
Chegando em casa, se sentou no sofá. No céu brumado, jatos cinzas voavam em formação. Só conseguia pensar nele, e em Clarice. E também no ônibus pegando fogo na rua, que avistou quando voltava do hospital. E nas buzinas de carros que disparavam, aqueles carros antigos enfileirados tocando sem parar. E na outra enfermeira que havia a reconhecido imediatamente no hospital, mesmo sem a conhecer. Sentada naquele sofá vermelho, imaginava muitas coisas. E pensava nela.
Naquela noite, Clarice tinha trazido carne cozida e vinho tinto. Enquanto elas montavam a mesa e conversavam sobre viajar de trem, a sirene tocou. Uma sirene estridente, violenta, que se escutava em toda a cidade. Não era um estrondo, algo mais misterioso se escondia ali. A sirene continuou por 3 minutos, até parar. Aquela noite estava fria, precisavam comer para esquentar. Muitas taças de vinho, muitos comentários sarcásticos mas não cínicos, e histórias sobre montanhas, aparições, e indústrias decadentes. O vinho fez efeito, era gostoso, suave e altamente etílico, e quando viram estavam dançando pela sala, cantando, rodando…
And he was alright
The band was all together
Yes, he was alright
The song went on forever
Yes, he was awful nice
Really quite outta sight
And he sang all night long…
Dançar cansa. Sentadas no sofá, juntas, olhavam para o céu. Sem jatos, sem estrelas, sem deuses. A música voltou, notas tenras de piano invadiam a sala, uma canção tranquila com uma delicada bateria no fundo, não era hora de movimentos bruscos, o trompetista entrava introduzindo seu instrumento com calma, sem pressa. Não havia violência naquela sala, não havia medo, nenhuma afetação. Apenas dois sonos tranquilos e indefesos, sem o que se preocupar; naquela sala de estar, tínhamos tudo.
Quando acordou, Clarice não estava mais lá. Foi seguir a vida, voltou naquele projeto chato que aquele cliente chato havia encomendado, preparou chá de hortelã. Mas não queria seguir a vida. Foi para a biblioteca, em busca dela. Nada encontrou. Ligou para ela e também não teve resposta, foi ao apartamento dela e ele estava vazio, desocupado, desmobiliado, todo pintado de branco. Se contentou em não ter resposta.
Outro dia, chovia novamente. Ela olhava as gotas que se acumulavam na janela, o software no computador, a luz que vinha da luminária. De repente, ouviu um forte estrondo vindo da sala. Alguém batia muito forte à sua porta, ininterruptamente. Em desespero, sacou uma faca da mesa, a qual posicionou na sua mão direita. Abriu a porta e não tinha ninguém. Suspirou e fechou a porta.
Depois do almoço, cochilou no sofá. O mesmo amigo da represa apareceu, dessa vez em uma praia de restinga, acompanhado por outro amigo. Os três estavam sentados na areia, observando um avião passando com uma faixa escrita "O esquecimento os espera...", enquanto tomavam sorvete de baunilha. Novamente, acordou desesperada, tendo que se certificar que aquilo era apenas um sonho. Ligou e mandou mensagem de novo para Clarice, de novo sem resposta. Apenas tinha de lembrança uma foto que havia tirado das duas na noite passada, ambas sorrindo, ela com sua adorável saia vermelha, combinando com o sofá.
Mais um jantar sozinha, dessa vez o prato era berinjela assada. Tinha terminado o projeto, tinha terminado seu livro de esquizoanálise, e estava sem o que fazer. Decidiu ir caminhar de noite, quatro graus lá fora, repetindo a rota: ir até o supermercado. As ruas estavam desertas, frias, solitárias. A sirene não tocava mais. Enquanto virava a rua do mercado, escorregou e caiu no chão, batendo a cabeça, vendo seu colar quebrando lentamente, enquanto seus olhos lentamente se fechavam.
Os jatos pararam, os homens haviam morrido. Sangue corria nas ruas, inundando os prédios. Livros queimavam em fogueiras nas avenidas, e a fumaça subia aos céus, fugindo do mundo. Depois, tudo havia evaporado, formando uma bela nuvem rosa no céu, a paisagem voltando a ser laranja e azul. Em um supermercado saqueado, as duas dançavam uma suave valsa, à moda clássica, enquanto lentamente se distanciavam.
Autor: João Pedro Fernandes
Revisor: André Rhinow
Imagem de capa: Mountain after a Shower, Taikan Yokoyama (1940) / Reprodução: Google Arts & Culture
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