top of page

O ESCRITOR E A VIÚVA



Sábado

Sábado, 3 de fevereiro. A brisa refrescante do entardecer caiu como uma luva para um dia quente como o de hoje, tão quente quanto os últimos dias nesse verão. A paz reinava: sem carros na rua, sem aves se esgoelando ao lado da janela e sem vizinhos brigando sobre o que fazer com o filho catarrento deles, o qual se recusou a tomar banho durante a semana toda, aparentemente. A casa estava silenciosa e tranquila. “Hoje é o dia”, pensei. Finalmente, terminaria de redigir os últimos capítulos do meu próximo romance, dando um fim às noites mal dormidas e às carinhosas perguntas do meu pai: “Deu uma olhada naquele anúncio de emprego que te mandei?” Velho desgraçad…


Tenho certeza de que está preocupado. Não acho que ele tenha tido prazer em me importunar constantemente nos últimos 15 meses – desde a publicação de meu último livro, o qual rendeu uma nota para pagar as contas atrasadas – Yay!! Mas, como estava dizendo, hoje seria o dia no qual eu colocaria um ponto final em todo esse constrangimento e desconforto. Depois de alguns meses de uma constipação criativa danada, finalmente soube qual rumo daria à pobre coitada da Gertrudes. Sim, ela merecia um final feliz! Após ser traída por Carlos, seu querido marido que postava fotos dos almoços de domingo no Face com a legenda “Agradeço a Deus pela minha linda esposa”, Gertrudes tem uma epifania e percebe que, na verdade, seu grande amor é Robertinho, amigo de infância dela, ao qual todos se referiam como “o chato pra burro” durante a adolescência. Então, a protagonista pediria o divórcio da maneira mais civilizada e madura possível, deixando que Carlos fosse assombrado por sua própria consciência, e viveria feliz para sempre ao lado de seu novo amor. Um fim digno de conto de fadas. No fim das contas, o povo adora, não é mesmo?


Sentei-me, abri o laptop e, assim como um piloto de Fórmula 1 que detém o conhecimento da pista já percorrida centenas de vezes, sabia exatamente o que deveria ser feito. Foi no instante que digitei a primeira palavra que escutei a mesa vibrar ao toque do meu celular. Quem pode ser num sábado às 19h da noite? Alcancei o aparelho o mais rápido possível para retornar logo ao meu super enredo, quando vi que se tratava de uma ligação de Faustino. Sim, Faustino! O pilantra que se aproximara de mim como uma cascavel para roubar ideias de futuros projetos literários. Além garantir um bestseller às minhas custas, ganhou também uma sessão de autógrafos na tão aclamada Livraria da Tia Jô, localizada aqui na esquina da nossa rua. Mas que filho de uma…


– Alô?

– Olá! Como você está, meu querido?

– Oi, Faustino. Veja bem, já são 18:53, é algo urgente? Por favor, não me diga que alguém morreu. Tipo a sua mã...

– Não, companheiro! Tudo em ordem por aqui. Viu, deixa eu te falar, ouvi dizer que você está tendo dificuldade para finalizar essa historinha que tem te causado tanta dor de cabeça nesse último ano. Mas não tem problema, eu acho que tenho a solução perfeita, que vou te dar como um presente de amigo. Faça um final feliz para Gertrudes, coitada. Uma querida dessa não deveria passar por tanto sofrimento e sair na pior, oras! Faça com que ela ache um cara bacana e tenha um desses finais felizes de contos de fada. O povo adora, não é mesmo? Enfim, pense com carinho no que estou te dizendo! Com sorte, a tia Jô até te arruma um espacinho lá na livraria, hehe. Até mais, se cuida!


A chamada havia terminado. Tomei os cinco minutos seguintes para refletir sobre a vida. Voltei para meu documento e dei continuidade à história:

“Então, após um surto de raiva ao flagrar Carlos pulando a cerca novamente, Gertrudes o arremessa no chão com a força de dez mamutes esfomeados, posiciona o pé sobre seu cangote e, com um machado em mãos, desfere em forma de brado: ‘É hoje que eu finalmente arranco fora esse seu…’”


[TOC TOC]


Alguém estava na porta, para a minha sorte. As pessoas não têm mais o que fazer, não?

Caminhei em direção à entrada da frente e... Não é possível! Essa velha senil de novo? Lá estava Amélia, a doce senhorinha que morava na casa ao lado e que sempre passava para dar um “olá” em suas horas vagas.

– Muito boa noite, dona Amélia. Em que posso ajudar?


– Meu benzinho, como vai você? Estava agorinha sentada em minha poltrona e tive o pressentimento de que algo o incomodava. Então, resolvi dar uma passada para animá-lo!


– Agradeço a preocupação, Amélia, mas não é uma boa hor...


– Eu trouxe alguns biscoitinhos para você! Eles foram feitos ontem, então não espere que estejam fresquinhos como da última vez. Mas adicionei alguns ingredientes novos, já que estava me sentindo rebelde. Agora você pode escolher para o seu lanche da tarde um biscoitinho amanteigado, ou um biscoitinho com nozes! Eles ficaram uma delícia e combinam muito bem com uma pitadinha de...


– Caramba! Já passou das sete da noite. Que coisa, não? A senhora não tem que ver novela ou algo nessa linha?


– Não tenho, benzinho. Me livrei da antiga televisão lá de casa no dia em que meu Jeferson se foi. Não suportaria mais tê-la na sala, já que esse era seu lugar favorito para passar as noites e relaxar após um longo dia de trabalho. Se pelo menos ele...


– Olha, deixei uma água esquentando para fazer um chá. Por que a senhora não entra, toma uma xícara comigo, volta para casa e descansa um pouco?


– Parece perfeito! Uma xícara de chá cairia bem. Com biscoitinhos então, melhor ainda!

– Ótimo, entre.


Jeferson, seu canalha! Tomara que esteja curtindo o ardidinho aí embaixo.


Domingo

Domingo, 4 de fevereiro. A manhã estava fria e cinzenta devido ao forte temporal que assolou a madrugada. Os pássaros que normalmente cantam durante as primeiras horas do dia provavelmente encontravam-se mortos a essa altura. Infelizmente, os vizinhos não tiveram o mesmo destino. Estes permaneciam vivinhos da silva, ainda discutindo sobre o que fazer com o porquinho que chamaram carinhosamente de Carlos Eduardo e que estava em seu décimo ano de pura catarrice.


Ergui a cabeça com dificuldade, já que estava com dores no pescoço em decorrência da péssima posição que encontrei para dormir. Passei a noite debruçado sobre a mesa da sala, onde tentei escrever o máximo de páginas antes de cair em sono profundo. Após levantar-me, tive a sensação de que cada passo dado em direção à cozinha era uma nova oportunidade de arrepender-me por ter enchido de vodka minhas últimas xícaras de chá. O que posso fazer? Amélia era uma idosa solitária e que falava pelos cotovelos, aposto que teria fôlego para correr uma maratona.


Ao voltar para a sala, pude ver que a senhorinha permanecia adormecida no sofá cama, já que havia apresentado dores de cabeça e cansaço em demasia para retornar ao seu lar na noite anterior. Mas imagino que ela tenha tido uma boa noite de sono, vendo que estava na exata posição desde que havia se deitado pouco depois de terminar sua bebida. Sem ocupar minha cabeça com isso, agarrei o casaco e saí mundo afora para comprar os pãezinhos que faltavam para o café da manhã.


Dois quarteirões haviam sido percorridos e nada de uma alma viva na rua. Certamente, todos estavam enfurnados em suas casas, tentando evitar ao máximo uma caminhada matinal nas calçadas ainda molhadas sob a iluminação fúnebre do céu nublado.


A padaria até que estava aconchegante. Encontrei o velho padeiro, o qual me atendia quase diariamente desde que comecei a frequentar o estabelecimento há uns bons anos.


– Rapaz, que cara é essa? Foi atropelado no caminho até aqui?


– Muito bem, Oswaldo! Continue fazendo piadinhas com os clientes e quem sabe te aceitem de volta no circo. Mas, pra ser sincero, tenho que admitir que estou perdendo um pouco a cabeça com a parte final do meu próximo livro. O que posso fazer se nada do que coloco no papel me agrada? Quero terminá-lo o quanto antes para arrumar um pouco de sossego.


– Certo, vejo que está naqueles dias.


– “Naqueles dias”? Qual é o sentido disso?


– Bem, é muito simples. Vez ou outra, você aparece aqui todo agitado, dizendo que teve uma ideia fantástica para um livro que terá um enredo chamativo com pessoas interessantes. Passam alguns meses e você volta falando que as personagens viraram imbecis e a história acabou sendo mais do mesmo, mas pelo menos vai vender.


– Aonde quer chegar?


– Você não vê? É claro que o livro está te atormentando! Você vende porcaria!


– Não, Oswaldo, você vende porcaria! Olha esse pão de dois dias atrás, cara. Você está ficando preguiçoso!


– Não perca o meu ponto. O que quero dizer é que não dá para continuar acreditando que terminar logo mais um livro te trará alguma paz se você só pensa no que os outros querem. Acorde, você é um escritor, não um vendedor.


– Ah, mas também é extremamente conveniente dizer isso, não é mesmo? O que vou fazer com um monte de cópias estocadas e nenhum dinheiro na conta?


– Pare com essa arrogância toda, alguém precisa abrir seus olhos e você sabe bem disso. Talvez você estivesse menos solitário se não agisse como um velho ranzinza!


– Solitário?! Se pelo menos me dessem um segundo de paz. Ontem tive que acolher Amélia em casa. E vou te falar, a vovó não fecha nem por um segundo aquela…


– Amélia? Ela não estava internada até uns dias atrás?


– Olha, se estava, não fiquei sabendo. Apenas tenho noção de que, neste exato momento, ela está esfregando toda aquela baba jurássica no encosto do meu sofá. O único desejo de que tenho é que nenhuma migalha do seu pão entale na garganta dela e me faça levá-la de volta ao hospital.


– Tá, agora você só está sendo cruel! Bom, desejo-lhe a melhor das sortes com o seu livro. Tente descansar mais, sua cara está péssima. E pense no que te falei, seu trabalho não é ser um vendedor! Até a próxima.


Saí um pouco avoado do local, com a cabeça inundada de pensamentos:


Então, quer dizer que Amélia estava doente? Estava ou está? Ainda mais com aquele papo do Jeferson, talvez andasse realmente precisando de companhia. Acho que ela comentou mesmo sobre tentar arrumar um novo parceiro ou coisa do tipo. Será que… será que suas visitas vão além de uma inocente entrega de biscoitos? Será que ela quer… não, não, não. Não vamos pensar nisso, jamais. Credo!


Antes que pudesse reparar, minha atenção foi completamente sugada por uma cena que se passava na calçada do outro lado da rua: um garotinho corria em direção a seu avô, segurando um pequeno livro em uma de suas mãozinhas. Não pude identificar o livro, mas estava levemente surrado e com algumas dobras em seu interior. O avô, que já tinha uma certa idade, dava seu melhor para esconder o cansaço da brincadeira. Em seu rosto, estava estampado um sorriso de orelha a orelha, o qual incentivava a criança a devolver um sorriso tão grande quanto. Lembrei-me do meu tempo de menino, mais especificamente da época em que carregava para cima e para baixo um humilde caderninho de anotações. Mal sabia formar uma frase, mas gostava de desenhar tudo que presenciava ao longo do dia, tentando colocar as figuras em uma ordem capaz de contar uma historinha. Acho que desde cedo soube que viraria escritor. O problema é que não me dei conta disso quando comecei a escrever textos para presentear meus amigos em seus aniversários, ou quando decidi escrever contos infantis para meus primos mais novos. Nem mesmo quando redigi um discurso para homenagear meu irmão no dia de seu falecimento. Percebi que viraria escritor no momento em que me dei conta de que estava desempregado havia tempo demais. Percebi isso quando já não sabia como pagar o aluguel do mês seguinte, como pagar as compras da semana, pagar a internet, pagar o gás, pagar a água, pagar isso, aquilo e mais alguma outra coisa. E para quê? Escrever um punhado de histórias que não agregam nada a ninguém? Escrever sobre a castração caseira executada por Gertrudes, para que assim os leitores sentissem uma falsa sensação de justiça por ações que jamais poderiam colocar em prática em suas vidas? Será que algum dia terei a liberdade de escrever sobre a versão em que Gertrudes larga Carlos, Robertinho, Deus e o mundo, compra uma tartaruga e fica em paz numa praia qualquer, porque, afinal, as pessoas são chatas pra cacete?


Fui puxado para fora de meus devaneios ao dobrar a esquina e aproximar-me de casa, quando avistei Amélia deixando a residência. Ela parecia estar descansada e leve como uma pluma. Jamais havia visto a viúva andando de maneira tão relaxada e sem compromisso. Parecia que estava caminhando para uma aventura inédita. Pensei em alcançá-la para ver se precisava de alguma ajuda, mas senti que ela não necessitava de minha assistência naquele momento.


Quando cheguei à entrada de casa, fui tomado por um sentimento de pânico misturado com confusão: a porta permanecia trancada. Sem entender muito bem o que estava acontecendo, destranquei-a imediatamente e adentrei a moradia. Lá estava ela, no sofá cama, na exata posição em que havia deitado na noite anterior, Amélia. Relaxada de uma maneira jamais vista, pronta para uma aventura inédita.


[Fim da primeira parte]


Autoria: Rafael Diz Motooka da Cunha Castro

Revisão: André Rhinow e Luiza Parisi

Capa: Pinterest



bottom of page