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O ASTRÔNOMO ERUDITO


"A noite acendeu as estrelas porque tinha medo da própria escuridão" – Mário Quintana 


O trajeto a percorrer seria o mesmo trilhado pelo ônibus, só que dessa vez optei por voltar caminhando ao hotel – ele se encontra a apenas três quilômetros do auditório, tornando quase que desprezíveis os fatores “tempo” e “esforço” aplicados à execução dessa tarefa. Durante o percurso, não pude deixar de pensar no que havia acabado de acontecer. Sentado com as costas totalmente apoiadas no encosto de madeira, estava lado a lado com a causa de minhas frustrações intelectuais. Mais uma de suas palestras havia terminado e novamente saí com o usual amargor no fundo da garganta e com pontadas uniformes e repetidas no mesmo canto da cabeça, devido à complexidade do tema tratado. Foi quando nos encontramos sentados naquele mesmo banco do ponto de ônibus, rodeados por nada além do silêncio, que pude refletir e revisitar nossas interações passadas. Diversos duelos travei com o erudito astrônomo – os quais variavam em conteúdo e forma, passando por filosofia e religião – e que garantiram a mim um total de zero vitórias registradas. Naquela noite, não estava com ânimo ou paciência para mais uma discussão, quando repentinamente fui desarmado por uma sorrateira e indiferente abertura, que me pegou desprevenido. 


– Suponho que tenha achado o que procurava.


– Perdão, como disse?


– Seu silêncio leva-me a crer que já tem a resposta para a pergunta que tantas vezes me fez. 


– Não. Acredito que não exista resposta. É o que é, nada mais.


– Sobre isso, não tenho dúvidas. Agora, resta saber como responder a pergunta.


– E que pergunta seria essa mesmo?


– Ora, a pergunta que tem feito a mim desde nosso primeiríssimo encontro: "Por que somos diferentes?" Está lembrado? 


– Sim. Porém já não sei o que faria com essa informação. Prefiro acreditar que somos apenas dois românticos: apaixonados pelos mistérios da natureza e frutos da mesma árvore, mas distintos e únicos pelas particularidades de cada galho.


– E acredita mesmo nisso? 


– Há algum motivo para não o fazer? 


Num piscar de olhos, a agradável brisa que carregava a tímida essência da floresta situada nos arredores transformou-se em um agressivo vendaval. O farfalhar das árvores tornara-se ensurdecedor. E então, presenciamos o apagão parcial da estrada, fazendo com que restasse apenas a esmaecida iluminação do ponto de ônibus, que reluzia acima de nós. Com isso, as poucas nuvens que entraram de penetra no céu noturno foram varridas, despindo o corpo celeste que posava para nós. 


Sereno, porém com um toque de cansaço, o grisalho astrônomo voltou a direcionar a palavra a mim:


– Dê uma olhada sobre a copa daquela araucária e me diga o que vê.


– Órion.


– Negativo. Tente novamente.


Mintaka, Alnilam e Alnitak.


– Não estamos mais dentro do anfiteatro e definitivamente não estou aplicando um exame de conhecimento. 


– E o que quer que eu responda? É fato que não tenho metade do seu conhecimento, mas também sou graduado e definitivamente tenho conceitos básicos de astronomia e astrofísica, então pare com joguinhos! 


– Estamos perdendo o ponto aqui. Você costuma andar? Sair para caminhar de vez em quando, coisa desse tipo.


– Andar? Sim, claro, não estou aleijado ou algo que o valha, como bem pode ver.


– Ah, mesmo? E há quanto tempo não usa esse par de pernas sadias para dar uma volta e observar os objetos que tanto estudou nessa sua esplêndida formação acadêmica?


– O que quer dizer com isso? Você sabe bem dos trabalhos práticos a que somos submetidos esporadicamente. São incontáveis horas atrás de um telescópio mal regulado!


– Esqueça isso. O que estou propondo é o seguinte: aproveite esses 20 minutos de atraso do nosso estimado meio de transporte e volte a pé. Observe um pouco esse reino complexo e inexorável que reside acima de nossos chapéus. Note que não escolho fazer minhas palestras em lugares afastados dos grandes centros e isolados da poluição luminosa de forma aleatória. Estamos em uma posição estratégica e, além disso, essa definitivamente não é uma noite convencional… mas essa parte você já deve saber.


– Sim. Dentro de algumas frações de hora, estaremos sob uma lua cheia que será estampada no céu próximo às Plêiades, como bem disse em sua apresentação.


– Você está perdendo o ponto novamente. Tente lembrar: antes mesmo de descobrir qualquer uma dessas informações, o que te levou a seguir esse caminho? O que te fez querer estudar os corpos celestes em vez dos nossos próprios; ou mesmo cursar artes, arquitetura ou qualquer outra coisa? Acredito que haja um erro na pergunta que deu início a essa discussão. Não ajudará em nada debater o porquê de sermos diferentes sem antes analisarmos “o que nos torna diferentes”, ou mesmo “o que ainda nos torna diferentes”. 


A conversa foi interrompida com a chegada do ônibus. Não sabia muito bem qual rumo tomaria depois daquilo tudo. Então, enquanto ainda estávamos do lado de fora do veículo, pude ouvir um último conselho. Ao finalizá-lo, o estudioso subiu os degraus posicionados à sua frente e seguiu viagem, assim como planejara. Eu, por outro lado, dei início a uma inusitada caminhada, cujo trajeto a percorrer seria o mesmo trilhado pelo ônibus, mas que, por ter uma extensão de apenas três quilômetros, poderia vir a ser um experimento ao qual não conseguiria arrumar desculpas para resistir. 


A ventania havia cessado. Agora, cigarras e grilos performavam suas canções autorais, que harmonizavam com as notas aquáticas suavemente emitidas pelo riacho próximo à estrada. Nunca havia sentido medo em fazer uma caminhada noturna, ainda mais em um ambiente ermo e desprovido de perigos como aquele, entretanto algo me dizia que aquela era uma situação atípica. 


Estava mergulhado na escuridão, sem um pingo de luz que pudesse guiar corretamente minha jornada. O que faria quando as ameaças que pelas trevas se esgueiravam resolvessem atacar? Não conseguia parar de pensar no desfecho do encontro com o professor. Suas últimas palavras ressoavam em minha cabeça, sem muito distingui-las de um chacoalhão, daqueles que tomamos e entendemos seu significado apenas um ou dois dias depois.


“Muito já experienciei, confesso. Utilizando-me de uma tecnologia de ponta e de discussões com os melhores estudiosos do meio, atravessei a galáxia e visitei lugares inimagináveis, os quais me forneceram dados e números que poderiam levar uma vida para serem organizados e equacionados. Pude enxergar a existência externa ao planeta em que residimos de uma maneira extraordinária. Porém, insisto em perguntar: ‘o que seria da realidade se a enxergássemos apenas através de um punhado de números; por meio de estilhaços do mundo, os quais serão comprimidos para caber em gráficos e tabelas; através de um telescópio mal regulado, que deixou de compactuar com as nossas ambições ou com qualquer resquício do sonho que nos motivou a chegar àquele lugar?’


A diferença entre nós é que já encontrei todas as estrelas que desejava – afinal, mesmo vivendo meus últimos anos, posso exercer o emprego que amo e, ao chegar em casa no fim do dia, consigo brincar com meu recém-nascido netinho, o mais novo membro da família. Não se perca no processo, se apaixone ainda mais à medida que o percorre. A resposta nunca estará na palma de nossa mão – e em nosso campo de atuação, talvez nem mesmo dentro de um raio de uma unidade astronômica (UA). Volte a perseguir as estrelas que brilham em outro lugar além do céu, mas sem deixar de observá-lo vez ou outra.”


A esse  ponto, estava em um trecho próximo do hotel. Com a queda de energia, notei que aquele segmento do percurso era livre de árvores, pertencendo a um campo aberto. Ao olhar para o horizonte, pude vê-la: era esplêndida, a Lua cheia que se exibia ao lado das Plêiades. Talvez essa não seja uma noite qualquer, de fato. Deixei de sentir medo. A única emoção que restara era algo indescritível – uma nostalgia, quem sabe. Por ora, sabia que estava em paz. Tinha a impressão de que herdaria o mundo e tudo que se encontra ao seu redor. 


“Quando ouvi o astrônomo erudito,

Quando as provas, os números foram enfileirados diante de mim,

Quando me foram mostrados os mapas e diagramas a somar, dividir e medir,

Quando, sentado, ouvia o astrônomo muito aplaudido, na sala de conferências,

Senti-me logo inexplicavelmente cansado e enfermo,

Até que me levantei e saí, parecendo sem rumo

No ar úmido e místico da noite, e repetidas vezes

Olhei em perfeito silêncio para as estrelas.” – Walt Whitman 


Autoria: Rafael Diz Motooka da Cunha Castro

Inspiração: Poema “O Astrônomo Erudito”, de Walt Whitman 

Revisão: Ana Carolina Clauss e Laura Freitas

Capa: Pinterest


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