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NOTAS DA MADRUGADA



Agora são 2h53 da madrugada, pelos seus cálculos lhe restam pouco mais de 4 horas de sono. Provavelmente a escrita dessa história vai debitar mais uns 20 ou 30 minutos do seu tempo de descanso, mas, se ele avaliar suas opções, essa nota ao menos vai registrar o caminho criativo que sua mente percorreu até que seu corpo adormecesse. Bom, a verdade é que a caderneta de anotações já virou um refúgio.


Para ele, na madrugada, a caneta fica mais potente, a criatividade flui e o que está ao seu redor se torna inspirador. O silêncio diz no seu ouvido o que produzir, o ponteiro do relógio confirma cada ideia e, dessa interação com o ambiente, histórias e personagens são criados, reflexões são fomentadas e planos são traçados.


De fato, a maioria das histórias não vingam ao amanhecer, muitos personagens ficam incompletos, algumas reflexões perdem o sentido depois que o despertador toca e nem todos os planos se materializam. Mas o que gera emoção é que cada palavra fica guardada: quando amanhece, elas ainda existem e, um mês ou um ano depois, elas continuam ao alcance das mãos dele, o que as tornam infindas. Assim, o homem revisita seu ódio, sua saudade, suas narrativas, sua alegria de um dia que já foi esquecido e seus planos do passado.


Nesta noite, ele está escrevendo sobre a vida e como ela anda cheia, monótona e estressante. A cada linha, ele se questiona se é normal anular cinco dias da semana devido às obrigações, sacrificar o presente planejando o futuro, perder a habilidade de prestar atenção nos detalhes e tirar um tempo aos fins de semana para assistir a um filme que lhe traga o fôlego para reiniciar o ciclo.


O último a que assistiu foi “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” e constatou que, de qualquer modo, a vida vale a pena. Talvez, o que ele precisava era olhar mais atentamente ao mundo e enxergar propósito, parar de colecionar anotações para colecionar memórias e experiências. O Homem dos Ossos de Vidro, um dos personagens do filme, tem razão quando diz à protagonista que ela aguenta as pancadas da vida. Afinal, guardar-se de tudo não te coloca em um lugar seguro, e, sim, faz da sua existência solitária e sem graça.


3h15. O sono já lhe tinha tomado conta e a exaustão de um dia corrido estava prestes a fazer com que ele dormisse com a caneta na mão. Normalmente é assim mesmo: as narrativas ficam sem desfecho e, em determinado momento, os pensamentos se misturam e acabam se perdendo. Escrevia sobre a vida, desejou ser mais como Amélie, lembrou da infância no meio disso, colocou o despertador para às 7h e, depois de 3h45, acordou para mais um dia. Porque a madrugada permite que ele voe, mas o dia brevemente coloca seus pés no chão.


Revisão: Bruna Ballestero e Letícia Fagundes

Imagem de capa: Cristiano Mascaro/Fotospot/Divulgação


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