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O COLECIONADOR DE MOEDAS



Sou numismata. Isto é, coleciono moedas.


Alguns pensam que a numismática – isto é, a arte de colecionar moedas – é um hobby incomum para pessoas estranhas, o que não poderia estar mais longe da verdade. Talvez seja incomum, mas isso é porque a maioria das pessoas que é estranha, e prefere manter hobbies nada produtivos como o futebol e a leitura de romances que cansam, são enfadonhos e não levam a lugar nenhum, cada um à sua maneira. A numismática não; é uma prática completamente racional, redonda como os espécimes que coleciono, sem pontas ou arestas soltas. Diferentemente do futebol e outros esportes, não preciso suar ou me cansar, e não há perigos de sofrer uma lesão séria que me prejudicaria para o resto da vida. E, diferentemente da leitura de romances e outras bobagens, não ocupo minha mente com histórias acabadas ou mal-acabadas, já que o ato de obter uma moeda é perfeito e final em si mesmo.


Percebi isso muito cedo em minha vida, já que sempre fui uma criança muito inteligente. Aconteceu devido ao meu pai que, em decorrência do falecimento de meu avô, me deu a antiga coleção de moedas do velho. Sempre sozinho para não me sujar brincando com os outros garotos na rua, me maravilhei imediatamente com a existência daquele universo no qual poderia empregar minha infinita criatividade infantil me imaginando adquirindo mais moedas, além de utilizar minha infindável energia juvenil limpando, polindo e mantendo meus itens.


É claro que a coleção do meu avô não era nada desenvolvida, com apenas 47 espécimes, sendo 17 deles cópias falsas e descaradas que qualquer numismata de respeito saberia perceber assim que pousasse os olhos naqueles pedaços de latão enferrujado. Não culpo meu avô, ele era apenas um colecionador recreativo.


Mas eu não. Desde aquele dia eu sou um numismata de verdade e, por isso, cresci aquela incipiente coleção de 30 para 2521 itens, todos bem organizados em um cômodo especial, em um móvel especial feito sob estritas medidas para guardá-los. Nele, cada moeda, corretamente agrupada de acordo com sua época, valor e país, é exibida por trás de uma grossa camada de vidro, protegidas de eventuais intempéries e furtos. Um dos meus passatempos preferidos é me sentar nesse cômodo e contemplar cada um dos meus itens. Como eu disse, é uma atividade perfeita em si mesma.


Já meu outro passatempo preferido é obter mais moedas para minha coleção. A primeira regra dessa atividade é não comprar na internet, já que não se pode verificar a qualidade e veracidade do espécime até que ele chegue na sua casa. Não confio em ninguém que vende nada virtualmente, e você também não deveria. Dito isso, para aquisições corriqueiras, de média raridade, existem muitas feiras de numismática em qualquer cidade que se preze, e nesses lugares você pode achar muitas joias raras, caso esteja disposto a pagar caro – e eu sempre estou.


Foi em uma dessas feirinhas que aconteceu algo estranho. Enquanto dava uma primeira volta pelas barraquinhas, mapeava possíveis aquisições e analisava a qualidade das moedas expostas, algo em que sou muito bom, um estande me chamou a atenção. Era de madeira velha e carcomida, e atrás do balcão, esparramado em uma cadeira de praia tão decrépita quanto ele, um idoso com um chapelão parecia dormir. No mostruário do estande, ao invés da abundância de itens que a maioria dos outros vendedores ostentavam, havia apenas uma pequena moeda em uma humilde caixinha.


Estreitei a vista e, quando percebi, quase desmaiei ali mesmo. Era uma Double Eagle, uma moeda americana de 20 dólares de 1933. Uma das moedas mais raras do mundo, em uma feira numismática na minha cidade, em um estande velho como aquele. Quando levantei a cabeça e olhei para os lados, percebi o mais curioso: ninguém mais parecia perceber a oportunidade bem debaixo de seus narizes. Voltei os olhos para a moeda. Ela brilhava.


“Interessado?”


A voz do velho era um ruído rouco, mas claro.


A minha resposta era óbvia.


“Quanto o senhor quer por ela? Pago o quanto for.”


Geralmente, sou melhor negociador que isso – já que negociar é parte do processo de obter moedas, e eu sou muito bom nisso – mas era uma situação especial. Aquela Double Eagle valeria o dobro de qualquer preço que o velho poderia inventar naquele momento.


“Apesar de ser uma moeda, ela não pode ser paga com dinheiro.”


Normalmente, eu já teria saído de perto de um vendedor qualquer que me ocupasse com besteiras como essa. Mas esse não era um vendedor qualquer, mas sim o vendedor de uma Double Eagle. Então, mordi a isca.


“Como assim?”


Em resposta, o velho tirou um bloco de notas e uma caneta de seus bolsos puídos e rabiscou algo, arrancou a folha e me deu. Era um endereço.


“Para que a moeda seja sua, preciso que vá até esse endereço e faça a seguinte tarefa: convença alguém a se desapaixonar.”


Depois de dizer esse franco absurdo, ele voltou a descansar, os olhos fechados sob o chapéu. Ali plantado, olhei para o papel amassado entre meus dedos e para a moeda. Só havia uma coisa a se fazer.


Meia hora depois, na frente do sobrado cujo endereço o velho havia anotado, eu refletia sobre como todo aquele processo estava sendo um desatino irracional. Eu já viajara para todo tipo de local por uma moeda, mas no fim era só pagar, e ela era minha. O único convencimento envolvido era o necessário para fazer vendedores gananciosos baixarem seus preços, e só. O que paixão teria a ver com aquilo?


Mas pude acalmar meus pensamentos ao lembrar daquela Double Eagle e imaginá-la reluzindo na minha coleção. Apertei a campainha.


Quase que imediatamente, uma mulher de vestido florido abriu a porta e, antes que eu falasse qualquer coisa, me agradeceu profusamente e foi me colocando para dentro do que eu imaginava ser sua casa.


“Muito obrigada, muito obrigada mesmo. É muito bom que o senhor está aqui, precisamos de ajuda mesmo, não sei por que ele está assim. Sim, é muito bom que você tenha vindo. Aqui, ele está aqui.”


Tendo me conduzido pela casa toda durante seu monólogo murmurado – mais para si mesma do que para mim, achei – ela apontou para uma porta fechada e me lançou um olhar ansioso. Mesmo que o papel que eu deveria estar desempenhando ali me fosse um tanto incerto, decidi que seria mais fácil e rápido se eu simplesmente seguisse o roteiro. Por isso, coloquei a mão na maçaneta, assenti com a cabeça para ela e adentrei o cômodo.


De imediato, fui atingido por uma melodia melancólica e pegajosa que ocupava o ambiente. Ao fazer um inventário dos objetos e móveis do ambiente, identifiquei o dono do quarto e ouvinte da música sentado na cama: era um jovem com talvez 21 ou 22 anos e uma face aborrecida.

Suspirei e pensei que tudo valeria a pena pela minha moeda.


“É você que eu tenho que fazer se desapaixonar?”


Ele assentiu com a cabeça. Contou-me uma história francamente entediante sobre uma moça pela qual ele estava apaixonado e acreditava piamente ser sua alma gêmea. Senti-me novamente uma criança a ler os romances de baixa qualidade que meus parentes volta-e-meia me ofereciam.


“Ela é a única pessoa que me entende no mundo!”


Diante disso, calmamente expliquei para ele que, estatisticamente, era impossível que a moça fosse a única pessoa que o entendesse no mundo. Também esclareci que não tem isso de alma gêmea; gêmeos existem, almas não.


“Nunca vou encontrar ninguém igual!”


Elucidei para ele que, de fato, alguém exatamente igual dificilmente seria achado – mesmo que isso não fosse impossível –, mas era bem provável que achasse alguém bem parecido. Esse, a meu ver, já é um argumento perfeito para se desapaixonar, mas ele não estava agindo nada logicamente.


“Mas sem ela, minha vida não tem sentido!”


Foi nessa fala que comecei a achar que ele não era muito inteligente, querendo depender de qualquer pessoa que não ele para ter razão de viver. Mesmo assim, pensei que talvez só estivesse um pouco equivocado em sua visão de mundo, e sugeri que ele não procurasse sentido em bobagens instáveis como conexões humanas, e sim em algo mais lógico, como a numismática, que é perfeita em si mesma e não te deixa na mão. Entretanto, enquanto explicava as vantagens desse distinto hobby, ele me interrompeu:


“Pare! O irmão dela coleciona selos, você só tá me lembrando dela falando disso!”


Aqui foi quando saí do sério. A reles filatelia – a prática de colecionar selos – nada tinha a ver com a ilustre numismática, e apenas a sugestão de que tivessem algo a ver me enfureceu tremendamente. Além do fato de ambas serem tipos de coleções, nada mais tinham a ver, com a coleção de selos sendo uma atividade simplória de aglutinamento de pedaços de papéis inúteis, a coleção de moedas é uma arte complexa que envolve a prospecção e verificação de artefatos repletos de poder e história. Aqui, tive certeza que ele não era muito inteligente.


Depois disso ele continuou seus argumentos cada vez mais ilógicos, mas eu já não conseguia levar nada a sério. Só sei que em algum momento me deu um teto preto, e retomei a consciência quando estava sentado no meio fio, fora do sobrado. Talvez tenha dado uns sopapos no jovem, não me lembro direito.


Só sei que, ali, sentado na calçada, só conseguia pensar em uma coisa:


Foda-se a droga da Double Eagle.



Autoria: Pedro Augusto Castellani Rolim

Revisão: Gabriela Veit e Laura Freitas

Imagem de Capa: Foto por Dan Pelle, 2021/ Reprodução The Spokesman Review, Dec. 19, 2021 (https://www.spokesman.com/galleries/2021/dec/19/salvation-armys-gold-coin-man/)


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