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O DIA EM QUE PAREI DE SENTIR



Foi em um desses dias comuns que eu parei de sentir. Para se ter ideia, nem lembro se comi ou bebi algo diferente na noite passada, nem se havia feito algo diferente da minha usual rotina de acordar, ir para a faculdade, voltar e então jantar e dormir – com os intermédios dessas atividades sendo francamente desimportantes. Só sei que, antes mesmo de levantar-me, algo havia mudado; não acordei de fato, simplesmente abri os olhos.


Explico logo que sou um sonhador. Não no significado correto da palavra, já que perdi aquele brilho juvenil dos olhos em algum momento inexato dessa bagunça de sorrisos, tragédias, derrotas e puro caos que chamam de início da vida adulta. Mas sonhador no sentido de que costumo – costumava – sonhar muito. Os ingredientes supracitados eram largados dentro da minha cabeça-liquidificador ao longo do dia – acho que eu sempre tive o problema de deixar sua tampa aberta – e eram batidos na configuração mais potente, o que gerava sonhos estranhamente coesos em sua absurdidade. Logo, só abrir os olhos pela manhã não é exatamente minha ideia de normal. Acredito que o comum para todos é se sentir simultaneamente arrancado de algum recanto da mente e colocado no próprio corpo por uma força suave, mas implacável.


No entanto, como se fosse um boneco inanimado cujo sopro da vida lhe foi dado naquele instante, só abri os olhos. Os grossos cobertores que haviam me protegido do frio glacial da noite anterior já não me proporcionavam aquele calor, e nem sua retirada me fez sentir o contrário. Sentado na cama, olhei para a janela e esperei que os ruídos do mundo lá fora chamassem de volta à minha cabeça os meus pensamentos, anseios e ansiedades do cotidiano, como era de praxe. Mas, é claro, nada aconteceu, e barulhos de pássaros, pneus e pessoas pareceram distantes e abafados.


Normalmente, já estaria preocupado com alguma aula na faculdade e se conseguiria chegar a tempo lá. Contudo, esse não era um dia normal. Minha cabeça estava completamente vazia, a não ser por essa breve compreensão.


Olhei ao meu redor. Para minha falta de surpresa, minhas prateleiras, gavetas e mesa não eram mais preenchidas somente por livros, camisetas e cadernos, mas também pela minha recém-descoberta e onipresente indiferença emocional a esses espaços e seus objetos. Nem mesmo a minha querida foto dos meus amigos e eu em alguma festa de aniversário, que eu mantinha com o maior cuidado – acho que aquela moldura nunca havia visto nem dois dias de pó acumularem-se antes de eu limpá-la –, conseguiu me tirar um sorriso bobo, como era o usual. Na verdade, ao olhar o quadro, mal consegui reconhecer as cinco pessoas que riam para a câmera. Era como se, na noite anterior, alguém tivesse substituído nossa imagem por a de um grupo de jovens totalmente desconhecidos e que poderiam pertencer facilmente ao anúncio genérico de uma agência de viagens de formatura. Mas, como era a tendência daquela manhã, não passei muito tempo apegado a esse pensamento, que logo me escapou e sumiu no ar.


O que me fez levantar foi a visão da minha mochila. Preparada no dia anterior devido à minha ansiedade, ela acusava a existência de um lugar no qual eu deveria estar presente. Enquanto essa necessidade não me chacoalhou como faria em um dia comum, ter uma direção já encarrilada foi um acalento bem-vindo àquela manhã ausente de pensamentos. Acredito que essa seja a única razão pela qual saí da cama naquele dia.


Algum tempo depois, após seguir mecanicamente meu caminho cotidiano, estava na faculdade. Lá, encontrei um colega com o qual compartilhava algumas aulas. Nunca o chamaria de amigo, já que sua animação constante e maneirismos sonhadores – agora sim, no sentido correto da palavra – o faziam parecer que iria desatar em um discurso inspirador a qualquer momento, de modo que eu restringia sua existência em minha vida às aulas nas quais nos fazíamos companhia. O bom era que minha incapacidade de sentir ojeriza pelos seus trejeitos deixou sua presença bem mais palatável.


Só o cito aqui porque, em algum momento da troca de aulas, ele percebeu algo de errado – ou ao menos, diferente – em mim.


“Cara, estou sentindo você meio pra baixo hoje, rolou alguma coisa?”


O brilho de seus olhos demonstrava que ele já formulava um novo discurso. Mas eu não tinha opção a não ser morder a isca e responder.


“Não sei. Acordei meio esquisito hoje.”


Normalmente, eu buscaria alguma desculpa melhor ou daria uma resposta mais contundente – algo sobre ficar acordado até tarde, por exemplo –, mas não me importei. De qualquer modo, sabia que ele conseguiria tecer todo um palavrório sobre minha resposta, fosse curta e grossa ou longa e complexa. Quando ele começou a falar e minha previsão se confirmou, finalmente agradeci pela minha opressiva apatia do dia, e me limitei a assentir com a cabeça quando parecia que eu deveria fazê-lo.


Os detalhes da palestra são inúteis e, portanto, os pouparei. No entanto, ao fim, ele mencionou algo que veio a ser importante.


“...pelo menos é isso que meu pai sempre diz, e eu concordo, é claro. Mas enfim, sabe o que vai melhorar de vez esse seu humor? Um cafezinho bem forte. Bora pegar um lá no refeitório!”


Acompanhei-o até lá e, em pouco tempo, estávamos sentados em uma das mesinhas da cafeteria com um par de copinhos de isopor fumegantes em nossa frente. Ele, é claro, falava, e eu fingia escutar. Passados uns momentos, eu finalmente decidi dar um gole, que eu imaginava que seguiria a tendência de sensaboria daquela manhã.


Mas não foi o que aconteceu. Quando sorvi o café, arregalei os olhos e quase deixei o copo cair. O amargor incandescente desceu queimando minha garganta, e pude sentir o calor irradiar pelo resto do meu corpo. Pela primeira vez no dia, me senti um pouco vivo.


“Viu só, cara? Um golinho e já acordou, falei pra você!”


Ignorei o comentário dele, ainda perplexo. Antes, apesar de não ter racionalizado isso, já se instalava em mim a breve, mas desesperadora, consciência de que eu talvez passaria o resto da vida naquele estado. Mas quando aquele gosto forte quebrou, mesmo que só por um instante, as paredes invisíveis que me mantinham enclausurado naquela prisão de apatia, tive esperanças de que seria algo passageiro.


Mas eu estava errado, é claro.


Quer dizer, esse truque funcionou por algum tempo. Não era que tomar café me faria voltar a experienciar sentimentos que antes eu tomava como certos – como ficar nervoso com os discursos vazios do meu colega ou feliz por passar em uma matéria difícil – essas e todas as outras sensações ainda pareciam inacessíveis, separadas de mim por uma parede invisível e intransponível. Porém, o calor que aquela bebida espalhou pelo meu corpo no momento da ingestão era um lembrete de que eu ainda estava vivo e de que um dia senti algo que me fez levantar da cama de manhã, além da mera necessidade de uma rotina aparentada com minha prévia normalidade.


Por isso, passei a tomar o máximo de café que conseguia. Lembro que logo após acabar aquele copinho e antes de voltar para a aula, comprei mais um e tomei rapidamente. Quando voltei para casa mais tarde, fiz e bebi mais várias xícaras, que me permitiram realizar os afazeres do dia tranquilamente, em oposição ao instinto de me deitar até que minha cama formasse um sulco do meu formato e me engolisse. Como já disse, não era um substituto para emoções, mas era fácil me enganar a estudar ou lavar a louça caso eu me prometesse uma xícara de café depois que completasse tais tarefas. Assim, consegui sobreviver por um tempo.


De longe, a parte mais difícil era dormir e acordar. E isso não era graças ao efeito estimulante da cafeína, que parecia ter se juntado a todas as outras sensações que agora me eram inalcançáveis, mas sim por outra razão. Essa sendo o fato de que, nesses momentos, eu não podia fugir do terror mudo daquela existência, e era obrigado a encarar aquele buraco negro que parecia ter sugado minhas emoções e, com elas, as ligações com minhas próprias memórias. Apesar de deitado na cama, eu parecia estar suspenso na escuridão do meu quarto, sozinho e, se não vazio, esvaziando de tudo que conhecia por mim. Só conseguia espantar tudo isso ao finalmente levantar de manhã e beber algumas xícaras de café.


Só que, como dizem, tudo que é bom dura pouco, e isso não durou muito. Após quase duas semanas, percebi que o efeito diminuía a cada dose, e passei a tomar cada vez mais. Apesar de evitar ao máximo essa conclusão, o passar das noites a revelou inescapável. Em poucos dias, eu havia dobrado o número de xícaras e copos, e a conta só aumentava. Eventualmente, o gosto do café resvalou para a vala da insipidez inabalável, onde estavam todos os outros sabores que eu havia provado desde acordar naquele estado. Entretanto, continuei bebendo, em uma aposta alucinada de que aquilo voltaria a fazer efeito. Em algum ponto desse período, passei a ignorar meus compromissos para ficar em casa, jurando que o próximo gole seria como aquele primeiro.


O resultado de toda essa cafeína veio em um dos raros momentos que estava fora de casa, só para comprar mais café. Enquanto andava com uma sacola em mãos, senti uma breve palpitação no peito. A surpresa me fez estacar o passo e, quando notei, já não conseguia mais focar a visão nas pessoas, placas e carros. Algo estava errado.


Não lembro de todos os detalhes, por motivos óbvios. Só sei que, alguns segundos depois, aquela palpitação voltou com tudo e me derrubou na calçada, rendendo exclamações de alguns transeuntes. Depois, recordo-me da buzina estridente de uma ambulância e, após apagar por não sei quanto tempo, luzes brancas de um hospital e cabeças preocupadas pairando sobre mim, a disparar tanto termos médicos que não compreenderia nem se estivesse apto, quanto alguns mais compreensíveis como “emergência” e “cirurgia”. Compreendi o que aconteceria, e em pouco tempo estava sendo injetado com anestésicos que não fizeram efeito nenhum. Após aumentarem a dose duas vezes, decidi fechar os olhos e fingir que havia funcionado – como se aquilo fosse uma situação social chata que pode ser escapada ao fingir sono.


Satisfeitos, começaram a me abrir, e o buraco negro de emoções no meu peito se transformava em uma fenda vermelha de sangue.


Quando não aguento mais me segurar, abro os olhos lentamente. Diante disso, uma médica grita e deixa cair um bisturi ensanguentado. Fitando-a, percebo que lágrimas rolam pelos lados do meu rosto. E digo:


Obrigado. Eu finalmente sinto algo.




Autoria: Pedro Augusto Castellani Rolim

Revisão: André Rhinow e Artur Santilli

Imagem de capa: 1857 (Stephen Lawlor, 2022) / Reprodução: http://www.stephenlawlor.com/spiritus-mundi/zeg49lyuen0dedmkkedja9kse8nbl0.

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