O CAMINHO QUE SE DESFAZ NO TRAJETO
- Larissa Maria
- há 2 dias
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Não é novidade que a mobilidade urbana no Brasil apresenta inúmeros desafios com facetas diversas. Isso se dá porque, como sabemos, a história de nosso país está intrinsecamente ligada a um sistema colonialista que perdurou por séculos e que, ao fim, não teve como preocupação maior a correção de desigualdades por meio da implementação de um desenvolvimento urbano ordenado e planejado ou de políticas habitacionais efetivas. A favelização, nome dado ao movimento quase que compulsório realizado pelos setores mais pobres da sociedade brasileira para as periferias na primeira metade do século XX, é uma das primeiras consequências desse desinteresse estatal em democratizar o direito à livre circulação e ocupação das cidades, ou, indo ainda mais longe, à melhora na qualidade de vida proporcionada ao acessar espaços de lazer, saúde, educação e trabalho.
Comparativamente, é interessante notar que a mobilidade urbana, tema que atravessa o cotidiano da grande maioria dos brasileiros e que está em constante debate em âmbito municipal, paradoxalmente remonta a esse passado, refletindo ainda desigualdades de classe e raça e enfrentando, nos dias atuais, uma crise de confiança pela população que utiliza o serviço.
Ainda observando o passado, nos anos finais da Ditadura Militar (1964-1985), houve uma explosão de problemáticas – não apenas urbanas – que refletiam questões socioeconômicas e redistributivas oriundas da conjuntura política anterior e que afetavam a qualidade de vida principalmente das camadas vulneráveis. O crescimento desenfreado dos grandes centros urbanos, nesse sentido, tornou necessário o mínimo planejamento acerca das políticas públicas e da alocação de recursos relativos à cidade. Questões relacionadas ao trânsito, transporte público, moradia e saneamento, por exemplo, passaram a receber maior atenção nesse sentido, exigindo a implementação de políticas que visassem direcionar recursos para tais setores.
A promulgação da Constituição de 1988 veio como uma tentativa de realizar essa condução. Ela atribuiu competências aos entes federativos no tratamento desses conflitos e lançou o Plano Diretor Estratégico (PDE) como norteador para o planejamento das cidades pelos municípios ao redor do país. A mobilidade urbana, nesse sentido, vem como um dos itens tratados no PDE, fundamental para a efetivação do Direito à Cidade.
No PDE da cidade de São Paulo, em vigor desde 2014, entre os objetivos do Sistema de Mobilidade descritos no art. 227, foram citados nos incisos I, III e IV respectivamente: a melhoria das condições de mobilidade da população paulistana, com conforto, segurança e tarifas justas; o aumento da participação do transporte público coletivo e não motorizado; e a redução do tempo de viagem dos munícipes.
É interessante observar que, no mesmo ano, a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) apontou como tempo de deslocamento pelos passageiros o intervalo de aproximadamente 48 minutos por viagem a nível nacional. Um deslocamento ida e volta para o trabalho, por exemplo, poderia chegar a, no máximo, 1h36min. Dez anos depois, em 2024, dados da pesquisa Viver em São Paulo: Mobilidade, divulgada pela Rede Nossa São Paulo, demonstraram que o tempo médio de deslocamento para exercício da atividade principal (como o trabalho, estudos, etc.) via transporte público coletivo em São Paulo aumentou para 1h59min. É perceptível que a prometida redução do tempo de viagem não foi alcançada.
A média nacional não está muito atrás. A pesquisa Viver nas Cidades realizada pelo Instituto Cidades Sustentáveis em parceria com a Ipsos-Ipec demonstrou que, no Brasil, o tempo diário de deslocamento via transporte público é de 116 minutos, ou seja, quase duas horas. Ainda segundo esses dados, o ônibus municipal/BRT/MOVE é o meio de transporte utilizado com mais frequência, seguido do carro, sendo que mais de ⅓ das pessoas que utilizam este último – seja por meio de veículo próprio ou de carros de aplicativo – pertencem às classes A e B. No entanto, apesar do transporte público figurar como o principal meio de deslocamento no Brasil, mais da metade dos municípios do País não tem ônibus coletivo, segundo levantamento realizado esse ano pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). Dos 5.569 municípios brasileiros, 2.703 possuem serviços integrados de transporte público por meio de ônibus.
Cabe ressaltar que, ao contrário do transporte individual, o transporte público coletivo é amplamente utilizado pelas classes D e E, que representam 87% do público total. Foi demonstrado ainda que o uso do transporte público coletivo aumenta à medida que a classe social e a renda mensal familiar diminuem, demonstrando claramente a parte da população a quem se destinam as políticas públicas de mobilidade urbana: a classe mais pobre.
As justificativas principais de quem não utiliza ou deixou de utilizar o transporte coletivo remontam às dificuldades relacionadas ao tempo de espera e ao tempo de deslocamento, bem como ao atendimento e cobertura de linhas nas regiões, muitas vezes defasados ou funcionando de maneira aquém do esperado, devido à escassez de recursos, qualidade dos equipamentos e demora na aquisição de veículos. Assim, embora cada município tenha especificidades e fragilidades próprias – como a densidade demográfica e aporte econômico –, as principais dificuldades enfrentadas são comuns. A lotação e a tarifa também representam essas dificuldades, frequentemente apontadas por usuários de ônibus municipais.
Essa diminuição na utilização do transporte público coletivo demonstra uma problemática que pode causar impactos significativos na economia e dificultar o pleno exercício de um direito social garantido constitucionalmente: a mobilidade. Enquanto isso, cresce cada vez mais a utilização de transporte individual, atrativa à classe média devido ao menor tempo e maior conforto no deslocamento. Raquel Rolnik, urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU) da USP, definiu a situação em que se encontra a mobilidade urbana brasileira como uma “tragédia anunciada”, cuja crise poderia ter sido evitada ao priorizar um modelo de desenvolvimento urbano que privilegiasse o transporte coletivo de massa, com sistemas mais eficientes e capazes de atender essa demanda de maneira integrada com diferentes meios de locomoção.
Dado que o transporte coletivo é utilizado majoritariamente pela parcela mais pobre da população, a qualidade desse serviço não foi devidamente priorizada, sujeita, por exemplo, aos cortes de linhas ocasionados pela necessidade de manter o equilíbrio financeiro em contratos com empresas privadas nos modelos de concessão, como ocorreu em São Paulo, o que piorou consideravelmente a qualidade do serviço. Nacionalmente, aumentou a quantidade de pessoas que deixaram de realizar atividades do cotidiano e exercer outros direitos básicos como frequentar espaços de lazer, visitar amigos ou familiares e ir a consultas médicas devido às dificuldades enfrentadas no transporte público.
A escolha de não olhar e não tornar conhecidos fora das Câmaras Municipais os processos e disputas que acontecem nas cidades tem consequências que impactam diretamente a qualidade de vida e o acesso a direitos de milhares de pessoas. Os dados demonstrados são sintomas da urgência de que seja colocado em prática um plano de governo e infraestrutura efetivo entre estados e municípios, que olhe para a melhoria da qualidade de vida a partir da melhoria do serviço de transporte público e de um planejamento urbano que promova inclusão social e qualidade de vida. Do contrário, seguirá crescendo a descrença popular na qualidade dos serviços prestados, impactando de maneira significativa o crescimento econômico, a efetividade das políticas públicas de mobilidade no país e o pleno acesso ao direito à cidade.
Autoria: Larissa Maria
Revisão: Pedro Anelli
Imagem de capa: Pinterest
Bibliografia
FERRAZ, Junior. O estrago que a mobilidade urbana causa ao Brasil. Jornal da USP, São Paulo, 3 out. 2025. Campus Ribeirão Preto. Disponível em: https://jornal.usp.br/noticias/os-estragos-que-a-mobilidade-urbana-causam-ao-brasil/. Acesso em: 2 dez. 2025.
INSTITUTO CIDADES SUSTENTÁVEIS; IPSOS. Pesquisa Viver nas Cidades: Mobilidade. ICS; Ipsos, 2025. Disponível em: https://www.mobilize.org.br/midias/pesquisas/pesquisa-viver-nas-cidades-mobilidade.pdf. Acesso em: 2 dez. 2025.
REDE NOSSA SÃO PAULO; IPEC. Viver em SP 2024: Mobilidade urbana. São Paulo: Rede Nossa São Paulo, 19 set. 2024. Disponível em: https://nossasaopaulo.org.br/wp-content/uploads/2019/01/Viver-em-SP-2024_Mobilidade_resumida.pdf. Acesso em: 2 dez. 2025.
INGLÊS, Roberta. Analisando sistemas de ônibus de diferentes cidades brasileiras. Caos Planejado, [S. l.], 1 dez. 2025. Disponível em: https://caosplanejado.com/analisando-sistemas-de-onibus-de-diferentes-cidades-brasileiras/. Acesso em: 2 dez. 2025.
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SÃO PAULO (Município). Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014. Aprova a Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo e revoga a Lei nº 13.430/2002. Diário Oficial da Cidade de São Paulo: suplemento, São Paulo, ano 59, n. 143, p. 1-353, 1 ago. 2014. Disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/arquivos/PDE-Suplemento-DOC/PDE_SUPLEMENTO-DOC.pdf. Acesso em: 2 dez. 2025.
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRANSPORTES PÚBLICOS (ANTP). Sistema de Informações da Mobilidade Urbana da ANTP – Simob/ANTP: relatório geral 2014. São Paulo: ANTP, 2016. Disponível em: https://files.antp.org.br/simob/simob-2014-v10.pdf. Acesso em: 2 dez. 2025.







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