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NINGUÉM É NORMAL

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Sabe o sentimento ardente de querer tanto alguém que você começa a pesquisar simpatias no Tik Tok, considera ir numa taróloga (mas não vai, por que vai que ela diz que não vai rolar?), fica sonhando acordada como uma idiota ao invés de ler um dos livros da sua pilha de comprados porque estava na promoção na Amazon, ou pior, torra os neurônios caçando a conta privada do Instagram de amigos, atrás de fotos daquela pessoa em festas das quais você não foi convidada. Você se sente como Annie Ernaux em “Paixão Simples”, livro que, você percebe agora, está na hora de reler. Urgentemente. Esse sentimento é, para mim, um dos piores. Tenho quase certeza de que sou uma pessoa obsessiva, uma lunática, alguém que nas vidas passadas foi queimada em praça pública pela Inquisição. Conversar com amigas e amigos próximos me faz perceber que, na verdade, isso é normal. O paiero compartilhado, a fumaça fugindo com o vento, o entrelaçar dos dedos dormentes, o toque desnecessário no momento mais inesperado e o frio que vai embora. Nunca é casual.


Se você já passou pela mesma espiral de culpa e desejo ou se pensou naquele amigo mais intenso, entende do que estou falando. Nenhum relato é estritamente pessoal. Se você tem amigos, se vocês têm mais de quinze anos, se vocês bebem esporadicamente e se vocês têm uma saúde mental frágil ou uma autoestima de merda — então é inevitável que tudo aquilo que você pensa e produza tenha fragmentos de desabafos nos corredores da faculdade, de mensagens na madrugada e brigas de bêbado. Sendo esta última aquela em que ambas as partes começam brigando porque estão com sono e de saco cheio, choram, depois dizem que se amam incondicionalmente, depois começam a contar sobre a necessidade por validação acadêmica, o divórcio dos pais ou sobre aquela pessoa que você nunca chegou a ter algo — experiências traumáticas, no geral. 


Acredito que esses bonding moments sobre uma mesa encardida do McDonald 's mais próximo são universais, ou eu espero que sejam, admitindo algumas variações nas circunstâncias. Afinal, nenhuma experiência é individual, justamente porque somos seres comunicativos que gostam de contar histórias e formar conexões a partir delas. Nos sentimos amarrados uns aos outros por interesses e amizades em comum, assim como pelas pessoas que não gostamos e por aquelas que já beijamos. No fundo, não somos tão diferentes assim. Ninguém é normal. 


Posição social, genética, música favorita, identidade de gênero, guarda-roupa ou estilo de vida, estas e mais uma quantidade infinita de experiências humanas delimitam a nossa noção de normalidade – conceito criado por uma maioria que se acha o suficiente para acreditar que suas escolhas são as melhores escolhas, que sua vida é correta, exata, um exemplo a ser seguido. Essa maioria não é nem homogênea nem definida, porém certos padrões se repetem por motivos que podem ser considerados válidos por alguns ou, como eu acredito ser na maioria dos casos, efeitos de pura caretice e preconceito. O mesmo sistema que criou a narrativa da caça às bruxas na Idade Média e estigmatizou a AIDS nos anos 80, é responsável pela xenofobia dos dias de hoje. 


Quem não é normal? Aqueles que sofrem de saúde mental? Pessoas com deficiência? Com déficits cognitivos? Pessoas que têm alargador nas orelhas? Pessoas com tatuagens no rosto? Transsexuais, prostitutas, noias, não-binários, autistas, anarcocapitalistas, feministas radicais que queimam sutiãs, bolsonaristas que fazem manifestações na Paulista com a bandeira de Israel, incels, fãs de kpop, nado artístico, livros de auto-ajuda, pessoas que amam “Donnie Darko” ou pessoas que odeiam “Donnie Darko”? A resposta é: depende do ponto de vista. Somos reféns da percepção do outro – um ser distante, alguém com quem você tromba na estação de metrô por acidente, atravessa a faixa ao lado quando o sinal fica vermelho ou participa das mesmas aulas, com criação e cultura distintas; ou alguém próximo que te afoga com expectativa – quanto ao que é normal ou anormal, e portanto, certo ou errado. 


A pressão por ser normal –  o “normal” que idealizamos desde pequenos quando nos sentimos deslocados pela primeira vez, como se flutuando em torno do próprio corpo, escutando a conversa alheia e ressentindo as risadas – é opressiva. Nós conseguimos mesmo, com o passar dos anos, conhecer a nós mesmos? Temos liberdade para isso? Ou nos limitamos a explorar dentro das margens do esperado, sem nunca ousar ofender o “normal” com o original? Eu não sei. Acredito que mantemos escondidas nossas peculiaridades, assim como disfarçamos paixões e inseguranças e restringimos o acesso a quem somos por dentro àqueles que confiamos cegamente com as nossas vulnerabilidades e esquisitices. 


O livro “Pessoas Normais”, de Sally Rooney, foi a primeira inspiração para esse texto. Acompanhamos a história de Connell e Marienne, dois jovens inteligentes e emocionalmente complexos que se encontram e desencontram, se machucam e se amam, mas, principalmente, aprendem um com o outro a conhecerem a si mesmos. Com o autoconhecimento, vem a autoconfiança, de modo que o relacionamento dos dois, por mais conturbado que tenha sido, foi essencial para o crescimento de ambos. No final, mesmo com um oceano de distância entre eles, acredito que uma parte de quem se tornaram sempre pertencerá ao outro – e talvez seja a isso que Platão se refere quando escreve sobre o mito do andrógeno, apresentado em um diálogo de “O Banquete”, segundo o qual os seres humanos eram originalmente criaturas com quatro braços e pernas e dois rostos que desafiaram os deuses ao tentarem escalar o Olimpo, e, como punição, foram divididos ao meio por Zeus e condenados a vagar pelo mundo procurando sua outra metade. Popularmente, esta é a origem do conceito de almas gêmeas, que não se limita ao relacionamento romântico:


“Portanto, quando alguém encontra a própria metade de si mesmo – seja homem procurando homem, mulher procurando mulher, ou homem e mulher unidos –, um arrebatamento extraordinário os toma: afeição, intimidade e amor, a ponto de não quererem se separar um do outro nem por um momento.

E aqueles que passam a vida juntos não poderiam dizer o que desejam um do outro. Pois ninguém pensaria que é apenas o prazer sexual que os faz desejar estar unidos com tanta intensidade…”


Enquanto nos esforçamos para ser percebidos como normais, esquecemos de ser humanos. E talvez não seja somente a arrogância que nos separa da nossa outra metade, mas também o medo de admitir que somos incompletos sem as outras pessoas. Não somos os personagens de um filme, não há uma câmera gravando nossas paixonites esquisitas por homens gays ou falas vergonhosas, piadas sem noção e observações maldosas. Ninguém está realmente prestando atenção se estamos seguindo diligentemente o roteiro que nos foi designado pelo senso comum ou pelos nossos pais e amigos. Podemos escrever a nossa própria história, basta existir, isto é, compartilhar pedaços das nossas experiências com as almas gêmeas que encontramos no caminho. Aquelas pessoas que nos desafiam e nos ensinam na mesma medida. Aqueles que possuem exatamente o que não temos e precisamos, as nossas outras metades que vagam pelo mundo. 


Todos nós somos retalhos dos traços das pessoas que passam pela nossa vida. Precisamos das pessoas para conversar, para não sentirmos que somos seres de outro planeta com sentimentos absurdos e pensamentos estranhos. Para nos darmos conta de que ninguém é normal ou que, na verdade, o normal é ser simplesmente humano: vulnerável, assustado, apaixonado, perdido, invejoso, covarde, criativo e fundamentalmente falho. 



Autoria: Julia Santos

Revisão: Ana Clara Jabur

Imagem da capa: Pinterest

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