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NÃO É DE BOM TOM


Texto enviado anonimamente.


São 4h15 da manhã de segunda-feira e mais uma semana começou. Imagine que estamos em abril, quase maio, e ainda estamos presos nessa história de mau gosto que é isso tudo que sabemos. Eu penso nas crianças que calharam de nascer desde 2020. As coitadas não tiveram nem o direito de ter o primeiro afogamento da vida numa bacia de prata na igreja em seus batismos. Não. Já chegaram se afogando nesse mar de absurdos, nessas enchentes imparáveis e turvas, sob as quais remamos numa canoa furada.


Eu não quero escrever aqui um epitáfio da nossa geração. Ou quero, não sei. O fato é que estou cansado de viver uma vida sem dress-code. Não há nem porque trocar de roupa, para falar a verdade. O percurso do meu dia e do dia de vocês, aposto, é entre sua cama, banheiro e sua mesa de estudo. Ficou para trás o tempo em que éramos demandados a nos vestir comme-il-faut. Não há mais convites e ingressos para que usemos abadás, nem máscaras de carnaval – e essa, meus caros, é a causa do meu colapso. Eu poderia falar da vacina e do desgoverno, mas todo mundo já anda lamentando isso. Eu vim para lamentar a tristeza do meu guarda-roupa e a falência do nosso humor.


Nenhum de nós nasceu pra isso. Ano passado, eu era 70% água e o resto era indignação e raiva pela coisa toda. Mas não sabíamos da missa a metade. Vinha muito pela frente – e veio – e, desde então, vivemos num samba-canção ou numa roupinha mixe, como se personificássemos o mau gosto desse mau tempo. Hoje, sou 20% água porque já desidratei... não tomo mais aquela trincando depois da aula, nem bebo mais chopp há sabe Deus quanto tempo e acho que os vinhos pioraram muito desde que essa baderna começou; sou 30% cansaço e procrastinação - e minha outra metade eu deixei pelo caminho.


Ainda há no meu celular o aplicativo da Blacktag, como um bastião da esperança me dizendo para ter fé e paciência que tempos melhores virão. Ele está perdido entre essas grosserias de Zoom, Meets e seus derivados, que desejo muito logo ver longe, ou pelo menos mais distante. Nunca mais vi posts do Share your rolê. Se fosse músico, eu comporia um réquiem das festinhas – para tocar onde é que eu não sei. Por falar em música, estou cansado dos fones de ouvido! Quero ouvir música no Paredão Megatrom tomando cerveja no meu copão da atlética; nos supershows do Allianz, de All Star e calça jeans e quero ter que vestir social para escutar arte na Sala São Paulo.


Meu computador testemunha todos os dias a chatice que é vestir camiseta e bermuda para não aparecer de pijama na aula. As pessoas estão exaustas de gastar perfume em casa. Li hoje no Financial Times que as mulheres estão tendo que se reacostumar a usar salto pós-isolamento. Foi a melhor notícia do dia: uma soma de vida normal com bom gosto. Nada mais raro hoje em dia. Lindo!


Os coitadinhos dos recém-nascidos devem estar só de fraudas em suas casas. Pais e mães estão guardando uma grana sem os gastos com tiarinhas e roupinhas para ir ao pediatra. Falando em médico, fiz uma consulta online semana passada. Nem para ir ao médico a gente se apronta mais. Estou quase indo ao mercado de blazer.


Dior, que como uma lenda, sobrevive, falou que o segredo de toda beleza é o entusiasmo. Talvez seja por isso que estou reclamando da saudade dos abadás, dos vestidos e saias, das camisas de botão, dos tênis de sair e até das gravatas e saltos apertados. A gente se entusiasmava com as ocasiões diferentes, com a expectativa de se aprontar para algo novo, com o frio na barriga de estar e ver o belo. No final das contas, resumo que estou com saudade de esperar alguma coisa, de contar os dias; de um pouco de beleza e arte; de abrir o aplicativo da Blacktag.


Outro dia tiveram um exército de leitores da Folha que crucificaram os colunistas que quiseram pegar leve em seus textos. “Absurdo ignorar o óbvio”. Ilana Kaplan talvez diria que escrever sobre dress-code não é de bom tom. Eu não ligo. Que me crucifiquem. Assim, pelo menos, terei um evento para mudar de roupa e uma ocasião para marcar na agenda. Mandem o convite por Gmail.


Revisão: Cedric Antunes

Imagem de Capa: Giulia Lopes


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