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O BOLSONARO É DE CENTRO

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É isso mesmo que você leu. E digo mais: ele é um moderado — mas isso não é bom.


Mas, para fins de não colocar a carruagem na frente dos bois, algumas considerações precisam ser feitas. A primeira referente ao porquê esse texto está sendo feito, e porquê agora. Existe um lado de oportunismo, sim, já que Jair Bolsonaro está em alta na mídia graças aos recentes desenvolvimentos envolvendo sua figura no âmbito doméstico e internacional. Logo, há motivo para acreditar que um espaço para uma discussão mais fundamental sobre o que ele representa está aberto novamente. Também, o debate sobre direita e esquerda tem me irritado profundamente desde que acompanho política por sua imprecisão e improdutividade, e creio que essa seria a oportunidade de oferecer minha pequena, mas honesta, contribuição para essa intriga.


Uma outra explicação jaz em uma pulga atrás da orelha que eu tenho há um tempo vergonhosamente longo. Em termos de ontologia, como você diz o que é a direita? A descrição de um objeto baseado em suas relações é geralmente uma caracterização imperfeita, pois a existência de algo precede seus relativos. Então, dizer que a direita nada mais é do que a soma de quem se declara de direita, além de ser um argumento circular, resulta em uma conta pouco satisfatória. Adicionalmente, esse método é historicamente imperfeito. O historiador Timothy Power cunhou o termo “direita envergonhada” para descrever o fenômeno da sub-representação da direita: apenas 6% dos congressistas se declararam como tal, enquanto nenhum de extrema-direita [1]. Dificilmente dá para chamar o ACM, o Maluf ou o Afif de “centro”, e muito menos de esquerda, lógico. Há um argumento a ser feito, que será muito parecido com o que vou falar sobre o ex-presidente Bolsonaro daqui a pouco, sobre esses políticos terem uma orientação fisiológica. Os três acima vieram a fazer parte de partidos que hoje podem ser considerados do centrão, visto que Afif e Antônio Carlos Magalhães são figuras históricas do Partido da Frente Liberal, hoje o União Brasil, cuja função política é mais uma oposição técnica de qualquer governo que seja do que uma representação dos interesses do eleitor ideológico de direita. Nesse quesito, até o PSDB soube se fantasiar de direitista melhor do que eles. Mas, por outro lado, os dois sempre representaram uma força política pequena, mas coesa, de algum tipo de conservadorismo, por mais vago que fosse. Ambos eram políticos próximos da administração militar durante a Ditadura, e ambos foram ferrenhamente contrários à orientação progressista do MDB. Já Maluf, um representante de uma tradição caudilhista de São Paulo que vêm sido carregada desde Adhemar de Barros, é um conservador muito mais distintamente que seus pares, mas queimou pontes com boa parte da direita do pós-redemocratização após ter concorrido no lugar de Mário Andreazza para candidato à presidência. Os dissidentes, que viriam a fundar o PFL, apoiaram Tancredo e Sarney como um compromisso entre as facções não-malufistas [2].Tangente terminada, o que é a Direita? Na definição mais simples e antiga, a distinção esquerda e direita se dá no que diz respeito à aceitação de desigualdades: quando o termo começou a ser utilizado na Revolução Francesa, separando os jacobinos na esquerda e girondinos na direita, o intuito era identificar, respectivamente, os revolucionários que queriam levar abaixo os estamentos e divisões do país daqueles que acreditavam que ainda era possível trabalhar com o que estava ali. O cientista político Norberto Bobbio adaptou a classificação em duas formas de pensar sobre desigualdades: existem dois tipos delas, as sociais, que podem ser consertadas, e as naturais, imutáveis. A esquerda enxerga mais desigualdades sociais e entende que o bem-estar agregado é maior (ou  pelo menos mais ético) quanto mais desigualdades são reduzidas, enquanto a direita considera que existem mais desigualdades naturais no mundo e por isso é mais eficiente aceitá-las e trabalhar sobre outros problemas não-distributivos [3]. O ideal de igualdade é positivo para a esquerda, e negativo para a direita por motivos igualmente éticos. Essa concepção fundamenta uma parte considerável da discussão teórica sobre a díade direita-esquerda por uma questão de parcimônia teórica, ou seja, o número de variáveis sobre determinado fenômeno é, idealmente, o menor possível. Um defensor dessa perspectiva, Bobbio argumentou que uma díade assim era necessária e atual na modernidade pois:


“A contraposição entre direita e esquerda representa um típico modo

de pensar por díades, a respeito do qual já foram apresentadas as mais

diversas explicações – psicológicas, sociológicas, históricas e mesmo

biológicas. Conhecem-se exemplos de díades em todos os campos do

saber” [4].


Bobbio era, antes de tudo, um cientista, preocupado em trazer positivismo lógico para a sociedade de maneira a simplificar o estudo da política. Mas, também era um político que viveu em uma sociedade e em um parlamento italiano sob alguns dos dias mais tensos de sua história, justamente chamados de “anos de chumbo” [5]. A dicotomia mutuamente excludente de esquerda e direita fazia sentido para explicar aquela sociedade. Algumas coisas comumente associadas a uma dessas categorias para nós variam radicalmente de país para país. 


Por exemplo, você sabia que a esquerda canadense é monarquista [6]? Parece contraditório ver um esquerdista defender uma hierarquia baseada em títulos de nobreza, não? A maioria dos movimentos de independência da África não conseguia concordar em absolutamente nada devido à primazia de questões étnicas sobre o internacionalismo pan-africanista, o que é no mínimo curioso para um movimento de esquerda. A direita brasileira é um outro caso muito mais emblemático dessa contradição, pois ela se enterrou ideologicamente quando chegou ao poder.


Acho válido dizer que a ditadura militar foi de direita, mas eles adotaram políticas que deixariam Brizola adimirado. Foram criadas 47 empresas estatais durante o período, e nós estávamos basicamente copiando os planos anuais da União Soviética [7]. O Estado brasileiro cresceu muito sob a ditadura e centralizou-se em Brasília. A Direta pré-ditadura, representada por pessoas como Carlos Lacerda, Milton Campos e Otávio Mangabeira (sendo alguns desses às vezes chamados de “liberais históricos”) eram diametralmente opostos às políticas implementadas pelo regime nos anos seguintes. A controversa defesa de Lacerda do golpe de 64 aconteceu por sua convergência no anticomunismo e o triunfo do grupo de Castelo Branco no exército, que pretendia de fato intervir temporariamente para impedir que um presidente de esquerda, Goulart, chegasse ao poder [8]. O golpe interno contra Pedro Aleixo e a consolidação da linha-dura no poder frustraram as ambições de descentralização, liberalização e, em certa medida, “ocidentalização” do Brasil às quais a União Democrática Nacional havia sido prometida - por isso, e por outros motivos, Lacerda se juntou a Kubitschek e Goulart na frente ampla poucos meses depois.


O que sobrou dessa direita convicta do liberal-conservadorismo somente teve algum sucesso quando Roberto Campos, economista e diplomata, conseguiu, em uma negociação desagradável, criar o Banco Central e entrar em um acordo informal com os militares para que a autarquia tivesse autonomia na política monetária [9]. O único tema comum que se manteve na identidade da direita mainstream foi a ortodoxia fiscal. Mas, pergunte para qualquer pessoa minimamente versada em política paulista que você vai descobrir, sem muito esforço, que o Rodoanel, o minhocão e o Projeto Cingapura provavelmente não foram as atitudes mais fiscalmente ortodoxas já feitas por um político de direita. Ainda sim, definimos acima que Maluf era, certamente, de direita, o que gera uma situação conflituosa na classificação econômica da dicotomia.


Por essa categorização, FHC, que se declarou de esquerda em uma entrevista [10], e Lula no primeiro mandato, eram de direita também. O primeiro dispensa explicações, já o segundo apontou uma equipe tão piamente ortodoxa que a Faria Lima (e o banco Itaú em especial) se tornaram os financiadores mais próximos do governo. A dupla Antônio Palocci e Henrique Meirelles subverteram a expectativa de todo mundo quando propuseram políticas de austeridade e liberalização. Sim, o governo Lula, de todos os governos possíveis, privatizou mais empresas que os governos Temer e Bolsonaro – juntos [11]. O pragmatismo econômico dessa gestão alienou tanto seu próprio partido que um motim na reforma do fator previdenciário faz surgir o PSOL, não mais “à” esquerda que o projeto do PT, mas pelo menos mais “de” esquerda que o PT naquele momento, e isso ilustrou uma falha séria na categorização dicotômica que muitos acadêmicos tentaram importar para o Brasil.Dito isso, agora que foi definido que a direita brasileira é um amontoado de perdidos, esquizofrenicamente sem identidade, porque eu, mero zé ninguém, afirmo tão categoricamente que Jair Messias Bolsonaro é de centro (e um moderado)? Vamos dividir essa resposta em duas partes: uma sobre ele, e a outra sobre o que ele representa.


Jair Bolsonaro, paulista e militar da reserva, fez carreira política no Rio de Janeiro, onde sua base de eleitores eram outros militares e suas famílias. No sentido mais amplo da palavra, ele era um vereador. Sua principal função era defender interesses do seu curral eleitoral e compactuar, como um deputado de baixo clero, com as decisões do partido. Ele não tinha ideias próprias, posições fortes para defender. Ele meramente não era muito polido e tinha pouco respeito pelo PT da década de oitenta, que também ostentava um discurso combativo e sem pudor.


Em 1988, o capitão, ainda na ativa, publica um artigo na Veja intitulado “o salário está baixo”, onde ele, evidentemente, diz que os salários estão, bom, baixos. Muito mais baixos que, por exemplo, os de seus pares trabalhando em Brasília, que teriam casas pagas pelo exército. O salário, na verdade, estaria tão baixo que Jair não conseguiria “sonhar com as necessidades mínimas que uma pessoa do meu nível cultural e social poderia almejar” [12]. Esse artigo foi uma afronta tão grande à corporação que Bolsonaro foi preso por 15 dias e retirado do exército, mas o caso também marcou um ponto de inflexão político na sua vida: o “espírito militar”, nas palavras do Antropólogo Celso Castro, é marcado por um sentimento de insulação e superioridade à vida civil, que exige um respeito constante à instituição e hierarquia do exército [13]. Esse espírito é uma criação cultural profundamente calcada nas raízes republicanas do exército e na ideia de um Estado forte, interventor e unitário.


 O espírito do exército brasileiro é, em partes, um pedaço da visão sociológica da direita que valoriza a hierarquia como uma maneira de orientar o caos causado pela convivência heterogênea de várias pessoas naturalmente desiguais. Bolsonaro, apoiando-se numa pauta que apela muito para políticas econômicas tradicionalmente de esquerda, primeiro quebrou a hierarquia no exército, um tema que se manteve ao longo de sua carreira na presidência e influenciou sua relação turbulenta com as Forças Armadas nos bastidores(afinal, nenhum general gosta de bater continência para capitão). Por outro lado, em termos de filosofia política, ninguém quer que os salários sejam baixos, mas querer que os salários subam, puxados pelo Estado, é algo bem igualitarista; “se eles têm salários maiores, eu também devo ter”.


Alguém que votou contra a privatização das telecomunicações e foi opositor das políticas de Fernando Henrique não é bem um deputado de direita. Enquanto seus pares conservadores poderiam até ser convictamente direitistas, ele não se importava com isso. Ele não tinha voz no congresso para expressar ser de direita. O corporativismo militar puro e simples não conta, já que, como dito anteriormente, falta a internalização do espírito hierárquico e solícito da cultura militar, além de a defesa de uma corporação também ser o elemento comum de ideologias de esquerda, como o sindicalismo em sua forma original. Ele não era de Esquerda por também não votar ou concordar com o campo, mas sem entender muito o porquê, provavelmente, sendo isso um aspecto mais psicológico e heurístico. Como pessoa, Bolsonaro é moldável pelas circunstâncias. Ele é de centro.E o que é o bolsonarismo? O movimento certamente congrega pessoas e partidos de direita. Mas qual a sua origem histórica? Certamente em 2013. Em São Paulo, o que era para ser uma revolta contra uma política estadual de aumento na passagem de ônibus no feudinho do PSDB, escalonou para uma batalha à céu aberto entre os manifestantes e a Polícia Militar. O que era um problema de Alckmin (e devo lembrá-los que, na época, o governador ainda era um fascista de extrema-direita. Um abraço, Latuff), poderia ter facilmente se tornado uma ferramenta de Dilma, cujo governo já mostrava sinais de fraqueza, para desmoralizar oposição. Mas o prefeito da capital, Fernando Haddad, por algum motivo não revelado, provavelmente preocupado com a baixaria acontecendo logo sob o nariz do seu município, deu com a língua nos dentes e defendeu a atuação da polícia militar, criticando a violência dos manifestantes [14].


Se você fosse o representante em escala nacional do Partido dos Trabalhadores, como você lidaria com essa gafe de Haddad? Reforçar a linha partidária e dar um bom cascudo no prefeito provavelmente seria a opção mais sensata, além de facilitar um discurso populista em defesa do poder de compra do mais pobre, dos serviços públicos e por aí vai. Mas Dilma Rousseff pediu truco, e seguiu Haddad no repúdio aos manifestantes. Isso deixou um gosto amargo na população brasileira, e, quando a crise econômica veio no ano seguinte, junto do 7 a 1 (eu tenho pia confiança de que isso importa politicamente), ninguém estava a salvo [15]. As pessoas saíram às ruas xingando o vereador, o prefeito, o governador e o presidente como se todos fossem exatamente a mesma laia de inimigo público.


Dois anos depois, o congresso estanca a sangria e vota pelo impeachment. Na votação do impeachment contra Dilma, o momento mais marcante, em retrospectiva, foi a apresentação em rede nacional do futuro presidente da república para toda a população. Bolsonaro falou tudo que deu na telha nesse discurso: foi a defesa da inocência das crianças, da memória de Brilhante Ustra, do Exército de Caxias, contra a Folha de S. Paulo e o Comunismo, e por aí vai [16]. Bolsonaro, com duas décadas de política nas costas, se colocou como um outsider eleitoral por que ele simplesmente não servia como ferramenta de nenhum outro grupo político dominante. Eles não tinham capilaridade na internet, ou entre a recém desentubada direita nas massas, representadas por nacionalistas e outros conservadores, como por exemplo Olavo e os fãs nostálgicos de Enéas Carneiro, como os liberais, agrupados em movimentos como o MBL e o partido NOVO. Eles também não queriam esses grupos para si, não era o tipo útil de eleitor que vota na situação ou na oposição moderada por que está tudo bem, pois as coisas não estavam bem. Esse eleitor queria algo, pelo menos na superfície, que fosse radical, porque a vida estava desagradável.


O eleitor que começou a se assumir de direita nessa época dificilmente defendia pautas concretamente de direita. Ele era anti-petista, mas, basicamente, da mesma maneira que o Ciro Gomes também era. O homem na casa dos 30 aos 50 anos de classe média, o eleitor mais provável dessa nova oposição, iria topar qualquer coisa que oferecesse uma alternativa longe da dicotomia PT-PSDB. Liberal na economia? lógico, mas que se dane a reforma da previdência, sendo que 40% dos entrevistados pela Confederação Nacional da Indústria, não necessariamente a fonte mais economicamente imparcial para esse tipo de estatística, se mostraram contrários a reforma, e dos restantes 60% favoráveis, somente 32% concordavam plenamente com sua necessidade [17]. O eleitor não é obrigado a ser perfeitamente coeso em suas hipóteses, mas isso indica que o critério de aprovação não era ser um direitista.


E, depois de eleito, Bolsonaro governou com o centrão, e às vezes até com o PT, votando em conjunto em pautas como o aumento do fundo eleitoral e as planilhas de emendas do orçamento secreto [18][19]. Estranhamente, o Partido dos Trabalhadores pediu o impeachment de Bolsonaro, mas apesar da inegável antipatia recíproca, o partido fez pouco para articular o “superpedido” além de seu núcleo sólido [20]. Pode ter sido um cálculo político cujo resultado seria um gasto de capital maior que o desejado para uma pauta sem muita certeza, mas se isso indica alguma coisa é que pelo menos era possível trabalhar com ele no poder, e talvez fosse melhor permitir que seu governo sangrasse.


Não era um discurso de oposição técnica, porque nenhum dos dois grupos se aceitava publicamente. Eram convergências regulares e padronizadas, enquanto a principal agenda econômica do governo só estava sendo tocada porque Paulo Guedes assumiu uma figura de “superministro” dentro do gabinete do presidente e sobreviveu ao que outros nomes não conseguiram. A promessa de limpeza e combate à corrupção foi morta à sangue frio quando a base do presidente incluiu no pacote anti-crime de Sérgio Moro, o juiz ídolo da lava-jato e da nova direita, uma proposta de emenda do PSOL, que efetivamente anulava a maior rigidez procedimental inicialmente proposta [21]. Muitas das políticas do governo eram mais populares que ele próprio, e aconteceram com uma má vontade política de causar refluxos. Sem falar que, na pandemia, aparentemente o gabinete inteiro cessou suas atividades cognitivas, não salvando nem a economia nem o sistema de saúde pública. Eu preciso afirmar categoricamente que um governo sem direção e sem pauta dificilmente pode ser classificado como de direita ou esquerda. Talvez até o centro seja uma classificação ruim para esse caso.


E se tem algo que me incomoda profundamente nessa discussão inteira é o termo “extrema-direita”. O que é a extrema-direita? É uma ideologia? É um modo de pensar? É de comer? Eu considero, sem nenhuma sombra de dúvida, que esse termo é perfeitamente descolado de qualquer significado real: pergunte para um libertário se ele se considera de extrema-direita e ele provavelmente vai responder que sim, mas você conseguiria conviver culturalmente com ele sem muitas dificuldades, porque para ele tudo que é minimamente conservador ou autoritário também é de esquerda por tabela. Tente se entender com um agricultor mato-grossense médio, por outro lado, e você vai sair do diálogo assumindo que a linha entre cidade e campo é, essencialmente, a fronteira entre Alemanha e Polônia em 1936. Na prática, o que é extrema-direita?


Seria, voltando à definição de Bobbio, a máxima percepção de desigualdades naturais: não existe forma de modificar a sociedade de modo a corrigir diferenças entre humanos individualmente. Mas essa é raramente a forma como a extrema direita se apresenta (e, por isso, com frequência, o fascismo e similares são chamados de “terceira posição”), porque isso é basicamente realizável, em termos teóricos e filosóficos, apenas no anarquismo. A única forma de não existir um tratamento humano comum, seja para o bem ou para mal, para um estado de bem-estar social ou para racismo e eugenia, é se não existir uma régua. Só não existe régua sem o Estado. O que seria a extrema-direita no vocabulário comum seriam as implicações políticas da “terceira onda da modernidade”, a ideia straussiana de que a aplicação deturpada da ética nietzschiana justifica um estado de competição perpétua e natural entre homens fortes e fracos - a filosofia ética do fascismo [22]. A desigualdade entre eles tanto não deve ser ignorada que o forte ativamente precisa se sobrepor ao fraco, e idealmente pela autoridade política. 


Depois dessa nota de rodapé macabra, pela qual peço desculpas, vale dizer que Bolsonaro provavelmente não está no mesmo nível de ameaça que Hitler, Mussolini ou Oswald Mosley. O mero fato de ser truculento quando provocado não prova nada, pois até aí o Renato Gaúcho também seria fascista. O autoritarismo também não, por que ninguém chama Getúlio Vargas de fascista até onde eu sei. E, obviamente, Bolsonaro não tem ideia do que seja a terceira onda da modernidade, a suposta degradação normativa da sociedade ou Nietzsche. Ele, pelo menos da boca para fora, defende uma ética cristã que tem como base a caridade como melhor serviço para os desafortunados, e abraça, também da boca para fora, a democracia e um regime de governo regido constitucionalmente. Querer governar por decreto nunca foi exclusivo de nenhuma ideologia, há projetos de ditadores por todos os lados da história.


Dito isso, a parte do “moderado” é um pouco mais difícil de provar, eu admito. Mas esse raciocínio me vem pelo fato de que muitos políticos não querem ostracizar o Bolsonaro e seus seguidores da vida pública como normalmente políticos do estamento fazem em qualquer lugar do mundo. O interesse em mandar ele preso é menos um cordão sanitário e mais um indicativo que ele errou com seus pares mais do que deveria. Ele perdeu a rodada do pôquer e preferiu sacar uma arma do que admitir a perda, mas não é porque ele quer refazer as regras do Texas Hold’em, e sim porque qualquer autoritário que acha que pode assumir o controle do jogo político faria isso quando encurralado. E, ademais, se ele é tão intransigente quanto quer parecer, por que um partido que já teve um dos vice-presidentes de Lula, o PL, o adotou?


E dizer que isso não é bom, por um lado, pode estar errado, já que alguém que aceita ser reincluído no jogo político quando fracassa é menos pior que um radical que realmente tem a força de vontade para dar um golpe bem-sucedido – e Deus nos proteja de uma ditadura do capitão. Mas no geral, o Bolsonaro representa um vazio quase espiritual que tomou conta do eleitor antipetista. Ele não tem a força para empurrar uma reforma grande que acabe com sua imagem pública, e nem a coragem ou visão para um projeto de país. Ele ainda é aquele vereador glorificado de outrora, e isso o torna também, poeticamente, um centrista moderado. O nosso erro é querer tratar tudo que é de centro e morno como bom. O que a ética aristotélica nos diz é que a virtude é o meio termo entre dois vícios, não o meio termo entre qualquer coisa.


“Tá, mas e daí?”. A moral da história é que a classificação entre esquerda e direita, pelo menos nas nossas circunstância, não é muito produtiva. Existe pouco potencial de inovação e melhora na vida em eleger alguém de esquerda ou direita, e isso não é dizer que ideias e doutrinas políticas não importam, mas na verdade é perguntar: qual realmente é sua, e as de quem você vota? 


Você não precisa deixar esse texto parando de usar as expressões que você usa normalmente, até porque eu não sou seu professor ou seu pai, mas eu acho que você estará, no mínimo, com mais material para discutir na sua próxima conversa de bar.


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Nota da editoria da Gazeta Vargas:

A Gazeta Vargas, em seu papel de revista estudantil, acredita na importância de garantir um espaço de expressão e posicionamento para os alunos da Fundação Getulio Vargas. No desempenho desse papel, prezamos a liberdade e a pluralidade das opiniões emitidas nas nossas plataformas oficiais, contanto que respeitem os direitos humanos e não contenham declarações criminosas. Assim, os posicionamentos e opiniões expressas nos textos e nas demais publicações são de responsabilidade exclusiva dos redatores ou assinantes do conteúdo, não representando as opiniões da Gazeta Vargas de maneira institucional. Convidamos a comunidade gvniana e externa a se posicionar pelo espaço aberto no nosso site!

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Referências:


[1] NETO, Odilon Caldeira. A “DIREITA ENVERGONHADA” E A FUNDAÇÃO DO PARTIDO DE REEDIFICAÇÃO DA ORDEM NACIONAL. Historiæ, v. 7, n. 2, p. 79–102, 2016.


[2] | Atlas Histórico do Brasil - FGV. Disponível em: <https://atlas.fgv.br/verbete/11671>. Acesso em: 24 ago. 2025.


[3] SILVA, Wainer Antonio; MORAES, Renato Almeida de. Direita e esquerda no pensamento de Norberto Bobbio. Revista Agenda Política, v. 7, n. 1, p. 168–192, 27 maio 2019.


[4] Ibid.


[5] REDAZIONE. Storie degli Anni di Piombo – Fondazione Rui Residenze Universitarie Internazionali. , [S.d.]. Disponível em: <https://www.fondazionerui.it/it/notizie-articoli/residenze/storie-degli-anni-di-piombo/>. Acesso em: 24 ago. 2025


[6] Prime Minister Justin Trudeau says monarchy offers Canada “steadiness”. 19 set. 2022.


[7] Ditadura militar: os números por trás do “milagre econômico” do período no Brasil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/c17d57rqeexo>. Acesso em: 24 ago. 2025.


[8] Ditadura militar: como Carlos Lacerda “vendeu” golpe de 64 em tour pela Europa. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckrdx4vrky4o>. Acesso em: 24 ago. 2025.


[9] História Contada do Banco Central do Brasil. Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/historiacontada/>. Acesso em: 24 ago. 2025.


[10] “Me considero de esquerda“ | PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira. PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira, 20 mar. 2006. Disponível em: <https://www.psdb.org.br/acompanhe/entrevistas-e-pronunciamentos/%c2%a5me-considero-de-esquerda%c2%a5/>. Acesso em: 24 ago. 2025


[11] OLIVEIRA, Marcos de. Em dois anos, Lula privatizou mais rodovias que Bolsonaro em quatro. Monitor Mercantil, 23 jan. 2025. Disponível em: <https://monitormercantil.com.br/em-2-anos-governo-lula-privatizou-mais-rodovias-que-bolsonaro-em-4/>. Acesso em: 24 ago. 2025


[12] O artigo em VEJA e a prisão de Bolsonaro nos anos 1980 | ReVEJA. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/coluna/reveja/o-artigo-em-veja-e-a-prisao-de-bolsonaro-nos-anos-1980/>. Acesso em: 24 ago. 2025.


[13] CASTRO, Celso; FARKAS, Kiko. O espírito militar: Um antropólogo na caserna. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.


[14] G1 - “Não vou dialogar em situação de violência”, diz Haddad após protesto - notícias em São Paulo. Disponível em: <https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/06/nao-vou-dialogar-em-situacao-de-violencia-diz-haddad-apos-protesto.html>. Acesso em: 24 ago. 2025.


[15] Derrota por 7x1 contribuiu para impeachment de Dilma. Curiosamente, [S.d.]. Disponível em: <https://curiosamente.diariodepernambuco.com.br/project/derrota-por-7x1-contribuiu-para-desaprovacao-governo-de-dilma/>. Acesso em: 24 ago. 2025



[17] Seis em cada dez brasileiros dizem que a reforma da Previdência é necessária, mostra pesquisa da CNI - Agência de Notícias da Indústria. Disponível em: <https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/economia/seis-em-cada-dez-brasileiros-dizem-que-a-reforma-da-previdencia-e-necessaria-mostra-pesquisa-da-cni/>. Acesso em: 24 ago. 2025.


[18] PT e PL se unem por fundo eleitoral de quase R$ 5 bilhões. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/pt-e-pl-se-unem-por-fundo-eleitoral-de-quase-r-5-bilhoes/>. Acesso em: 24 ago. 2025.


[19] Lista de petistas no orçamento secreto gera de revolta a confissão. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/politica/lista-de-petistas-no-orcamento-secreto-gera-de-revolta-a-confissao/>. Acesso em: 24 ago. 2025.


[20] Impeachment de Bolsonaro só tem voto suficiente com adesão de um grande partido do centrão. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/09/impeachment-de-bolsonaro-so-tem-voto-suficiente-com-adesao-de-um-grande-partido-do-centrao.shtml>. Acesso em: 29 ago. 2025.



[21] CARVALHO, Mirielle. Juiz de garantias: estudo revela assimetria na implementação em tribunais de todo o país. Disponível em: <https://www.jota.info/justica/juiz-de-garantias-estudo-revela-assimetria-na-implementacao-em-tribunais-de-todo-o-pais>. Acesso em: 24 ago. 2025.


[22] VERTZAGIA, Despina. Leo Strauss, The Three Waves of Modernity. Conatus - Journal of Philosophy, v. 1, n. 1, 1 abr. 2017.

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