NÃO À ANISTIA
- Erick Martins Rosario
- há 13 minutos
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Na noite dessa quinta-feira (11), o Supremo Tribunal Federal concluiu o primeiro passo para que superemos um período traumático da história brasileira: o julgamento do núcleo crucial da trama golpista. Sobre o banco dos réus, encontravam-se a alta cúpula do governo Bolsonaro: o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro, Alexandre Ramagem (ex-presidente da Agência Brasileira de Inteligência – ABIN), Almir Garnier (ex-comandante da Marinha), Anderson Torres (ex-ministro da Justiça), Augusto Heleno (general e ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional – GSI), Mauro Cid (tenente-coronel e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro), Paulo Sérgio Nogueira (general e ex-ministro da Defesa de Bolsonaro) e Walter Souza Braga Netto (general da reserva, candidato a vice de Bolsonaro em 2022 e ex-ministro da Defesa e da Casa Civil).
A decisão do STF já nasceu extraordinária devido a singularidade de representar a condenação de um ex-mandatário do Executivo por tentar subverter a ordem constitucional, algo inédito em nossa história. Mais raro ainda, tem-se a imposição da força do Direito Penal sobre generais das Forças Armadas que atentaram contra os Poderes democraticamente constituídos. Nesse sentido, a Corte Suprema avança no longo caminho para a efetivação de um Estado de Direito em nosso país ao reforçar a máxima da Constituição de 1988: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Ou seja, ninguém está acima dela.
Porém, menos exceções se fazem presentes na história brasileira quando olhamos pela perspectiva do perdão a esses agentes. Entre a série de tentativas de golpes que o Brasil sofreu desde sua independência em 1822, sempre houve apenas dois resultados: a consumação do golpe ou o perdão dos envolvidos em sua tentativa. Um dos casos merece destaque: o Decreto Legislativo nº 18 de 15 de dezembro de 1961. Foi com ele que o Congresso Nacional perdoou os ministros da Guerra, da Marinha e da Aeronáutica que tentaram impedir a posse de João Goulart em 1961. Três anos mais tarde, os mesmos militares estiveram envolvidos no golpe militar que depôs Jango da Presidência da República e jogou o país sob um estado de exceção por 21 anos.
Tragicamente, a história se repete. Indiferentes à captura das instituições democráticas por grupos neofascistas, partidos ligados ao fisiologismo político passaram a mobilizar-se nas últimas semanas em nome de um projeto de anistia aos envolvidos na mais recente tentativa de golpe da nossa República. O ímpeto pelo golpismo em nome de benefícios eleitorais de curto prazo ultrapassa qualquer zelo pela Constituição daqueles que prometeram resguardá-la. Como seria possível que a Lei Maior autorizasse a anistia daqueles que tentassem subvertê-la? Lenio Luiz Streck acerta ao pontuar: “Está implícita a proibição. Chama-se a isso de hermenêutica da função da lei (Fuller, MacIntyre e Wittgenstein)”.
Não se trata aqui de uma mera arruaça organizada por “velhinhas com bíblias na mão”. Menos ainda de um cabo e um soldado contrários ao Supremo Tribunal Federal. O que a denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República revela são planos graves de intervenção no funcionamento dos Três Poderes da República. Pretendia-se assassinar um presidente e vice-presidente eleitos, além de um ministro da Suprema Corte. Pretendia-se envenenar um presidente. Pretendia-se explodir um ministro. Pretendia-se cercar e interromper as atividades do órgão responsável pela transparência e lisura das eleições. Pretendia-se instituir um Gabinete de Crise sob a chefia de dois generais para “estabelecer diretrizes estratégicas, de segurança e administrativas para o gerenciamento da crise institucional”. Não se trata de uma mera arruaça.
Se o planejamento pela alta cúpula do governo Bolsonaro não pode ser tratado como brincadeira, replica-se a mesma lógica a também tentativa deliberada de abolição do Estado Democrático de Direito de 8 de janeiro de 2023. Débora não somente pichou uma estátua: ela participou do acampamento em frente ao QG do Exército, clamou por uma intervenção militar e invadiu a sede dos Três Poderes. Os golpistas não apenas atentaram contra o patrimônio público. Eles deixaram granadas no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal. Eles pediram que as Forças Armadas agissem contra a ordem constitucional. Eles não aceitaram a vontade da maioria da população brasileira manifestada democraticamente nas urnas.
Tentar desconstituir um governo democraticamente eleito e abolir o Estado Democrático de Direito são dois dos crimes mais graves de uma República. E, nesses crimes, Jair Bolsonaro é expert – muito em decorrência de, vale salientar, da omissão do então Procurador-Geral da República, Augusto Aras. Infelizmente, o ex-presidente jamais será punido pelos seus delitos contra a humanidade praticados durante a pandemia de COVID-19. Centenas de milhares de vidas foram ceifadas em decorrência da necropolítica implementada por sua administração: “Não sou coveiro”. A essas famílias, o Direito nunca será capaz de reparar a sua perda. No entanto, cabe à História que isso nunca seja esquecido para que nunca mais seja reproduzido.
A seguridade social, os direitos de minorias, o meio ambiente e a cultura também não passaram ilesos pelo governo Bolsonaro. O Brasil voltou ao Mapa da Fome: 61 milhões de brasileiros enfrentaram dificuldades para se alimentar entre 2019 e 2021. Jair Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT e o Departamento de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Excluiu a participação da sociedade civil no conselho do Fundo Nacional do Meio Ambiente. O desmatamento na Amazônia subiu em cerca de 150%. A pasta da cultura foi desmontada, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) foi sucateada e um secretário foi acusado de reproduzir parte do discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha nazista.
Sob Bolsonaro, a máquina pública foi utilizada para a erosão de nossas instituições democráticas e de nossos direitos tão arduamente conquistados na mais recente Assembleia Constituinte. Seu julgamento, como supracitado, não é suficiente para a obtenção da Justiça pelos seus atos praticados. Mas é o passo necessário para que o País vire a página desse pesadelo, reforçando a defesa de sua democracia e soberania. Não se deve permitir que ameaças nacionais ou estrangeiras perturbem a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito.
Uma anistia aos transgressores ao Estado Democrático de Direito não pacifica o Brasil, apenas os convida a reproduzir seus atos – e, dessa vez, com sucesso. Quanto a isso, a Constituição é uníssona: àqueles que atentam contra a ordem constitucional não cabe perdão.
Autoria: Erick Martins Rosario
Revisão: Artur Santilli e Ana Clara Jabur
Imagem da capa: Nicolas Floriano
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Nota da editoria da Gazeta Vargas:
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Referências
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BBC NEWS BRASIL.Cúpula militar na mira da PF: o impacto da inédita investigação de envolvimento em plano de golpe. BBC News Brasil. Brasília, 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz9e4xyd1kwo. Acesso em: 8 set. 2025.
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